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“O semáforo está ligado.” Olaf Scholz anunciou assim o acordo selado entre SPD, FDP e Verdes para formar um novo governo alemão, referindo-se à alcunha criada para apelidar a coligação com base nas cores dos três partidos (vermelho, amarelo e verde). Assim que as estruturas das três forças derem o “OK”, o Parlamento poderá aprovar o novo acordo e a Alemanha terá oficialmente um novo governo.
Foram cinco semanas de negociação, 22 grupos de trabalho, 300 pessoas envolvidas na discussão e o resultado final é uma proposta de 177 páginas que, aparentemente, consegue deixar satisfeitos sociais-democratas, liberais e ecologistas — apesar das enormes diferenças entre os três partidos.
“Estou extremamente bem impressionado com a eficiência e o profissionalismo deste processo”, admite ao Observador Eric Langenbacher, professor alemão de Política Comparada na Universidade de Georgetown. “Um programa tão detalhado ser partilhado por três partidos tão diferentes e apresentado em tempo quase recorde… E praticamente sem fugas de informação nem sinais de tensão.”
Corinna Blutguth, investigadora do German Marshall Fund, também destaca o que lhe parece ser uma tentativa dos três partidos de impor um novo estilo na política alemã: “A forma como organizaram as negociações, sem terem saído praticamente detalhes nenhuns para a imprensa, deixou claro que querem aplicar um novo tom”, diz a investigadora ao Observador.
O processo foi, por isso, tranquilo. E o conteúdo, poderá ser inovador? Scholz garante que sim. Na conferência de imprensa, o futuro chanceler invocou o primeiro semáforo construído na Alemanha: colocado na Potsdamer Platz (Berlim) em 1924, muitos duvidavam de que funcionasse realmente — mas funcionou. “O nosso objetivo é que este semáforo seja igualmente inovador”, afirmou Scholz.
As propostas são muitas e resultam num misto de inovação e manutenção do statu quo: aumento do salário mínimo e fim da energia carbónica até 2030, por um lado, mas regresso do teto da dívida por outro. “É algo tipicamente alemão: mudança e continuidade na mesma proposta”, resumiu ao New York Times Cem Özdemir, negociador dos Verdes.
O bastião social para os sociais-democratas e as Finanças controladas para os liberais
Um dos pontos mais relevantes que saem desta negociação é o facto de cada um dos três partidos conseguir reclamar vitória de alguma forma. “Todos conseguiram praticamente tudo o que queriam”, aponta o professor Langenbacher. “Os Verdes conseguem todos os ministérios ligados ao Ambiente. O FDP consegue as Finanças e a infraestrutura digital. E o SPD consegue tudo o que está ligado a política social”.
Na contabilidade, os sociais-democratas são quem sai a ganhar, com mais pastas — e, claro, a chancelaria. Nada que surpreenda, tendo em conta que, apesar da curta diferença face à CDU, o SPD foi o partido mais votado nas eleições de outubro. “Fiquei até surpreendido com o facto de o SPD ter conseguido tanto”, acrescenta o professor. “Oito ministérios, que incluem o novo ministério das Obras Públicas e a chancelaria.” Junta-se a pasta do Trabalho e os sociais-democratas podem reclamar para si os louros de medidas como o aumento do salário mínimo para os 12€ por hora (atualmente está nos 9,60€) e a construção de 400 mil novos apartamentos para resolver o problema da habitação em várias cidades.
“Por outro lado, acho que o FDP ficou com menos do que eu esperava”, admite Langenbacher. Mas, então, porque estão os liberais tão contentes com o resultado final? Na conferência de imprensa, o líder Christian Lindner elogiou não só o processo de negociação como o próprio futuro chanceler, Olaf Scholz. É que, embora o FDP tenha ficado abaixo na contagem de ministérios (apenas quatro), Lindner será o próximo ministro das Finanças — provavelmente o ponto mais importante para os liberais em toda a negociação.
O FDP há muito que defende o rigor das “contas certas” e, com a pasta das Finanças, conseguirá mais facilmente garantir que o SPD e os Verdes, economicamente mais à esquerda, não põem em causa as principais bandeiras dos liberais. O documento final não explica como resolver alguns dos principais imbróglios que opõem FDP a SPD e Verdes nesta matéria: enquanto os primeiros são completamente contra a extensão de instrumentos como a “bazuca” de fundos europeus ligados à Covid, os Verdes defendem uma mutualização da dívida europeia.
Para já, a coligação “semáforo” recorreu a soluções criativas: a partir de 2023, a Alemanha voltará a ter um teto máximo da dívida pública inscrito na Constituição (o que agrada aos liberais). Até lá, o novo governo compromete-se a investir um valor adicional de fundos públicos “sem precedentes” na construção de infraestruturas e no combate às alterações climáticas (o que agrada a verdes e sociais-democratas).
No fim, todos se dizem contentes. Lindner pode gabar-se de ter a pasta das Finanças — “a posição mais importante em qualquer governo alemão a seguir à de chanceler”, apontava à Deutsche Welle o cientista político Frank Decker. Scholz pode dizer que, consigo, haverá investimento e flexibilidade como nunca houve no tempo de Angela Merkel.
Verdes: a vitória do fim do carvão e o presente (envenenado?) dos Negócios Estrangeiros
E os Verdes, podem gabar-se de quê, ao certo? Bom, de bastante, na verdade. Com os ecologistas no poder, a Alemanha compromete-se a acabar com o carvão até 2030, oito anos antes do que tinha garantido anteriormente — e os Verdes podem gabar-se de ter imprimido essa matriz no programa. Além disso, conseguem a pasta da Economia, que se torna num superministério que engloba também as questões ambientais, e que será liderado por Robert Habeck, co-líder do partido. A outra líder, Annalena Baerbock, será a próxima ministra dos Negócios Estrangeiros, uma das pastas de maior estatuto.
Essa é, contudo, a maior incógnita deste novo executivo: que política externa terá uma coligação onde os Verdes e o FDP defendem uma posição muito mais dura contra países como a Rússia e a China do que os sociais-democratas? “É aí que vamos ver quanta influência terá o chanceler Scholz”, arrisca o professor Langenbacher. “Para já, há várias crises agudas que exigem atenção imediata como a dos migrantes na Bielorrússia e a das tropas russas na fronteira com a Ucrânia. Ainda é cedo para prever como vai o novo governo reagir, mas terá de reagir.”
A relação com a Rússia, por exemplo, será provavelmente um dos pontos de maior fricção entre Baerbock e Scholz. Os ecologistas e os liberais defendem uma postura muito mais dura com Moscovo quando comparada com os sociais-democratas. Veja-se o caso do gasoduto Nord Stream 2, vindo da Rússia: enquanto os primeiros querem cancelar o negócio, o SPD mantém-se favorável. Para já, não há qualquer compromisso público sobre o projeto — segundo a Der Spiegel, nem os Verdes quiseram reabrir o tema nas negociações, por ser tão controverso.
“Ainda não é claro como irão estas posições refletir-se na política governamental, já que ainda não sabemos se Scholz vai imitar Merkel e manter o controlo de facto sobre a política externa ou se a ministra dos Negócios Estrangeiros vai recuperar alguma da autonomia que o ministério tinha perdido”, apontou Marcus Colla, professor de História Europeia na Universidade de Oxford, na revista do The Lowy Institute. Eric Langenbacher acrescenta uma outra preocupação: “A maioria destes políticos não tem muita experiência em política externa e o ambiente internacional não é plácido”, avisa.
Corinna Blutguth sublinha as dificuldades que a coligação “semáforo” pode enfrentar nas questões de política externa, com particular ênfase no caso russo: “Os conflitos na Bielorrússia e na Ucrânia foram frequentemente mencionados na conferência de imprensa. O documento, porém, enfatiza a vontade de cooperar com a Rússia em questões como a saúde, o hidrogénio e o clima, ao mesmo tempo que pede explicitamente à Rússia que pare com as políticas de desestabilização nos países vizinhos”, aponta a investigadora do German Marshall Fund.
Um governo “progressista” a anos-luz da CDU de Merkel
Na contabilidade final, cada um dos três partidos tem argumentos para cantar vitória sobre o resultado da negociação. Um êxito de relações públicas, a que se soma a sensação de mudança face aos 16 anos de Angela Merkel, com algumas medidas estrategicamente escolhidas, como a legalização do uso da cannabis e o fim da lei que proibia os médicos de falar em público sobre a interrupção da gravidez.
“É um documento com um potencial muito progressista”, resume Langenbacher, que destaca ainda outras medidas, como a descida da idade mínima para votar dos 18 para os 16 anos e a nova lei da cidadania, que permitirá legalizar imigrantes mais facilmente. Uma viragem à esquerda para marcar a diferença face à CDU/CSU, que está agora pela primeira vez na oposição ao fim de 16 anos.
Não por acaso, o título escolhido para o documento foi Mehr Fortschritt wagen (“Vamos ousar mais progresso”). “A frase alude a uma famosa declaração de Willy Brandt para ‘Ousar mais democracia’, ligada à primeira coligação entre o SPD e o FDP nos anos 60 — a primeira coligação da qual a CDU não fez parte”, destaca Blutguth. “Christian Lindner também se referiu a esta coligação durante a conferência de imprensa, dizendo que é necessária uma modernização da sociedade alemã. Esta coligação quer representar progresso, reformas, modernidade”.
Uma questão de estilo, mas não só. Algumas destas medidas, lembra a Deutsche Welle, podem ter um caráter não apenas ideológico, mas também pragmático: “Apelam a uma demografia que é mais favorável a votar nos partidos que estão no governo do que na CDU”. Os jovens apoiam em larga maioria os Verdes e o FDP, os partidos preferidos pelos eleitores abaixo dos 30 anos — que ajudaram os dois partidos a alcançar os seus melhores resultados na última eleição.
A coligação “semáforo” não deixa nada ao acaso e, para já, parece ter concluído o processo de negociação com sucesso. Mas o dia-a-dia no poder é bem mais agitado e esta aparente harmonia pode não ser eterna. “Como sempre, é preciso ver como este ‘novo tom’ se vai traduzir em políticas concretas”, avisa Corinna Blutguth. “E isto vai depender das diferentes personalidades em jogo, bem como dos eventos externos.”
À espreita está já o primeiro grande desafio: a pandemia de Covid-19 continua a fazer vítimas e a Alemanha enfrenta um crescimento acelerado de uma nova vaga. A imprensa alemã garante que a pasta da Saúde foi a menos disputada em toda a negociação. No fim, acabou por ficar com os sociais-democratas. É o preço que Olaf Scholz terá de pagar para poder assumir o cargo de chanceler.