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Ana Isabel Pedroso, completamente equipada, na unidade de cuidados intensivos do Hospital de Cascais
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Ana Isabel Pedroso, completamente equipada, na unidade de cuidados intensivos do Hospital de Cascais

Ana Isabel Pedroso, completamente equipada, na unidade de cuidados intensivos do Hospital de Cascais

Ana Isabel Pedroso, médica em Cascais: "Estamos muito cansados, muito cansados, muito cansados"

Ana Isabel Pedroso é médica na UCI do Hospital de Cascais e conta em entrevista como todos tentam enfrentar a terceira vaga. Agora, o normal é trabalhar 100 horas por semana.

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Foi uma entrevista dura e difícil, onde os milhares de mortos da Covid-19 em Portugal surgiram em mais do que uma ocasião, mas que acabou de forma improvável nos tempos que correm — sobretudo quando o tema é a pandemia e o combate que os profissionais de saúde, cada vez mais extenuados, continuam a travar contra ela, em turnos de 24 horas, várias vezes por semana. Em resposta à última questão, Ana Isabel Pedroso, internista e intensivista a trabalhar no Hospital de Cascais, respondeu com uma gargalhada, uma espécie de treino para aquilo que tenciona fazer assim que a população estiver imunizada em massa e o coronavírus se junte à galeria de vírus mais ou menos inofensivos.

“É tudo o que eu quero, é rir-me na cara da Covid”, reconheceu a médica. Depois de na primeira vaga da doença ter abandonado a casa onde mora com o marido e os dois filhos, de 6 e 8 anos, está agora mais empenhada do que nunca em ajudar os doentes que todos os dias chegam à unidade de cuidados intensivos — e, pelo menos, nas poucas noites em que não fica no Hospital de Cascais, já vai dormir com a família.

Desde que a terceira vaga começou, para rapidamente deixar os hospitais do país em estado de caos e pré-catástrofe, o normal é Ana Isabel Pedroso fazer dois ou três turnos de 24 horas por semana. “Pelo menos.” Com os colegas é igual: “Chegamos a fazer cento e tal horas numa semana, à vontade. Acho que aguentamos isto porque sabemos que fazemos a diferença. Se não formos nós, quem é que vai fazer?”, pergunta, com o otimismo de quem se “agarra aos vivos” e faz questão de ignorar os 90% de mau prognóstico para apostar tudo nos 10% que sobram. “Não vou ficar parada a olhar para o contentor. Vejo-o, respeito-o, quero estar longe dele, e vou trabalhar com os vivos, que é nesses que nós podemos mudar e fazer alguma coisa”, garante ainda, para logo a seguir assumir que as lágrimas e o sono a ajudam a fazer reset e a afugentar o espectro da morte.

Ao longo de pouco mais de meia hora, a médica, de 36 anos, falou ao Observador sobre a situação no seu hospital e na especialidade que escolheu — “Somos muito poucos a nível nacional”. E também desabafou sobre o combate à pandemia e a incompreensão que nutre por quem não cumpre as medidas de restrição ou pelos pretensos colegas de profissão que chegam a negar os perigos com que há quase um ano se tem vindo a confrontar. No fim, explicou como nasceu o projeto “Medicina sem Filtros” que, como se não tivesse já a agenda completamente tomada (também é médica do INEM), decidiu começar entretanto nas suas redes sociais. E confessou a surpresa que teve quando, no início do ano, viu a sua voz replicada pelos meios de comunicação social. Algumas semanas mais tarde, mantém: “A terceira vaga está a rebentar com isto tudo”.

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Ana Isabel Pedroso, internista e intensivista no Hospital de Cascais, iniciou um projeto nas redes sociais, para explicar a pandemia

Há cerca de uma semana ouvi-a dizer que o seu hospital estava na iminência de colapsar. Tendo em conta que as regras do confinamento foram entretanto apertadas, mas que os números continuam a atingir novos máximos a cada dia que passa, como está neste momento o Hospital de Cascais? Como estão as urgências? E o seu serviço de cuidados intensivos ?
O nosso hospital tem vindo a adaptar-se às novas exigências. Está rigorosamente como todas as outras urgências e os outros hospitais do país, muito completo, muito cheio, com muitos doentes mesmo, em termos de números não sei precisar. Mas realmente temos tido os internamentos cheios e sempre que damos alta chega alguém o lugar não chega a ficar vago porque há sempre gente a entrar.

Nas urgências vive-se aquele caos que temos visto noutros hospitais, veem-se as filas de ambulâncias?
Por acaso as filas de ambulâncias não chegaram a acontecer. Estamos a viver uma afluência cada vez maior ao serviço de urgência, mas o hospital apercebeu-se disso e conseguiu adaptar-se em termos de tamanho, que é o importante aqui. As ambulâncias ficaram na rua porque o hospital não tinha capacidade para receber os doentes lá dentro.

E vocês não estão ainda nessa fase…
Não — e esperamos nunca lá chegar. Até agora temos conseguido, através de constantes alterações, dar a resposta necessária à população.

Ouça aqui a entrevista na íntegra.

“Sou a única pessoa a ver que isto vai rebentar?”

O problema dos cuidados intensivos e os cursos que os especialistas fizeram para formar os colegas

Como é que está o serviço de cuidados intensivos? Calculo que, como os outros hospitais, tenham camas reservadas para doentes Covid e não Covid. Neste momento estão cheios?
Nós estamos sempre cheios, quando damos altas recebemos sempre doentes, portanto a capacidade tem estado sempre no máximo ou lá perto. Tem sido esta a dinâmica e é por isso que estamos todos tão cansados, porque não há descanso para o pessoal que lá trabalha.

Antes da pandemia, como era o dia a dia nesta unidade?
Era diferente. As unidades de cuidados intensivos assentam muito na discussão clínica, na discussão médica do doente. Reunimos muito, discutimos muito em termos teóricos acerca do doente, tomamos decisões… As decisões, mesmo as mais pequenas, têm um grande impacto nestes doentes, porque eles estão sempre no limite da vida e da morte. Qualquer decisãozinha que se for tomar, qualquer coisa que se faça num doente destes, vai ter um grande impacto e pode conduzir à sua morte, portanto tínhamos sempre grandes reuniões, e o serviço tinha muita vida académica, esta parte é muito importante para a medicina. Como é normal, havia alturas em que o serviço estava mais cheio. O inverno, por exemplo, sempre foi a altura dos grandes doentes respiratórios, portanto por vezes a capacidade máxima também era atingida.

"Se calhar antigamente tinha uma pessoa de 80 anos para ventilar e hoje em dia tenho três ou quatro de 45 e uma de 80. Nós temos de perceber o que é que vamos fazer aqui. Como a afluência é maior e o número de doentes críticos é maior, tem de haver seleção e escolhas e é isto que nós temos vindo a fazer"

A capacidade é que não era a mesma…
A capacidade não era a que é hoje, mas acabava por acontecer. Hoje em dia é muito diferente, nós queremos muito ter este nível de medicina, de rigor em termos de discussão clínica, e é muito difícil para nós fazê-lo porque há uma necessidade premente de estar ao lado do doente, de ver o doente. Claro que em medicina intensiva temos sempre de ter esta discussão, é inevitável, temos sempre de perder algum tempo naquilo a que chamamos passagens e reuniões, mas não é possível fazê-lo da mesma maneira como se fazia antes da Covid — e antes desta vaga especificamente.

Claro que isso acaba por prejudicar também os doentes, ou não?
Não é bem prejudicar os doentes, porque eles continuam a ser bem vistos e nós continuamos a ter reuniões, no fundo estamos é a ser mais sucintos e a ter uma medicina mais point of view do que antigamente — se calhar antigamente podíamos alargar e discutir outros pontos e hoje em dia não temos tempo para isso. Temos mesmo de entrar em ação o mais rápido possível e isso faz a diferença para nós.

Prejudicam-se mais a vocês…
Sim, porque nós, médicos, precisamos destes momentos de discussão clínica para crescermos também. Um colega fala num artigo que leu, outro diz que viu outra coisa, é uma construção constante, é assim que se faz a medicina. Esta parte tem de ser um bocadinho negligenciada neste momento, para estarmos perto do doente. E também para irmos descansar, porque passar 10 doentes é diferente de passar 20.

Há dias ouvi um colega seu falar na probabilidade cada vez mais real de o Hospital de Cascais ter de ativar o “plano de catástrofe”. O que é que isto significa exatamente? Já aconteceu?
Realmente todos os hospitais têm planos de catástrofe, têm de estar desenhados, são uma segurança e são planos que nós vamos tendo para conseguirmos dar cada vez mais resposta aos doentes. Quando estamos em catástrofe, e quando se faz medicina de catástrofe, a resposta que damos aos doentes não pode ser nem vai ser a mesma que antes.

Mas ainda não está a acontecer, é isso?
Ainda não estamos nesse ponto. Até agora temos conseguido adaptar-nos claramente e acho que isto tem saído muito dos profissionais de saúde e da gestão do hospital. Vem uma onda grande e nós adaptamos, vem uma onda maior e nós adaptamos, não sei quando é que vamos deixar de conseguir adaptar e quando é que vamos ter de realmente dizer que estamos em catástrofe. Mas ainda não estamos nesse momento.

"Todos nós que estamos em medicina intensiva tirámos uma especialidade e depois fomos tirar uma segunda em medicina intensiva. Nem toda a gente tem esta vontade, por muito que se goste de trabalhar na área, portanto somos muito poucos a nível nacional. Nem valerá muito a pena carregar todos os locais de ventiladores e máquinas de diálise e bombas de perfusão se depois não houver ninguém que lhes saiba mexer"

Ouvi-a dizer que em medicina intensiva já têm de decidir todos os dias a que doentes dar o melhor tratamento possível, isso está diferente agora?
Os critérios de admissão em medicina intensiva são mais ou menos conhecidos e têm vindo a mudar, isto não é uma coisa que depende da pessoa que lá está de banco ou do diretor de serviço, nós temos uma gestão das camas a nível regional. O que é que tem vindo a mudar? Se calhar antigamente tinha uma pessoa de 80 anos para ventilar e hoje em dia tenho três ou quatro de 45 e uma de 80. Nós temos de perceber o que é que vamos fazer aqui. Como a afluência é maior e o número de doentes críticos é maior, tem de haver seleção e escolhas e é isto que nós temos vindo a fazer. Este tipo de decisões são muito difíceis e mesmo em catástrofe é normal que haja um conselho de catástrofe. Nunca se deve tomar sozinho este tipo de decisões, no meu hospital, como nos outros, há sempre uma equipa que toma esta decisão, para ser uma decisão partilhada.

Fundamentalmente, o que é que está a faltar? São ventiladores? São camas? São profissionais de saúde? Na medicina intensiva há alguma falta de profissionais em Portugal.
Sim, porque não havia esta necessidade extrema. A formação em medicina intensiva é demorada. A especialidade de medicina intensiva é uma coisa relativamente recente, portanto as primeiras pessoas que entraram ainda nem sequer a terminaram. Todos nós, que estamos em medicina intensiva, tirámos uma especialidade e depois fomos tirar uma segunda em medicina intensiva. Nem toda a gente tem esta vontade, por muito que se goste de trabalhar na área, portanto somos muito poucos a nível nacional. Nem valerá muito a pena carregar todos os locais de ventiladores e máquinas de diálise e bombas de perfusão se depois não houver ninguém que lhes saiba mexer. A nível europeu têm vindo a desenvolver-se alguns cursos, a Sociedade Europeia de Cuidados Intensivos desenvolveu cursos para nós darmos aos outros colegas para eles terem mais skills e conseguirem mexer nos ventiladores, perceberem um pouco do doente crítico.

Isso pré ou pós-pandemia?
Durante a pandemia. Antes desta vaga, a Sociedade Europeia de Cuidados Intensivos criou um curso, que nos deu a nós, e nós demos aos colegas para que se esta vaga viesse — que veio —estarem preparados para quando forem deslocados. Na medicina queremos mesmo que haja uma especialização maior, queremos que o cardiologista que só faz arritmias saiba tudo de arritmologia, nós vivemos para a especialização, e agora estamos a pedir a estas pessoas que voltem à sua época anterior, em que faziam uma medicina interna, uma medicina geral dentro do hospital, e que nos ajudem a fazer outras coisas a que não estão habituadas. Isto também não é fácil para os colegas, requer uma adaptação de todos.

Mas já está a acontecer? No Hospital de Cascais já têm médicos de outras especialidades a dar-vos esta ajuda?
Sim, no Hospital de Cascais e nos outros, principalmente a iniciar pela anestesia, que é a especialidade que também mexe mais com ventilação (embora não seja uma ventilação rigorosamente igual, porque é por motivos anestésicos em termos de bloco). Portanto começou pela anestesia e agora vamos progredindo para os pneumologistas, alguns cardiologistas, e estamos a começar a integrar outras pessoas nas nossas equipas. Também porque os hospitais acabam por suspender a sua atividade em termos de consulta e estes colegas têm mais disponibilidade para nos ajudar.

Mais de 100 horas de trabalho por semana, lágrimas e a luta constante contra a morte

Sei que não gosta de referir-se às unidades de cuidados intensivos como o fim da linha, prefere dizer…
… que é a última esperança.

Sente que com a Covid-19 este está ser o final mais frequente? Tem ideia de quantas pessoas já perdeu?
Não tenho ideia de quantas pessoas já perdemos, acho que agora perdemos mais pessoas do que ao início, também porque são mais pessoas que entram. Realmente nós somos mesmo a última esperança, porque chegando ali só temos duas saídas: ou conseguimos melhorá-los ou acabam por falecer connosco. Acaba por ser triste a quantidade de doentes que temos perdido, mas não acho que seja uma taxa de mortalidade superior, o número absoluto de pessoas admitidas em intensivos é que é maior e realmente isso tem sido… Temos tido uma rotatividade enorme. Tem vindo muita gente, muita gente, é raro o dia em que não há alguém para ventilar na urgência. Isto claro que não era um dia a dia normal de trabalho, o nosso trabalho não era assim e isto foi uma coisa que veio com a Covid.

Nota diferença da primeira para esta segunda ou terceira vaga?
Para mim é uma terceira, acho que isto teve uma segunda vaga no fim de outubro, que acabou por melhorar no fim de novembro, e entretanto agora, depois do Natal, veio esta vaga em força.

Que está a ser a pior.
Sem dúvida alguma. Na primeira, como havia muito receio, as pessoas foram para casa. Isto é uma coisa que eu digo que parece tonta mas é verdade: o vírus só sobrevive se passar de pessoa para pessoa. Na primeira vaga, assim que percebemos que estava a vir aí uma taxa de transmissão grande, um Rt superior a 1,0, fomos todos para casa e isto fez com que não chegássemos àquele ponto que víamos em Itália e com os nossos irmãos espanhóis, não vivemos minimamente nada disso. Tivemos os nossos doentes Covid, claro que sim, tratámos deles e pronto. Agora não. Agora o Rt chegou a 1,4, o que significa que 10 mil pessoas infetam 14 mil pessoas, e continuávamos a andar todos na rua. Isso fez com que estejamos a viver esta terceira vaga em força e que ainda continuemos a vivê-la durante mais umas três semanas, até isto começar a abrandar.

"Realmente nós somos mesmo a última esperança, porque chegando ali só temos duas saídas: ou conseguimos melhorá-los ou acabam por falecer connosco. E realmente acaba por ser triste a quantidade de doentes que temos perdido, não acho que seja uma taxa de mortalidade superior, o número absoluto de pessoas admitidas em intensivos é que é maior e realmente isso tem sido... Temos tido uma rotatividade enorme. Tem vindo muita gente, muita gente, é raro o dia em que não há alguém para ventilar na urgência"

Falava dos espanhóis e dos italianos . Acho que terá sido uma das coisas que mais nos chocou na primeira vaga: ver filas de caixões, os contentores para armazenar os mortos. A verdade é que agora em Portugal somos o país que tem mais mortes por milhão de habitantes e também temos estes contentores. No Hospital de Cascais há contentores.
Sim, tem havido contentores em todo o lado…

Como é que se convive com esta realidade? Como é que se vai trabalhar todos os dias e se passa ao lado disto?
É muito triste, mas eu trabalho para os vivos, não vou ficar parada a olhar para o contentor quando tenho uma data de gente viva que espera que eu vá lá, com toda a minha fé, trabalhar. Portanto não vou ficar parada a olhar para o contentor. Vejo-o, respeito-o, quero estar longe dele, e vou trabalhar com os vivos que é nesses que nós podemos mudar e fazer alguma coisa. Sou sempre muito focada naquilo que podemos fazer: recebemos um doente que tem 90% de probabilidade de morte e eu agarro-me aos 10%, porque se não fossem aqueles 10% eu não estava lá a fazer nada. Nós estamos lá para fazer a diferença e nós fazemos a diferença. Há 291 pessoas que faleceram hoje [dia 26 de janeiro], mas há muita gente que sobreviveu. Não estou a retirar o respeito a esses 291, mas trabalho com os outros. Perdi aqueles, fico muito triste por isso, mas tenho de me agarrar àqueles que lá estão e vou tentar ajudá-los. Estou lá para tentar fazer a diferença e que o número de mortos não aumente.

Li uma citação sua em que dizia que “hoje em dia é raro ver alguém que não saia dos seus turnos a chorar”. Foi uma coisa que Ricardo Batista Leite, que recentemente partilhou a experiência que teve nas urgências, justamente do seu Hospital de Cascais, também referiu — as lágrimas dos profissionais de saúde.
É triste, estamos a adaptar-nos a esta nova realidade. Estes 291 são a Dona Maria, a Senhora Raquel, para nós são caras, são pessoas que nós tentámos ajudar. Ninguém tem de fazer mais do que aquilo que consegue, só que todos nós queríamos fazer mais e não conseguimos. E isso é muito difícil, é essa angústia que nós carregamos e, às vezes, quando saímos dos turnos, é quando sai aquele alívio e choramos. Sou daquelas pessoas: choro, durmo e no dia a seguir estou nova, “vamos lá outra vez com força”. Nem todos somos assim, para uns é mais difícil do que para outros, mas acho que aqui é o espírito de equipa que tem de entrar. Nunca se viu um espírito de equipa tão grande como o que se vive agora nos hospitais. E não só: no pré-hospitalar também, essas equipas também sofrem muito, temos de pensar nos técnicos de emergência, nos bombeiros, que estão ali com os doentes, ao frio, horas e horas. Eles também só aguentam isto tudo porque têm um grande espírito de equipa e de sacrifício pelo outro.

Depois, ainda por cima, há o cansaço acumulado. Chegou a estar dois meses, entre março e abril, sem ver os seus filhos. Passou a noite de Natal a trabalhar no hospital. E já me disse que o normal é ter dois ou três turnos de 24 horas por semana.
Sim, pelo menos.

"Ninguém tem de fazer mais do que aquilo que consegue, só que todos nós queríamos fazer mais e não conseguimos. E isso é muito difícil, é essa angústia que nós carregamos e às vezes quando saímos dos turnos é quando sai aquele alívio e choramos. Sou daquelas pessoas: choro, durmo e no dia a seguir estou nova. Nem todos somos assim, para uns é mais difícil do que para outros, mas acho que aqui é o espírito de equipa que tem de entrar. Nunca se viu um espírito de equipa tão grande como o que se vive agora nos hospitais"

Quantas horas é que já fez no máximo, numa semana?
Chegamos a fazer cento e tal horas numa semana, à vontade. Acho que aguentamos isto porque sabemos que fazemos a diferença. Se nós não formos, quem é que vai fazer? Hoje estou em casa para estar aqui a falar consigo — e está lá alguém. Amanhã vou para lá eu, é assim que funciona e não há hipótese, tem de ser assim até ao fim. Essa é outra questão: todos nós achamos que isto tem um fim, nós não achamos que isto vai ser assim para sempre. Vamos ultrapassar esta fase agora, em que está muita gente contaminada e que muita gente contamina outra, vai entrar a vacina e isto há-de ter um fim, se correr bem.

Se correr bem. À medida que vão aparecendo novas estirpes e que a situação se vai complicando, algumas pessoas começam a duvidar que isto tenha fim à vista…
Não podemos duvidar, acho que isto vai ter um fim à vista, portanto temos de acreditar nisso e seguir e mantermo-nos o mais saudáveis possível, porque para ajudar os outros também temos de estar bem nós. É aí que é difícil, porque nós estamos muito cansados, muito cansados, muito cansados, e às vezes não nos cuidamos tanto, o que é normal, também não temos tempo para isso. É importante mantermos a cabeça no sítio e continuarmos a trabalhar com o foco no que é correto.

O combate à desinformação e às faltas de respeito, via redes sociais

Para além de fazerem estas horas todas, vocês também trabalham dentro de fatos que têm uma duração limitada e que não podem despir durante X horas. Não podem comer, não podem beber, não podem ir à casa de banho. Isto ajuda a aumentar a revolta contra quem não cumpre os cuidados básicos e continua a viver como se nada se passasse? Já a ouvi referir-se às festas que vão continuando a acontecer.
Tenho um problema com as festas, porque as festas requerem uma organização, e eu acho que se há coisas organizadas e se as pessoas vão às festas é porque as podem fazer. Acho que tudo aquilo que não se pode fazer, não se faz. E as pessoas que fazem e são apanhadas têm alguma consequência. É como as crianças, eu não posso dizer ao meu filho “não te sentas aí” e quando ele desobedece não lhe acontece nada. No fundo, é isto que está a acontecer, portanto acho que aí há culpa de quem coordena isto. Sinceramente, acho que hoje em dia já não há assim tantas festas. Vai ser difícil, daqui a pouco tempo — e já nestes dias —, não conhecermos alguém que está infetado. Acho que já toda a gente conhece alguém que está infetado — e quando começa a tocar-nos é que ficamos mais no nosso canto. Acho que agora, durante uns tempos, vai ser mais difícil fazer festas. Acho que isso realmente é uma falta de respeito por quem está a trabalhar e por todas aquelas pessoas que ficaram doentes sem terem feito por isso.

"Passei de uns bancos em que, "ok, isto não está bom, mas vai-se fazendo", para uma loucura total, que é o que vivemos agora, mas já nos habituámos. Naquele banco recebemos muitos doentes, foi quando a afluência começou a subir, quando começámos a receber os doentes que estavam a agravar pós-Natal. E nós continuávamos na rua, as crianças na escola, estava tudo bem. Foi o meu Grito do Ipiranga: 'O que é que se passa aqui? Será que eu sou a única pessoa que está a ver que isto vai rebentar pelas costuras?'"

Apesar de tudo, no meio deste turbilhão todo, decidiu começar um projeto a que chamou “Medicina sem Filtros” e tem dado a cara nas suas redes sociais por este combate. Uma das expressões que usou, e que foi muito falada na imprensa, foi : “A terceira vaga está a rebentar com isto tudo”. Era o efeito que pretendia?
Na altura, nunca pensei que tivesse tanta voz. Quer dizer, temos uma voz mas ela normalmente não chega tão longe como chegou essa minha frase. Nesse dia estava de saída de banco, já foi a seguir ao Natal, foi o meu primeiro banco quando isto começou a rebentar e foi quando percebi o que aí vinha. Passei de uns bancos em que, “OK, isto não está bom, mas vai-se fazendo”, para uma loucura total — que é o que vivemos agora, mas já nos habituámos. Naquele banco recebemos muitos doentes, foi quando a afluência começou a subir e começámos a receber os doentes que estavam a agravar pós-Natal. Pensei que ia piorar muito e que íamos continuar todos na mesma — porque nós continuávamos na rua, as crianças estavam na escola, estava tudo bem. Isso foi o meu Grito do Ipiranga: “O que é que se passa aqui? Será que eu sou a única pessoa que está a ver que isto vai rebentar pelas costuras?”. Estava a referir-me aos dias que estou a viver hoje — e que nem sabia que ia viver.

Ainda há muita desinformação sobre a doença e o vírus? Sente que esse projeto é necessário por isso?
As redes sociais são um bom canal de comunicação para um público-alvo diferente: nem toda a gente vê o telejornal nem ouve a rádio. Tenho tido bastante feedback, portanto continuei a informar à minha maneira. Como eu costumo dizer, se conseguir que uma pessoa altere o seu comportamento e a sua maneira de pensar, já ganhei. Porque o confinamento vai passar, nós vamos voltar a estar todos juntos e vamos ter de continuar a ter cuidados, e é isto que eu quero passar às pessoas. Não acho que as pessoas tenham de estar anos sem ver o avô ou a avó, temos de os ver com cuidados, e é isto que acho que às vezes não chega às pessoas. O que lhes chega é “não podem estar juntos”. Isso não vai acontecer, ninguém vai ficar anos sem ver os familiares — e depois, quando se veem, infetam-se. Temos é de aprender a viver com o vírus.

Porque, mesmo com a vacina, ele vai ficar por cá.
Sim. E vai esmorecer, no sentido em que já não vai haver tanta gente infetada e vamos ter imunidade, portanto já não vamos ficar com a doença tão grave, mas ele vai continuar por cá.

Há dias escreveu sobre as novas estirpes e sobre a chegada a Portugal da variante inglesa, que sabemos que é muito mais transmissível. Em que sentido é que isso vos está a afetar no trabalho, para além de vos chegarem mais pessoas?
A estirpe inglesa veio infetar bastantes pessoas em Lisboa e Vale do Tejo, existe inclusivamente um cluster junto ao aeroporto, aqueles bairros ali à volta têm mais desta estirpe do que outros locais. É semelhante à Covid que já cá tínhamos, só que mais transmissível, e já há quem diga também que, não que dê doença mais grave, mas em quem tem doença mais grave com esta estirpe a mortalidade é superior em 30%. Mas é uma estirpe que é coberta com a vacina, portanto lidamos com ela tal e qual como lidámos com a Covid até agora. Parece que também tem maior apetência para jovens, mas ainda estão para sair muitos estudos acerca disto. As novas estirpes, a brasileira e a da África do Sul, é que já são um bocadinho diferentes, porque não só se transmitem mais como aparentemente os nossos anticorpos não as reconhecem. Estamos ainda à espera para perceber, em termos de estudos, como é que funcionam com a vacina e como estão em relação ao outro tipo de imunidade, para além dos anticorpos, que são as células de memória. Mas por enquanto também ainda não temos dessas cá.

Isto poderá significar que a vacina pode não ser tão eficaz ou não ser eficaz de todo nestas estirpes?
Exato. Ou seja, pode não ser tão eficaz e portanto precisamos mesmo que se estude isto o mais rapidamente possível para percebermos. Até lá, o vírus é um ser, como nós, que tenta sobreviver. Este vírus é extremamente inteligente, está a tentar adaptar-se a tudo e a criar novas estirpes para conseguir sobreviver. É isto que ele faz — ele e todos os outros vírus.

"O meu pior dia foi quando saí de casa, em março. Não sabia quando é que ia voltar, não sabia o que ia acontecer, estava a sair para o vazio. Eu, que sou uma pessoa com cabeça e foco e orientada, acho que nunca estive tão desorientada na vida. Em relação ao trabalho, acho que não há um dia, é um somatório de dias, tem havido dias muito maus, dias muito complicados, em que é muito difícil. Entrar às 8h30 da manhã e às 4h da manhã ainda estar a trabalhar à volta dos doentes não é fácil, nem para mim, nem para ninguém"

Estando no meio disto, estando a combater esta pandemia, como é que vê esta onda de negacionismo à volta da Covid-19, os Médicos pela Verdade? Como é que consegue encaixar isto tudo?
Tenho muita dificuldade em encaixar isto. Por acaso tenho ouvido alguns — eles dizem que são colegas, que, pronto, fazem parte da Ordem —, e tenho ouvido alguns argumentos — sou muito a favor de ouvir as outras pessoas para as tentar compreender —, e custa-me um bocado. Primeiro porque nenhum desses colegas trabalha nem num serviço de urgência, nem numa enfermaria, e nenhum deles entraria lá sem máscara, penso eu. Acho isto muito complicado em termos de comunicação social e Ordem dos Médicos, ou seja, não compreendo como é que chega a este nível. É como as festas.

Enquanto havia quem dissesse que não se passava nada, em outubro já dizia que, a chegar, uma segunda vaga não ia correr bem. Consegue eleger o seu pior dia desde que isto tudo começou?
O meu pior dia foi quando saí de casa, em março. Não sabia quando é que ia voltar, não sabia o que ia acontecer, estava a sair para o vazio. Eu, que sou uma pessoa com cabeça e foco e orientada, acho que nunca estive tão desorientada na vida. Em relação ao trabalho, acho que não há um dia, é um somatório de dias, tem havido dias muito maus, dias muito complicados, em que é muito difícil. Entrar às 8h30 da manhã e às 4h da manhã ainda estar a trabalhar à volta dos doentes não é fácil, nem para mim, nem para ninguém.

O melhor provavelmente terá sido o dia em que recebeu a segunda dose da vacina.
Sim, foi um dia muito feliz. Fiquei mesmo feliz por fazer a vacina, fiquei mesmo emocionada, porque essa é a verdadeira esperança disto tudo — estarmos todos vacinados e ficarmos imunes e ele passar por nós e a gente rir-se na cara dele. É tudo o que eu quero, rir-me na cara da Covid.

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