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Alekhine V Stahlberg
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Alexander Alekhine nasceu em 1892 no seio de uma família moscovita abastada. Anti-semita, acusado de espionagem, em constante fuga e morto num quarto de hotel no Estoril

Getty Images

Alexander Alekhine nasceu em 1892 no seio de uma família moscovita abastada. Anti-semita, acusado de espionagem, em constante fuga e morto num quarto de hotel no Estoril

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Alexander Alekhine: a política, a moral e a guerra no tabuleiro de um mestre de xadrez

Num novo livro, Arthur Larrue fala sobre a “força diabólica” do grande mestre de xadrez Alexander Alekhine, um russo naturalizado francês enredado na II Guerra Mundial e conivente com os nazis.

“Este livro mostra que os filhos da puta que são génios não deixam de ser nem filhos da puta porque são génios, nem génios porque são filhos da puta.” A explicação de Arthur Larrue é exaltada pela eloquência e vitalidade com que se pronuncia. A camisa colorida e os pequenos óculos de massa grossa castanha ajudam a compor a figura e o cenário do escritor que, numa tarde quente de maio, se encontra sentado na sombra de uma esplanada no Jardim da Estrela, em Lisboa, a falar sobre o seu mais recente romance, A Diagonal Alekhine, publicado em português pela Quetzal.

E este raciocínio sobre “génios e filhos da puta” – no caso, sobre o protagonista do livro, o astro do xadrez Alexander Alekhine – tem bem mais alcance do que parece. É como se toda esta corporalidade e paixão colocadas nas palavras lhes conferissem uma clareza óbvia: o caminho para pensarmos acerca de génios cujas personalidades são ou eram execráveis é precisamente o de não separarmos a pessoa da obra. Mais: devemos manter essa tensão, porque essa tensão confere âmago, confere camadas, confere importância, não só à própria arte como à História.

“Tinha já há muito tempo um problema com várias admirações artísticas, que são filhos da puta e génios ao mesmo tempo”, explica Larrue. “Por exemplo, Louis-Ferdinand Céline, na literatura francesa, que escreveu artigos anti-semitas antes da II Guerra Mundial. Heidegger, que foi durante muitos anos o meu filósofo favorito. Pode ser o melhor filósofo do século XX, mas há fotografias dele com um pin nazi [no casaco]. Isso é um problema, a filosofia é uma ciência da sabedoria. E ser nazi não faz sentido.” Refere ainda o maestro e compositor Wilhelm Furtwängler, os escritores Ernst Jünger e Pierre Drieu de la Rochelle. “É bom ter a capacidade intelectual de manter pessoa e obra ao mesmo tempo, porque é assim na vida. Cada frase deste livro tem esta tensão. Esta pergunta deve ser viva. E ‘viva’ deve querer dizer ‘não resolvida’.”

A capa da edição portuguesa de "A Diagonal Alekhine", livro de Arthur Larrue (Quetzal)

Alexander Alekhine nasceu em 1892 no seio de uma família moscovita abastada e cedo começou a destacar-se na arte e ciência do xadrez. Após a Revolução Russa, chegou a ser acusado de espião e fugiu rumo a Paris, naturalizando-se entretanto francês. Durante a década de 20, ganhou a maior parte dos torneios em que jogou e, em 1927, tornou-se no quarto campeão mundial de xadrez ao derrotar o cubano José Raúl Capablanca, que seria o seu grande rival ao longo da vida. Com a II Guerra Mundial e a França ocupada pelos nazis, passou a jogar em torneios organizados pelo III Reich. Foram inclusive publicados artigos anti-semitas sobre xadrez assinados com o seu nome. Um jogador de ataque, implacável, veio a morrer num quarto de hotel no Estoril, na década de 40.

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“Alekhine foi anti-semita. Houve muita gente anti-semita nesta época. Era uma opinião bastante banal, na França, na Rússia, na Alemanha. Cada país tem a sua tradição. Portugal tem também a sua”, contextualiza Arthur Larrue. “Portugal falhou com Espinoza. É ridículo. A mãe sai [de Portugal] com Espinoza na barriga por causa do anti-semitismo”, diz, referindo-se ao filósofo holandês do século XVII Baruch Espinoza, de origem sefardita portuguesa, cuja família fugiu da Inquisição lusitana rumo ao norte da Europa.

Perante as intrigas em que se vê enredado, nos meandros e no rescaldo da II Guerra Mundial, Alekhine lembra-nos de que o ser humano é uma personagem complexa, vítima e carrasco, cativo e livre. Vida e jogo sobrepõem-se num tabuleiro só e, com Alekhine, essa justaposição é elevada ao zénite. “Sou muito existencialista neste sentido, acho que há sempre escolha”, defende Larrue. “Se somos livres, quanto custa então a liberdade? O que estaremos prontos a pagar por ela?”, acrescenta. “Seria uma história incrível se o campeão do mundo tivesse recusado a narrativa nazi, tivesse feito qualquer coisa para dizer que não era nazi, e tivesse salvado as três personagens judias desta história.”

“O xadrez é a expressão da vida e do estilo de várias pessoas que são aqui protagonistas da história. É o espelho de uma época de alta conflitualidade entre nações e entre ideias”, explana Larrue. “Cada revolução intelectual, por exemplo, tem a sua aplicação no xadrez. A revolução psicanalítica teve o seu campeão do mundo, Emanuel Lasker. Foi da mesma geração de Freud e aplicou a sua teoria da psicologia no jogo.”

Larrue aponta para o facto de nem o desencanto com o fim da aristocracria russa poder servir de motivação para esta aliança aos nazis, nacionais-socialistas, porque foram precisamente alguns aristocratas alemães que atentaram contra a vida de Hitler. “Alekhine é instrumentalizado pelos nazis, evolui no mundo nazi, continua a jogar xadrez nas competições nazis, foi amigo de um grande nazi, o Hans Frank”, esclarece Larrue, referindo que ser nazi e anti-semita são coisas diferentes. “Alekhine foi utilizado como poder de propaganda pelo regime. É diferente de ser nazi. Alekhine é um oportunista.”

Alekhine foi um rei. Queria continuar a ser rei e os nazis deram-lhe condições para continuar a sê-lo. “O rei é a peça mais importante, mas é também a mais fraca de todo o tabuleiro”, conta Larrue. O rei anda apenas uma casa, em qualquer direção, e o fim do jogo acontece quando o rei é morto. “O rei é muito feio, não pode defender-se sozinho. Anda lentamente. Este livro é também sobre isso.”

A Diagonal Alekhine revela-nos que uma época pode sempre ver-se refletida num tabuleiro de xadrez. “O xadrez é a expressão da vida e do estilo de várias pessoas que são aqui protagonistas da história. É o espelho de uma época de alta conflitualidade entre nações e entre ideias”, explana Larrue. “Cada revolução intelectual, por exemplo, tem a sua aplicação no xadrez. A revolução psicanalítica teve o seu campeão do mundo, Emanuel Lasker. Foi da mesma geração de Freud e aplicou a sua teoria da psicologia no jogo.”

Arthur Larrue Portrait Session

Francês a viver em Portugal, Larrue deu aulas de literatura francesa em São Petersburgo e segue atentamente a guerra: "São cidades onde passei ou vivi, como Odessa. É uma espécie de choque emocional"

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Uma mistura de factos históricos com elementos dramáticos ficcionados, A Diagonal Alekhine faz um retrato moral, mas também político e artístico da vida daquele que é considerado um dos maiores jogadores de xadrez de sempre. Para Larrue, é por isso difícil considerar esta obra como literatura de índole meramente política, ele que escreveu antes o romance Orlov La Nuit, centrado na queda do voo da Malasya Airlines no leste da Ucrânia, em 2014. “Todas as coisas são políticas, direta ou indiretamente”, sublinha. “Gostaria de escrever uma literatura poética no sentido em que está a fazer coisas, quando o verbo ‘faz’”, diz, batendo com o punho fechado na palma da outra mão. “Se fazes uma obra poética, ela faz qualquer coisa concreta. E fazer qualquer coisa concreta é agir no sentido político.”

As vidraças grandes do café, que tem a forma de um semi-círculo, deixam ver no interior vários grupos de homens reformados, boinas ou bonés na cabeça, a jogarem às cartas nas poucas mesas que se encontram à direita. Quando têm uma carta que lhes arrecadará aquela mão, colocam-na em cima da mesa com veemência, os nós dos dedos a baterem contra o tampo. Mataram a jogada, como o cowboy que conseguiu disparar primeiro e acaba a soprar no cano do revólver.

Para Arthur Larrue, este livro pretende também desconstruir o orgulho da vitória. “Pretende estragar esta ideia muito masculina de que o melhor é o gajo que mata o outro – que é basicamente o princípio do xadrez”, considera. “’Eu sou o melhor do mundo porque matei toda a gente, ninguém pode matar-me.’” É um retrato por excelência do culto da força masculina. “O xadrez, que é uma disciplina maravilhosa, que tem uma cultura incrível, é totalmente disfuncional no que se refere ao sexismo”, comenta Larrue, referindo que se trata de um problema ainda hoje. “Tens uma proporção de mulheres que é ínfima. Por razões sociológicas mas também, pela existência lá atrás, do valor tipicamente masculino de ser o melhor. E ser o melhor significa matar o adversário.”

A Larrue interessa-lhe trabalhar “com indícios, com sensibilidades, com sentimentos”. “Através da figura de Alekhine, tocamos numa força obscura, numa agressividade, numa violência – que está lá, no tabuleiro”, explica. “Se amanhã for entrevistar um jogador de xadrez e perguntar quem foi Alekhine, vai dizer-lhe que foi um jogador extraordinário, com uma agressividade, uma inventividade, uma crueza incríveis. Uma espécie de força diabólica.”

Houve também uma rainha nesta história, a quarta e última mulher de Alekhine, a artista norte-americana Grace Wishaar, abastada e que financiava a vida faustosa de ambos. Ele era o seu quinto marido. “Alekhine não parece ser muito modernista. A sexualidade do Alekhine… Ele não seria muito interessado, não sei… Não me parece que fosse uma coisa sensual entre eles”, caracteriza Larrue. “Uma vez fui a Espanha e uma grande mestre de xadrez feminina perguntou-me qual era para mim a coisa mais misteriosa do Alekhine. Eu respondi que era a relação de Alekhine com as mulheres. O xadrez é um mundo à parte.”

Francês a viver em Portugal, parisiense que deu aulas de literatura francesa em São Petersburgo entre 2009 e 2013, Arthur Larrue diz-se um russófilo assumido, para quem este livro é também um retrato da violência contemporânea russa. Cidades que estão referidas no livro, como Odessa, são agora de novo protagonistas no contexto da guerra que decorre da invasão russa à Ucrânia. “Tenho uma pena enorme, porque é uma parte importante da minha vida. Trata-se de amigos, relações, memórias. São cidades onde passei ou vivi, como Odessa ou São Petersburgo”, revela. “É uma espécie de choque emocional. E depois foi perceber que se trata de uma guerra exterior mas também interior – dos interesses do regime de Putin contra o povo russo.”

Em 2013, Larrue publicou Partir en Guerre, um romance autobiográfico, ligado ao movimento Voïna, um grupo clandestino de artistas dissidentes do regime de Putin a que esteve ligado. Uma das intervenções mais conhecidas do coletivo aconteceu em 2010, quando na ponte elevadiça junto ao edifício da FSB, os serviços secretos russos, em São Petersburgo, desenharam um falo gigante com tinta de emulsão branca, intitulado Giant Space Dick.

Alexander Alekhine Chess Champion 1927 In Buenos Aires

Alekhine, que aos 53 anos estava sozinho e no dia 24 de março de 1946 apareceu morto num quarto no Hotel Parque, no Estoril, e que hoje já não existe, passou a vida a jogar com a morte

Gamma-Keystone via Getty Images

Do grupo, fez parte Nadya Tolokonnikova, um dos elementos da banda de punk feminista Pussy Riot, que em 2012 deu um concerto na catedral de Cristo Salvador em Moscovo, como forma de protesto contra o apoio do líder da Igreja Ortodoxa Russa, o patriarca Kirill I, ao então candidato Vladimir Putin a presidente da Rússia. Três mulheres, uma das quais Nadya Tolokonnikova, foram presas e o caso foi alvo de grande atenção mediática a nível mundial. Larrue escreve o nome da artista num papel, a sua letra é bonita e cuidada. Explica que o é porque faz parte do seu trabalho: escreve por vezes à mão.

A Larrue interessa-lhe trabalhar “com indícios, com sensibilidades, com sentimentos”. “Através da figura de Alekhine, tocamos numa força obscura, numa agressividade, numa violência – que está lá, no tabuleiro”, explica. “Se amanhã for entrevistar um jogador de xadrez e perguntar quem foi Alekhine, vai dizer-lhe que foi um jogador extraordinário, com uma agressividade, uma inventividade, uma crueza incríveis. Uma espécie de força diabólica.”

Alekhine, que aos 53 anos estava sozinho e no dia 24 de março de 1946 apareceu morto no seu quarto humilde no Hotel Parque, no Estoril, e que hoje já não existe, passou a vida a jogar contra a morte. Como o cavaleiro no filme de Ingmar Bergman, “O Sétimo Selo”, Alekhine sabia que a vitória seria sempre sua. Se a personagem de Bergman consegue adiar a morte uma última vez, Alekhine venceu-a de vez. “A capacidade de um homem ser imortal… ele ganhou”, explica Larrue, revelando que existem pelo menos dez biografias sobre Alekhine. “Estamos aqui a falar dele.”

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