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Manuel Francisco Ribeiro, fotografado por Adriano Miranda, do jornal Público
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Manuel Francisco Ribeiro, fotografado por Adriano Miranda, do jornal Público

Manuel Francisco Ribeiro, fotografado por Adriano Miranda, do jornal Público

"Ainda aqui estou." O Manuel da capa do Público e outras histórias de quem viveu os fogos de 2017

Os incêndios do ano passado confrontaram o país com uma tragédia inédita: 115 mortos, centenas de casas e empresas destruídas. "Ainda aqui estou" reconstitui a história com relatos de quem sobreviveu.

A imagem de Manuel Francisco Ribeiro passou rapidamente de capa de jornal, a símbolo da devastação deixada pelos incêndios de outubro de 2017 — e a prémio Gazeta para Adriano Miranda, o fotojornalista do Público que a registou. Manuel é o homem de olhar cansado e triste, corpo apoiado num cajado de madeira, que nos olhava a todos — um país incrédulo por mais uma tragédia.

Um ano depois dos fogos que fizeram subir para 115 o número de vítimas mortais dos incêndios do ano passado, Manuel está de novo numa capa, mas a de um livro editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Nessas páginas, a autora, Patrícia Carvalho, jornalista do Público, junta histórias de quem viveu os fogos — os de outubro e os de junho, em Pedrógão Grande. São os relatos de quem combateu os incêndios e de quem lhes sobreviveu, mesmo perdendo amigos, familiares ou tudo o que a vida permitiu amealhar. Com essas histórias, o livro pretende reconstituir um momento incontornável da História do país.

“Ainda aqui estou”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, já começou a ser distribuído, mas será lançado apenas no próximo sábado, dia 20 de outubro, no Mira Fórum. O excerto que aqui publicamos conta a história de Manuel Ribeiro, antes dos fogos e depois de tudo o que eles lhe levaram.

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O riso de Manuel

No dia em que fazia 82 anos, a 17 de Outubro de 2017, Manuel Francisco Ribeiro apareceu na capa do jornal Público. De boina negra na cabeça, os olhos vermelhos inchados e agarrado a um cajado, junto aos escombros queimados de uma casa, num cenário ainda envolto pela tonalidade amarelada do fumo dos grandes incêndios, era ele o rosto das vítimas da nova tragédia que acabara de marcar o país. O fotojornalista Adriano Miranda, autor da imagem, disse à revista Visão que Manuel lhe pareceu então «uma personagem bíblica, surgindo dos escombros envolto em fumo, de cajado na mão». O retrato de Manuel teve um impacto que nem um nem outro anteciparam.

Em Lisboa, a fotografia foi reproduzida e transformada em cartaz de protesto contra a incapacidade de o governo ter evitado uma nova tragédia, tão pouco tempo depois do drama de Pedrógão. No telefone e no Facebook de Adriano, choveram contactos de conhecidos e desconhecidos que só o queriam cumprimentar ou procurar saber mais sobre Manuel, para poderem fazer algo por ele. E a Manuel, na pequena aldeia de Covelo, freguesia de Ventosa, Vouzela, chegaram donativos e um reconhecimento com que não contava. Ele era o símbolo da tragédia.

Mas, agora que passaram mais de seis meses sobre aquele dia, olhamos para a fotografia com outros olhos. Além da dimensão triste do retrato, há no rosto do velho a réstia de um sorriso, e basta passar algum tempo com Manuel para perceber que, longe de ser uma personagem trágica, ele é um homem bem-humorado, sempre pronto a contar uma piada. Aliás, naquele instante em que Adriano Miranda lhe pediu se podia fotografá-lo, na manhã depois de uma noite de pesadelo, e quando ele já sabia que pelo menos um vizinho tinha morrido apanhado pelas chamas, a resposta do homem, relembrada pelo fotojornalista na Visão de 23 de Novembro de 2017, mostrava bem que não era um incêndio, por mais devastador que fosse, que ia deitá-lo abaixo. «A mim, que sou tão feio?», perguntou a Adriano, antes de se deixar fotografar.

Naquele instante em que Adriano Miranda lhe pediu se podia fotografá-lo, na manhã depois de uma noite de pesadelo, e quando ele já sabia que pelo menos um vizinho tinha morrido apanhado pelas chamas, a resposta do homem, relembrada pelo fotojornalista na Visão de 23 de Novembro de 2017, mostrava bem que não era um incêndio, por mais devastador que fosse, que ia deitá-lo abaixo. «A mim, que sou tão feio?», perguntou a Adriano, antes de se deixar fotografar.

Numa tarde estranhamente quente de Janeiro, Manuel desce do centro da aldeia, onde mora o sobrinho, em direcção à sua casa, no início do luar do Covelo, agarrado ao mesmo cajado. Há lágrimas a saltar-lhe dos olhos constantemente, que ele afasta com as costas da mão ou um lenço, mas não porque esteja triste. É que tem andado constipado e a maleita afecta-lhe a vista, conta. Se tem tempo para falar? É claro que sim. Afinal, agora que «o raio do ácido úrico» o ataca impedindo-o de erguer um dos braços acima da cabeça e quase não trabalha, não há muito com que passar o tempo. «Durante o dia, se está frio, vou para o sol ou faço uma fogueira e ponho-me ao lume. E à noite vou lá para cima, comer qualquer coisa com o sobrinho, e lá para as 9 horas venho para baixo. E é assim. Assim se vão passando os dias.» O resto são uns passeios, mas pouca conversa com os vizinhos, já que, diz o velho, com uma ponta de riso na voz: «Ainda gosto mais de estar sozinho. Há por aí muitas pessoas que se entretêm a ler o jornal da caserna, a falar da vida dos outros. Com essa gente, é bom dia, boa tarde, e mais nada.» Já quem vem de fora e quer ouvi-lo contar um pouco da sua história, é diferente. «Não é chatice nenhuma, para mim é um prazer. Ainda tenho pessoas que têm alguma consideração por mim e gostam de me vir ver.»

As visitas, entretanto, diminuíram de intensidade, bem como as ofertas. Mas Manuel teve a sua conta de donativos, levados até ali expressamente para ele, o que terá suscitado «a inveja» de outros moradores, ironiza. Até o presidente do Futebol Clube do Porto, Jorge Nuno Pinto da Costa, lá foi levar-lhe um frigorífico, depois de ter aparecido uma primeira vez com «um caixote de roupas e umas mercearias». «Um frigorífico grande», diz o homem. Brincalhão, Manuel diz que do clube ainda lhe perguntaram quanto calçava para lhe enviarem «um calçado». «Mas esse não veio», ri. E, com o seu jeito descontraído, de quem conta histórias com facilidade, faz mais uma paragem no trajecto até casa, apoia-se no cajado e diz: «Eu de bola não percebo nada e já disse ao meu sobrinho: “Sabes o que dizia o meu avô? Todas as coisas que me não dessem lucro nem me dessem prejuízo não me deviam dar cuidado.” Isso não te dá lucro nenhum e também não te dá prejuízo, estás com cuidado com a bola para quê? Não vale a pena preocupares-te com isso.»

Até o presidente do Futebol Clube do Porto, Jorge Nuno Pinto da Costa, lá foi levar-lhe um frigorífico, depois de ter aparecido uma primeira vez com «um caixote de roupas e umas mercearias». «Um frigorífico grande», diz o homem. Brincalhão, Manuel diz que do clube ainda lhe perguntaram quanto calçava para lhe enviarem «um calçado». «Mas esse não veio», ri.

Manuel não viveu sempre neste local onde nasceu. Instalar-se em Covelo, fazer da terra os seus dias, foi uma escolha consciente, depois de ter experimentado a emigração. Dos seis irmãos, foi o que partiu para mais longe, instalando-se alguns anos na Alemanha. Um irmão e uma irmã que se mudaram para Lisboa já morreram, assim como o mais velho de todos, que sempre viveu no lugar do Covelo. As duas irmãs que ainda estão vivas habitam nas proximidades. «Sobraram duas raparigas e eu, até ver. Apressar para quê?», diz ele, como quem afasta a morte com uma sacudidela.

A primeira vez que Manuel deixou o Covelo, onde já ajudava os pais no cultivo da terra, foi para ir à tropa, em Viseu. Aproveitou a estadia e tirou a carta de condução, ainda nos anos 50. «Pronto, mais um para estorvar na estrada», brinca, recordando que, naquela altura, «havia bem menos carros do que há agora; agora já são mais os carros do que as pessoas».

De regresso a casa, foi trabalhar para uns terrenos de um professor de Alemão de Vouzela, que lhe disse que havia de lhe arranjar um emprego diferente. A promessa foi cumprida com a entrada de Manuel para os serviços florestais. «Andei uma temporada a cilindrar as estradas, mas aquilo dava pouco. Ainda fui a exame para guarda-florestal, mas a escolha foi feita por sorteio e não me calhou a mim.» Haveriam de o chamar mais tarde para estas funções, mas, nessa altura, Manuel já tinha emigrado para a Alemanha.

A ideia foi-lhe plantada precisamente por um guarda-florestal com quem se cruzara em serviço. «Ele tinha estado uma temporada na França e dizia-me assim: “Ah, quando vim embora da França, melhor fosse comido pelos lobos numa serra, para aturar o engenheiro que aí temos, que é do piorio que pode haver.”» Quando surgiu a hipótese de ir para a Alemanha, Manuel agarrou-a logo, «a ver se ganhava uns tostões». E, quando já lá estava e um dos irmãos lhe enviou uma carta, a informá-lo de que tinha sido escolhido para guarda-florestal, lembrou-se das palavras do colega que maldizia a hora em que voltara a Portugal e não regressou. Ficaria na Alemanha sete anos e meio.

Entre 14 e 16 de Outubro de 2017 ocorreram 914 ignições no país, 495 das quais no dia 15

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Não foi fácil nem sequer o golpe de sorte financeiro com que poderia ter sonhado, mas lá se aguentou. Diz que nunca aprendeu grande coisa de alemão, mas foi-se sempre desenrascando, graças à ajuda de pessoas com quem se cruzava e alguma sorte. Como nos primeiros dias em que lá chegou, já com 29 anos, acompanhado de outro homem de Vouzela, ambos sem falarem uma palavra daquela língua estranha. «Para os primeiros dias, eu tinha levado daqui um presunto curado, que não sabia o que me esperava. Mas a gente precisava de uma panela e outras coisitas que nos faziam falta, e eu disse que era melhor irmos ver se encontrávamos um mercadito. Fomos por ali fora, como dois tolos, nem um nem outro sabíamos uma palavra. Íamos a conversar e apareceu um português, que nos ouviu e veio ter com a gente. Era um estudante que estava ali a tirar um curso. Indicou-nos um supermercado em que havia de tudo. Tinha três, quatro pisos e cada piso tinha uma qualidade de coisas. Nunca tinha visto algo assim na vida. Comprámos uma panelinha, uma frigideira, umas merceariazitas para fazer a sopa e lá estivemos uma temporada», conta.

Manuel trabalhou primeiro numa fundição, onde o ordenado era «pequeno», por isso, nas folgas, ia recolher papel para um armazém de reciclagem. Cansado de não ver as poupanças crescerem e sabendo que a Opel oferecia melhores condições, procurou mudar-se para a fábrica de automóveis e conseguiu. Foi ali que esteve mais tempo. Cinco anos, conta. Pelo meio, numa das visitas de Verão a Portugal, decidiu oficializar o namoro com Arminda, que ia alimentando por carta. Ela morava numa povoação vizinha, aquela que se avista ao longe, na linha do braço esticado de Manuel. Casaram-se e a cerimónia acabou por ditar, prematuramente, o fim da aventura de emigração.

Não porque Manuel tenha decidido, logo ali, voltar a Portugal. O caso foi mais caricato. No registo de casamento, o nome de Arminda apareceu truncado e um primo de Manuel convenceu-o de que a forma de resolver aquilo, para que ficasse tudo direitinho e não houvesse problemas futuros, era irem aos registos centrais, em Lisboa, pedir a correcção. «E lá fomos. Sabe o que nos responderam? “Na vossa terrinha são muito burros Então não nos mandavam isso pelo correio, era preciso vir aqui?”» Manuel ri-se, com o riso baixinho e malandro que parece acompanhá-lo sempre. Certo é que, à custa desta viagem inesperada, atrasou-se no regresso à Alemanha. Quando chegou à Opel, a funcionária espanhola da secretaria disse que ele não tinha mais lugar ali. A justificação não serviu de nada. Foi despedido.

No registo de casamento, o nome de Arminda apareceu truncado e um primo de Manuel convenceu-o de que a forma de resolver aquilo, para que ficasse tudo direitinho e não houvesse problemas futuros, era irem aos registos centrais, em Lisboa, pedir a correcção. «E lá fomos. Sabe o que nos responderam? “Na vossa terrinha são muito burros Então não nos mandavam isso pelo correio, era preciso vir aqui?”».

O português ainda se aguentou por ali mais uns meses. O tempo suficiente para um colega, a quem dera a novidade do casamento, lhe ter profetizado, depois de saber que Arminda já tinha 40 anos: «Keine kinder. Já não havia filhos. Eu pensei cá para mim, pode lá ser… E não houve», recorda. No novo emprego, que arranjou em Colónia, Manuel viu-se a ganhar tão mal como quando chegara à Alemanha e, além disso, diz, «não se parava lá com o frio». Para ele, chegava. «Comecei a pensar: não, agora vou-me embora, vou virar-me à terra. Vou lá semear umas batatas e plantar umas cebolas para ir comendo.» E foi isso, traduz.

Construiu-se a casa, semearam-se as terras. Os filhos nunca apareceram, mas o casal teve logo nos primeiros anos a companhia de uma tia de Arminda que não largava a sobrinha por nada. Quando se fez a casa à entrada da aldeia, onde Manuel ainda mora e onde viu chegar o fogo de Outubro, já se construiu um quarto a contar com a idosa. Depois de ela morrer, ficaram os dois. Ele garante que nunca lhe passou pela cabeça voltar a sair dali. Voltar a emigrar ou procurar uma vida diferente numa cidade maior, como fizeram dois dos irmãos. «Por aqui andei, fomos cultivando uns bocaditos, uns que herdei do meu pai, outros que comprei», conta, antes de dizer: «E foi assim uma vida do caraças.»

Arminda morreu já há quinze anos. Teve um acidente vascular cerebral em casa, um segundo já no hospital de Viseu, quando estava internada. Sobreviveu apenas oito dias desde que a levaram de casa deitada num lençol. Já passou tempo suficiente para que Manuel possa brincar mais um pouco. «Eu, para aí sempre sozinho, ainda me lembrava de trazer para aí uma velha. Mas eu logo», e ri-se, «ainda vem para aí uma para me servir de castigo! Mais vale sozinho que mal acompanhado.»

Foi sozinho, por isso, que enfrentou o fogo, quando ele chegou pouco depois da meia-noite do dia 16 de Outubro.

Depois de o incêndio de Pedrógão Grande ter devastado famílias inteiras em plena Primavera, o pior dia do ano em fogos chegaria no Outono. Entre 14 e 16 de Outubro, segundo os dados apresentados pela cti chamada a investigar esta nova calamidade, ocorreram 914 ignições no país, 495 das quais no dia 15, altura em que a passagem do furacão Ophelia, associada às temperaturas elevadas e à seca que atravessava o país, foram decisivas na propagação incontrolável destes megaincêndios que devastaram os distritos de Castelo Branco, Coimbra, Guarda e Viseu.

Neste distrito, só no dia 15, foram registados 52 incêndios, um dos quais, o de Albitelhe-Campia-Vouzela, que terá começado pelas 17h20, acabaria por afectar os concelhos de Oliveira de Frades, São Pedro do Sul e Vouzela, destruindo dezenas de empresas, queimando aldeias e deixando, só em Vouzela, oito pessoas mortas, cinco das quais na freguesia de Ventosa, onde quatro idosos morreram no lugar de Vila Nova. A outra vítima mortal era um vizinho de Manuel, em Covelo.

Ali não se viam incêndios há muito, garante o homem de 82 anos. Mas este fogo, que chegou de noite à aldeia, «chegou para devastar tudo». «Em toda a volta, tudo o que não se vê e o que se vê, não há nada, nada que não fosse queimado», diz o velho, matutando na excepcionalidade do fogo que o rodeou naquela noite. «Às vezes ainda me ponho a pensar nisso. Uma pessoa faz uma fogueirazita para se aquecer, ou até na lareira lá de casa, e é preciso chegar os cavacos para diante, para pegar. Mas aquilo foi um fogo que não deixou um retalho de nada por queimar.»

Manuel deitara-se despreocupado com os incêndios. Já sabia que, a cumprir-se o ritual diário, iria acordar duas ou três vezes durante a noite. Mas, assim que acordou «do primeiro sono», já não pregou olho. Deitara-se sem vestígios de chamas nas proximidades. No início da madrugada, já estava rodeado pelo fogo. «Fui espreitar à janela e era fogo a toda a volta da casa. Eu só me lembrava: a única solução é fugir para a varanda, que fica de um lado onde não há quase nada para queimar. Só se for ali que eu escape», recorda-se.

Manuel deitara-se despreocupado com os incêndios. Já sabia que, a cumprir-se o ritual diário, iria acordar duas ou três vezes durante a noite. Mas, assim que acordou «do primeiro sono», já não pregou olho. Deitara-se sem vestígios de chamas nas proximidades. No início da madrugada, já estava rodeado pelo fogo. «Fui espreitar à janela e era fogo a toda a volta da casa. Eu só me lembrava: a única solução é fugir para a varanda, que fica de um lado onde não há quase nada para queimar. Só se for ali que eu escape», recorda-se. A casa fica junto à estrada, mas de um dos lados há uma encosta com árvores. E no terreno junto à casa estava amontoada lenha de uns pinheiros que o homem vendera, depois de mandar cortar as árvores. «Fui à cozinha, abri a porta e ainda o lume não tinha passado do caminho para dentro, mas já vinha um lumezito por baixo do portão e eu com aquilo carregado de lenha. Pensei, vou lá com um pauzito, esmirro aquilo a ver se não passa. Só que abri a porta e vinha um calor do pinhal para baixo que não fui capaz de sair. Voltei para dentro, fechei a porta e só espreitava por trás dos vidros, de um lado, do outro.»

Não precisou de sair para a varanda (nem o calor e o fumo o deixariam, provavelmente) e ficou dentro de casa, enquanto as chamas lhe consumiam um anexo e o de um vizinho. Sem carros de bombeiros para combater o incêndio à vista, diz que esteve «a arder a noite toda». Com a aldeia acordada e em sobressalto, a sobrinha de Manuel, que vive na parte mais alta da localidade, foi ajudar a apagar as chamas de uma casa que ardia e, incapaz de chegar à casa do tio, porque o fogo já não deixava, gritou-lhe: «Ó tio, vocês está bem?» «Até ver ainda não estou muito mal», diz ter-lhe respondido. E Manuel ri-se de novo. «Eu já nem sabia que jeitos havia de dar à minha vida. Até parece mal dizê-lo, mas foi verdade. Tinha ali um garrafão de aguardente e volta e meia ia lá dar uma estocada, que era para andar assim meio atordoado. E assim foi.»

A vítima mortal do Covelo foi um homem de 81 anos, que estaria a dormir e não se apercebeu do incêndio. A casa onde morava acabaria por arder toda

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O único bombeiro que diz ter visto, já a madrugada ia alta, apareceu para socorrer uma mulher que se sentiu mal. Manuel diz que ainda lhe perguntou «se não vinha água, para apagar este fogo», mas o homem ter-lhe-á dito que não andava a tratar disso. «Aqui não andou bombeiro nenhum e [o fogo] só terminou quando não havia mais que arder.»

A vítima mortal do Covelo foi um homem de 81 anos, que estaria a dormir e não se apercebeu do incêndio. A casa onde morava acabaria por arder toda. Quando Adriano Miranda chegou ao lugar, no dia 16 de Outubro, encontrou Manuel na parte alta da aldeia, junto à casa do sobrinho. Garante que, por essa altura, já o efeito da aguardente que o ajudara a suportar o medo da noite tinha passado. Deixou que lhe tirassem o retrato, mas não pensou muito mais no assunto, até uma sobrinha lhe aparecer lá em casa com o Público na mão e a fotografia dele na capa.

Depois, apareceram várias pessoas a querer deixar-lhe alguma coisa. Cabazes, um televisor, roupa. Em Janeiro, também já tinha recebido o apoio financeiro para reconstruir os barracões que lhe arderam – um junto à casa, o outro na parte alta da aldeia, na antiga habitação dos pais. Manuel não se vai esquecer do «inferno de lume» que lhe bateu à porta. Mas já leva demasiados anos, experiências e perdas para se deixar abater por aquela noite de Outono.

Quando Adriano Miranda chegou ao lugar, no dia 16 de Outubro, encontrou Manuel na parte alta da aldeia, junto à casa do sobrinho. Garante que, por essa altura, já o efeito da aguardente que o ajudara a suportar o medo da noite tinha passado. Deixou que lhe tirassem o retrato, mas não pensou muito mais no assunto, até uma sobrinha lhe aparecer lá em casa com o Público na mão e a fotografia dele na capa.

Apoiado ao cajado, dá mais uns passos e já está em casa. Ao final da tarde há-de voltar a subir o caminho que atravessa a aldeia, para ir jantar na casa do sobrinho onde faz todas as refeições. E depois regressa, à espera de mais um dia. Que Manuel não tem pressa de se despedir da vida. «Vamos por aqui amparando mais uns dias enquanto durar a licença. Acabando a licença…» E ri-se, claro. Mais uma vez.

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