O mito de Ceyx e Alcyone segue um padrão clássico da mitologia grega: uma manifestação de orgulho excessivo e arrogância (hubris) pela parte dos humanos é severamente punida pelos deuses que, depois, se apiedam e concedem uma atenuação da pena.

Ceyx (Ceíce), filho de Eosphorus (Eósforo ou Lúcifer), divindade que personifica a Estrela da Manhã, reinava em Trachis (na Grécia) e tomou como esposa Alcyone (Alcíone), filha de Aeolus (Éolo), deus dos ventos. O casal estava profundamente apaixonado e a sua vida era bem-aventurada e poderiam ter sido felizes para sempre, não fosse a hubris: Ceyx e Alcyone estavam tão satisfeitos consigo próprios que passaram a tratar-se por “Zeus” e “Hera”. Os verdadeiros Zeus e Hera (Júpiter e Juno, na versão romana) sentiram-se ultrajados e puniram o presunçoso par transformando-o em aves marinhas. Como Alcyone construía o seu ninho à beira-mar e este era sistematicamente destruído pelas ondas, Zeus e Hera acabaram por ter compaixão dela e determinaram que no período em que Alcyone chocava os seus ovos, um período de 14 dias centrado no solstício de Inverno, os ventos se acalmariam e as ondas poupariam o ninho.

Nesta gravura por Barnard Picart, datada de 1731, Ceyx e Alcyone, metamorfoseados em aves, surgem no canto inferior esquerdo, enquanto Aeolus, pai de Alcyone e deus dos ventos, aprisiona estes numa gruta, no canto inferior direito, para que as aves possam nidificar em paz

O mito está na origem da expressão inglesa “halcyon days”, que começou por designar um período de calmaria a meio das tempestades de Inverno e evoluiu para significar, presentemente, um período do passado em que se foi feliz ou se desfrutou de sucesso e reconhecimento e que se rememora com um sentimento de nostalgia.

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Nos séculos XVIII e XIX, os naturalistas costumavam possuir conhecimentos de latim e mitologia clássica, pelo que, quando se depararam com novos géneros de guarda-rios (ou martim-pescador, pequena ave da família Alcedinidae, de plumagem colorida e que ocorre frequentemente junto a cursos de água), baptizaram dois deles a partir do casal que os deuses tinham metamorfoseado em aves: Ceyx e Halcyon.

Halcyon senegalensis (martim-pescador-do-Senegal), uma espécie de guarda-rios que ocorre na África a sul do Sahara. Lineu identificou-o inicialmente como Alcedo senegalensis, mas foi depois reclassificado no género Halcyon

Nesta operação, a mitologia saiu estropiada, já que, na lenda grega, as aves eram marinhas e nidificavam na praia junto à rebentação, enquanto os guarda-rios – como o nome português explicita – vivem junto a rios e lagos (ainda que algumas espécies nem sequer tenham relação de proximidade com a água) e não ocorrem em habitats marinhos.

Ceyx erythaca (martim-pescador-pigmeu-oriental), uma espécie de guarda-rios disseminada pelo Sudeste da Ásia

Na verdade, o mito já antes sofrera alterações de monta às mãos do poeta romano Ovídio, que o incluíra nas suas Metamorfoses: a hubris do casal e a vingança dos deuses foram suprimidas, Ceyx perece num naufrágio e quando Alcyone se depara com o seu cadáver fica tão desesperada que se transforma numa ave de piado lamentoso e os deuses, compadecidos, acabam por permitir que o casal se reúna, metamorfoseando Ceyx também numa ave – e tem sido esta a versão do mito que prevaleceu na literatura e nas artes plásticas.

Antoine Houdar de La Motte (1672-1731), o libretista da ópera Alcione, de Marin Marais (1656-1728), partiu da versão de Ovídio e remodelou-a radicalmente: Ceix e Alcione (daqui em diante adoptar-se-á a grafia usada no libreto) estão prestes a contrair matrimónio, para grande desgosto de Pelée, que é o melhor amigo de Ceix e está secretamente apaixonado por Alcione. Quem também não está contente com o casamento é o mago Phorbas, que vê Ceix como usurpador do trono que foi dos seus antepassados, e convoca, com a ajuda da sua discípula, Ismène, uma horda de Fúrias, que semeiam o pânico entre os convidados da cerimónia nupcial e incendeiam o palácio real. O Sumo Sacerdote lê nestes eventos um sinal de que os deuses desaprovam o matrimónio e suspende a cerimónia, o que deixa Ceix e Alcione desolados e Pelée atormentado por sentimentos ambivalentes.

Dado que o funesto evento tem inequívoca marca infernal, o desorientado Ceix decide obter informações junto de alguém que sabe ter relações com as potências infernais: o mago Phorbas (embora sem suspeitar que foi ele o responsável pelo sucedido). Phorbas e Ismène começam por tentar convencer Ceix a renunciar ao casamento com Alcione, mas, ao enfrentar a sua recusa obstinada, Phorbas muda de táctica e revela a Ceix que a única solução para o seu caso está no oráculo de Apolo em Claros, na costa da Jónia. Ceix zarpa de imediato para Claros, confiando a sua noiva ao seu melhor amigo – Pelée. Na ausência de Ceix, Alcione visita o templo de Juno, a fim de oferecer um sacrifício para que Ceix regresse são e salvo, e tem um pesadelo em que vê o noivo perecer num naufrágio. O sonho é tão realista que, quando desperta, Alcione fica à beira de morrer de desespero.

“O naufrágio de Ceyx”, numa reimpressão de 1703 da edição de c.1639 de As metamorfoses, de Ovídio, ilustrada por Johann Wilhelm Bauer (1600-1640)

Ao vê-la nestes estado, Pelée fica tão perturbado que acaba por confessar-lhe que a ama e que desejara ardentemente que o matrimónio com Ceix não se concretizasse – termina suplicando a Alcione que o mate, mas, quando se apanha com a lâmina na mão, é a si mesma que a transtornada Alcione tenta ferir.

Neste transe, há uma reviravolta (assaz incongruente): Phosphore, pai de Ceix, desce dos céus e informa Alcione que o noivo está de volta e que não tardarão a unir-se. Alcione corre, esperançada, para a costa, apenas para encontrar o cadáver de Ceix, que as ondas depositaram na praia.

“Ceyx and Alcyone”, por Richard Wilson, 1768

Incapaz de suportar mais esta provação, Alcione perde de vez a razão, toma a espada de Ceix e mata-se; entretanto, Pelée, julgando que Alcione e Ceix vão finalmente casar-se, também já partiu em busca de um lugar recatado onde pôr termo à vida.

É então que Neptuno, compadecido com tanto sofrimento, emerge das ondas com aparato, rodeado da sua corte, e ressuscita Ceix e Alcione e pune Phorbas transformando-o num medonho rochedo, num daqueles momentos deus ex machina em que a ópera barroca era fértil e que permite terminar a narrativa no tom jubiloso que era obrigatório nos espectáculos da época.

[A radiosa Chaconne que fecha Alcione, por Le Concert des Nations, com direcção de Jordi Savall, do álbum Les grandes eaux musicales de Versailles (Alia Vox)]

Embora seja hoje conhecido quase exclusivamente pela sua soberba e abundante produção para viola da gamba, Marin Marais foi também relevante no domínio da ópera (ou tragédie lyrique, como o género era designado em França). Fez parte, desde os 19 anos, da orquestra da Académie Royale de Musique – a orquestra da Opéra de Paris, domiciliada no Théâtre du Palais-Royal –, que era então dirigida por Jean-Baptiste Lully, que não só foi o “pai fundador” da tragédie lyrique, como monopolizou o género durante décadas – até à sua morte, em 1687. Marais ascendeu à direcção da Académie Royale de Musique em 1704 e foi para esta instituição que compôs Alcione, estreada a 18 de Setembro de 1706.

A ópera foi bem recebida e teve várias reposições, em 1719, 1730, 1741, 1756, 1757 e 1771, passando por sucessivas revisões e adaptações. É de realçar que tenha continuado a ser levada à cena após a morte do compositor (em 1728), o que não era usual na época. Marais compôs mais três óperas, todas sobre temas mitológicos – Alcide (1693, em colaboração com Louis Lully, filho de Jean-Baptiste), Ariane et Bacchus (1696) e Sémélé (1709) – mas nenhuma desfrutou de sucesso comparável ao de Alcione, que tinha a seu favor a espectacularidade das cenas marítimas – sobretudo a tempestade que ocorre dentro do sonho de Alcione – e da irrupção das Fúrias na cerimónia nupcial.

Retrato de Marin Marais por André Bouys, 1704

Porém, Alcione não voltou a ser encenada desde 1771 e nem sequer o revivalismo da ópera barroca a trouxe novamente ao palco, embora em 1990 tenha surgido uma gravação integral, dirigida por Marc Minkowski (Erato). É aqui que entra em cena Jordi Savall, o maior conhecedor da música de Marais, uma vez que tem vindo a gravar quase toda a sua obra para viola da gamba, empreendimento que iniciou em 1978 (na Astrée) e prosseguiu até ao século XXI (já na sua editora, a Alia Vox). Savall providenciou também a banda sonora para Tous les matins du monde (1991), filme de Alain Corneau sobre a relação (ficcionada) entre o jovem Marais e o seu mestre, o Sieur de Sainte-Colombe, e gravou em 1993, para a Astrée, um disco (entretanto reeditado pela Alia Vox) com as Suites des airs à jouer (isto é, os excertos instrumentais) de Alcione.

Para a estreia moderna de Alcione, que teve lugar a 26 de Abril de 2017, na Opéra Comique de Paris, com o coro e orquestra de Le Concert des Nations e encenação de Louise Moaty, Savall criou uma partitura híbrida, adicionando ao original de 1706 as inserções que lhe pareceram mais válidas das versões posteriores.

[Versão integral de uma récita de Alcione, com direcção de Jordi Savall e encenação de Louise Moaty, realizada em Abril-Maio de 2017, na Opéra Comique de Paris]

O presente CD triplo foi captado ao vivo na Opéra Comique em Maio de 2017 e tem um som límpido e espaçoso, restituindo a sonoridade opulenta de Le Concert des Nations sem os ruídos extra-musicais (vindos do palco ou do público) que por vezes atormentam os registos de ópera ao vivo. A engenharia de som toma a invulgar opção de não destacar as vozes solistas em relação à orquestra, o que pode não agradar a quem esteja habituado a que aquelas ocupem o primeiro plano e a orquestra seja relegada para o fundo. É certo que nalguns momentos, sobretudo no Prólogo e no I Acto, há momentos em que a orquestra submerge parcialmente os cantores, mas é uma solução mais natural do que as gravações em que o solista parece estar a centímetros do microfone e a orquestra a 20 metros de distância.

A gravação de “Alcione” na Opéra Comique em Maio de 2017 (Alia Vox/Megamúsica)

A maior parte da componente vocal da ópera recai sobre Alcione (a soprano Lea Desandre), Pelée (o barítono Marc Mauillon) e, em menor medida, sobre Ceix (o tenor Cyril Auvity), já que este sai de cena no final do III Acto e só regressa nos últimos instantes do V Acto para proferir três palavras (o que justifica que a ópera se intitule Alcione e não Ceix et Alcione). Os três cantores, com rico currículo no barroco francês, têm desempenhos seguros e expressivos e o restante elenco desempenha os seus papéis a contento, com excepção do baixo Antonio Abete, que no papel de Tmole, no Prólogo, soa nasalado, constrangido e em apuros para se fazer ouvir, embora exiba melhor forma quando retorna, no V Acto, como Neptuno.

Marais proporciona aos três cantores principais várias oportunidades para brilhar, quase sempre associadas a lamentos: é o caso de Mauillon em “Ô mer, dont la calme infidèle”, de Auvity e Desandre em “C’est toi que j’en atteste” (a dolorosa despedida dos amantes) e de Desandre em “Amour, cruel Amour”. Desandre instila veracidade na angústia de Alcione ao despertar do pesadelo em que assistiu ao naufrágio do noivo (“Où suis-je et qu’ai-je vu! Je perds ce que j’adore”) e o início do V Acto é de grande intensidade dramática e há excelentes desempenhos de Mauillon em “Ô nuit! Redouble tes ténèbres”, de Desandre e Mauillon em “Barbares, laissez moi” e “Ombre de mon époux”, e de Desandre em “Mais, quel funeste objet a frappé mes regards” (o mergulho de Alcione no desespero terminal). Apesar de uma ou outra incongruência do libreto, a ópera acaba por fazer o ouvinte sentir genuína empatia por estas três personagens trágicas vogando ao sabor dos caprichos do destino, numa condição que é sintetizada no lamento de Pelée e Alcione no final do III Acto: “Céus! Haveis-me dado um coração terno e sensível apenas para melhor o trespassares com os vosso funestos golpes?”.