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Reconhecida do grande público enquanto atriz, Ana Zanatti estreou-se na literatura em 2003 com o livro "Os Sinais do Medo"
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Reconhecida do grande público enquanto atriz, Ana Zanatti estreou-se na literatura em 2003 com o livro "Os Sinais do Medo"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Reconhecida do grande público enquanto atriz, Ana Zanatti estreou-se na literatura em 2003 com o livro "Os Sinais do Medo"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Ana Zanatti: "Não temos de falar da nossa vida privada lá porque somos artistas. Cada um sabe porque se esconde"

Nem cinema nem televisão. Aos 75 anos, Ana Zanatti deixou-se ocupar pela escrita e tem um novo livro. "Estou cada vez com mais vontade de estar no meu espaço íntimo e a escrever", diz em entrevista.

Demora-se alguns segundos na escolha de palavras e pretere “confronto” em favor de “ousadia”. Ana Zanatii, 75 anos, resume-se assim: “Acho que a minha vida, de certa forma, tem-se pautado por ousar certas coisas”.

Há 40 anos, quanto contracenou com o jornalista Pedro Oliveira em O Lugar do Morto (1984), de António-Pedro Vasconcelos, um dos maiores êxitos da história do cinema português, o seu nome ficou gravado na retina de muitos. Antes disso, já entrara, em 1982, na primeira telenovela portuguesa, Vila Faia. E, antes ainda, havia ousado protagonizar cenas de nudez no teatro e no cinema num país conservador acabado de sair da ditadura.

Ao longo de décadas, Ana Zanatii conseguiu o engenhoso feito de se manter discreta (é a sua natureza, dirá mais adiante), não sem deixar de chamar a atenção. Como em 2009, quando se tornou uma das primeiras atrizes e figuras públicas portuguesas a assumir que era lésbica para reivindicar o direito pelo casamento para todos. “Temos muita preocupação em Portugal de não sair fora daquilo que aparentemente parece que é o certo, de não se dar nas vistas, de não ser diferente daquilo que é expectável.” Mas, às vezes “é preciso rasgar, abrir janelas”.

Afastada há vários anos dos ecrãs e dos palcos por escolha própria, Zanatti tem se recolhido nas palavras, o princípio de tudo. “Estou cada vez com mais vontade de estar no meu espaço íntimo, mais íntimo e a escrever.” As Trapezistas, primeiro livro de poemas, surge de uma sucessão de gestos na escrita. Se os livros anteriores, de prosa e ensaio, tinham a intenção de abrir a porta a temas fraturantes — como a denúncia da violência e preconceito como a comunidade LGBT — este destranca a gaveta que encerrava os poemas escritos na sombra de uma fulgurante carreira como atriz.

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Mas a escrita, e a poesia em particular, esteve sempre com Ana Zanatti — como conta em entrevista ao Observador.

Capa do livro "As Trapezistas", de Ana Zanatti, edição Abysmo, €12

Sei que escreveu sempre, mas só depois dos 50 anos começou a publicar — Os Sinais de Medo, em 2003 (Dom Quixote), foi o seu primeiro livro. Porque precisou de chegar aos 75 anos para um livro de poesia?
Boa pergunta… Desde que comecei a ler e a escrever qualquer coisa por mim, as primeiras coisas que escrevi foram poemas. Curiosamente, no outro dia estava a reler alguns e eram poemas muito surrealistas. Lia bastante poesia, nessa altura. Lia Pessoa, adorava Camilo Pessanha, Álvaro de Campos. Lia muito os franceses, os simbolistas, o Verlaine, o Rimbaud, o Baudelaire. Até porque a minha formação era de [línguas] românicas, portanto estava muito mais ligada à língua francesa. Depois passei pela fase dos surrealistas, do Breton, do Aragon, do Cocteau, etc. Estava sempre muito ligada à poesia e o que escrevia eram poemas. Escrevia para mim.

Nunca os mostrou a ninguém?
Não, não. Era para a minha diversão. Depois o tempo passou e comecei a escrever letras para canções, mas continuei sempre a escrever alguns poemas. Um poema aqui, outro poema ali. Quando comecei a publicar, em 2003, queria escrever um romance. Até porque achei que o que escrevia em poesia não tinha qualidade suficiente. Confesso que lia muito menos poesia do que lia ficção e ensaio e, portanto, achava que não estava suficientemente conhecedora e a par da poesia que se fazia por esse mundo fora.

Era uma questão mais intelectual então e menos de maturidade?
Nem sei bem explicar se era isso ou não. Na verdade, queria escrever um romance porque era o que precisava de fazer. Escrevi o primeiro romance, depois escrevi o segundo, depois escrevi outros romances, livros infantis. Fui sempre tendo os poemas em casa, assim, guardados. Um dia pensei: vou fazer qualquer coisa com estes poemas. Comecei a lê-los e resolvi, como eram muito dispersos. Porque sou uma pessoa muito dispersa, tenho tendência para me dispersar.

E no entanto aparenta ser muito organizada, para esta entrevista trouxe todo um dossier consigo.
Mas é por isso mesmo. É por causa da minha tendência para a dispersão que depois me obrigo a ter alguma organização porque senão não sei onde é que ando. Quando tenho uma apresentação para fazer ou qualquer outra coisa tenho comigo textos, poemas, tenho qualquer coisa que seja preciso, de repente.

“Há sempre um que tem de ser o primeiro. Há sempre uma pessoa que tem de dar o primeiro passo. Não estou a dizer que as pessoas fizeram ou tomaram essas atitudes seguindo os meus passos. Mas que, eventualmente, posso ter inspirado alguém a isso [assumir a homossexualidade] não tenho dúvida.”

Voltando ao ímpeto para escrever, ou mostrar, a poesia…
Pensei em reuni-los por assuntos. Como estava a dizer, eram temas muito diferentes e não iam caber no mesmo livro. Eram poemas que sentia que tinha de trabalhar mais. Estou muito mais habituada a escrever prosa, em que me estendo, escrevo palavras a mais. E a poesia é a arte da síntese. Num verso não são precisas muitas palavras, é preciso é que elas sugiram a imagem, que quanto mais rica melhor. Tinha dificuldade em trabalhar nisso. A minha tendência era adjetivar, relatar, escrever demais. Comecei a olhar para os poemas e comecei a cortar. Depois comecei a mostrar a duas amigas minhas, a Helga Moreira e a Marta Chaves, que são poetas. No fundo, elas fizeram o trabalho de editores. Ainda não tinha falado com nenhum editor na altura. O que é normal um editor fazer é ler e depois dizer: há aqui coisas que pode deitar fora, outras que pode desenvolver. Neste caso foram elas que me ajudaram nessa tarefa. Foram sendo as críticas daquilo que ia mostrando. Com elas também aprendi a não ser tão excessiva nas palavras, mas a ter mais contenção. A dar-me mais ao trabalho de procurar a palavra certa.

Já se reconhece no papel de escritora ou ainda se considera “atriz e pessoa que gosta de escrever”, como dizia há uns anos?
Na verdade, sim. Hoje em dia já me reconheço nesse papel porque talvez a escrita tenha vindo a ocupar um espaço muito maior do que o meu trabalho como atriz. Aos poucos, a escrita foi ganhando terreno. Era como se a minha casa tivesse várias divisões, todas elas ocupadas pelo teatro. De repente há uma que é ocupada pela escrita, depois começa a haver uma outra onde a escrita também entra. E os compartimentos começaram a estar cada vez mais tomados pela escrita.

Sabe porque razão permitiu que a representação saísse desses quartos?
Tenho noção. Por um lado, porque a escrita foi, desde sempre, a minha maior identificação. Poderia ter ido por aí e ter ficado só aí. Mas sou curiosa, gosto de experimentar muitas coisas e tudo quanto está relacionado com o campo artístico. Também poderia ter sido pintora. Só não me atirei para estudar em Belas-Artes porque sou canhota e ainda sou de uma geração em que nos proibiam de usar a mão esquerda. Quando andava no colégio atavam-me a mão esquerda com um lenço para eu ser obrigada a trabalhar, a escrever só com a direita. Em casa também tinha sempre vários pares de olhos a ver se estava a comer bem à mesa, se não usava a faca com a mão direita. Só sei fazer duas coisas com a mão direita, que é escrever e usar a faca para comer. Não sei fazer mais nada com a mão direita. Nem jogar ténis, nem nada disso, faço tudo com a esquerda. Convenci-me que não tinha jeito para nada porque como era forçada a trabalhar com a mão direita, ao longo da escola e do liceu, claro que não tinha a mesma agilidade que tinha com a mão esquerda. Nas aulas de desenho, esborratava um bocado as coisas.

Ana Zanatti foi fotografada no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, o local escolhido para apresentar o seu primeiro livro de poesia no próximo mês

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Na escrita encontrava essa confiança?
Não, não. Não tinha a confiança que escrevia bem. Gostava de escrever. Gostava, tinha prazer em escrever. Muito prazer em escrever. E, depois, em determinada altura, escrevi uma novela, uma coisa de duzentas páginas, mostrei-a a uma professora de literatura francesa e ela gostou imenso. Na altura, ainda se pôs a hipótese daquilo ser publicado. Aquela ideia da escrita ficou-me sempre cá. O teatro veio porque a determinada altura tive esse anseio, essa vontade. Estava prestes a entrar para a universidade e essa professora convidou-me para fazer umas gravações. Começaram os audiovisuais a funcionar, fui convidada para fazer uns filmes na emissora e comecei a achar graça. Aquele bichinho do teatro começou a fazer-se ouvir cá dentro de mim.

E sossegou a escritora.
Sossegou a escritora. E, depois, eu era desafiadora. Sabia que se dissesse aos meus pais que queria ser escritora estava tudo bem. Mas ir para o teatro já não era assim uma vontade tão bem aceite. Como era desafiadora, foi por aí o caminho. Lutei por isso e gostei. Foi muito bom o tempo todo que estive a fazer teatro, televisão e cinema e tudo isso. Mas o lado da escrita, em determinada altura, começou a ganhar mais espaço.

Diz “foi muito bom” porque dá esse capítulo como terminado?
Não dou nada como terminado porque não gosto de fechar portas, mas só numa situação muito especial. É preciso qualquer coisa que me toque cá, que me faça mexer os cordelinhos e que me faça vibrar cá dentro para ir.

O último trabalho como atriz foi há uns meses no filme O Vento Assobiando nas Gruas, com base no romance de Lídia Jorge.
Sim, mas é uma pequena, curtíssima participação, mais nada.

Não tem em vista nenhum projeto enquanto atriz?
Nada, nada, nada. Tenho-me afastado voluntariamente. Tenho recusado algum trabalho. Por exemplo, apareceu-me há uns meses uma proposta para ir fazer uma série, mas isso obrigava-me a estar muito tempo fora, largos meses no Norte. Não podia estar. Portanto, não aceitei. Tem de fazer um clique cá dentro. Estou cada vez com mais vontade de estar no meu espaço íntimo, mais íntimo, e a escrever.

“Temos muita preocupação em Portugal de não sair fora daquilo que aparentemente parece que é o certo, de não se dar nas vistas, de não ser diferente daquilo que é expectável.”

O que é que a motiva para escrever, ter algo para dizer?
Em geral, em relação à prosa que escrevo, é sempre porque tenho qualquer coisa para dizer sobre aquele tema, aqueles assuntos. Quero, através deles, chegar às pessoas e fazer com que as pessoas, quando chegam ao fim do livro, pensem talvez de uma forma um bocadinho diferente. Quero ajudar a esclarecer, a mudar alguma mentalidade, chamar a atenção para qualquer coisa.

Admite portanto que não escreve só para si, escreve também para os outros.
Escrevo porque quero dizer alguma coisa e quero dizer alguma coisa aos outros. Às vezes também quero dizer coisas a mim mesma, mas, na verdade, quando escrevo um livro quero chegar a um fim. Há uma coisa que quero dizer, através das histórias todas e dos enredos que irei criar, e das personagens que têm depois muita coisa a dizer. Mas há um recado qualquer final que quero dar. Escrevo porque quero passar uma ideia. E com essa ideia despertar qualquer coisa nas pessoas.

Os recados têm sido entendidos?
Acho que sim. Tenho tido um feedback muito bom e isso dá muito, muito prazer. Não estou a dizer que os livros são excelentes. Estou a dizer que tenho tido um feedback muito bom do resultado. Os livros têm cumprido aquilo a missão que queria que eles tivessem em determinadas pessoas que estavam mais fechadas para determinados assuntos, ou que não entendiam, que tinham problemas inclusivamente familiares, com elas próprias. Isso tem sido bom. Rasgar. Às vezes é preciso rasgar. Rasgar, abrir janelas.

Aos 12 anos escrevia “é difícil crescer num mundo de gente tacanha e provinciana como são os portugueses”. É difícil imaginar alguém aos 12 anos a escrever isto.
Dava-me muito com pessoas mais velhas. Sempre gostei de andar com pessoas mais velhas. Era muito atenta ao que as pessoas mais velhas diziam. Via os amigos dos meus pais, dos meus tios, que eram pessoas ligadas à intelectualidade, politicamente muito de esquerda, e estavam sempre a dizer que o nosso país não avançava. Eu ouvia e aquilo fazia sentido.

Com um percurso de décadas enquanto atriz e apresentadora, Zanatti fez sempre por manter-se fora dos holofotes. "Sou discreta não por medo mas por natureza", chegou a dizer

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Ainda faz?
Ainda faz. Infelizmente. Claro que mudámos muito, claro que avançámos muito, claro que hoje em dia nada se compara com o que vivi na minha adolescência. Mas há ainda um provincianismo em nós, em alguns portugueses, que se faz sentir. Ainda não temos esse rasgo, ou pelo menos alguns, esse rasgo e essa ousadia. Temos muita preocupação em Portugal de não sair fora daquilo que aparentemente parece que é o certo, de não se dar nas vistas, de não ser diferente daquilo que é expectável. Depois há muitos complexos. Por exemplo, desde o 25 de Abril que há imensos complexos de esquerda. Há imensas pessoas que se dizem de esquerda e que depois a atitude delas perante a vida não tem nada a ver com isso. Ainda há muito esse complexo de esquerda. Por exemplo, de as pessoas de pensamento de centro, as conotar com pessoas de direita e de extrema-direita. Acho que isso é péssimo.

Acha que é um discurso frequente?
Acho. Muito. E acho que isso é muito grave para a democracia. Uma coisa é a extrema-direita, outra coisa é a extrema-esquerda, a esquerda e o centro. Não podemos conotar as pessoas que têm um pensamento diferente, mas que não é extremista, nem para um lado nem para o outro, e começar logo a apontar com o dedo a dizer que são pessoas fascistas ou que são isto ou aquilo. Acho feio. Há um complexo de esquerda com que as pessoas ficaram ainda.

No caso dos artistas e dos atores, há quem se demita de qualquer posicionamento público. Para si sempre foi evidente que teria de tomar um posicionamento político público?
Tudo o que faço é político. E tudo o que nós, no geral, atores, fazemos também é político. Isto não quer dizer que esteja ligada a este ou aquele partido. De maneira nenhuma. Lembro que estava na televisão, no dia 25 de Abril [de 1974], na RTP. De um dia para o outro, no dia 24, havia pessoas que andavam a dar vivas ao Marcelo Caetano, ao Salazar, e, no dia 25, estavam de punho no ar a dar vivas ao Álvaro Cunhal. Fiquei extremamente chocada com isso. Era e sou uma pessoa com pensamento de esquerda, mas não sou extremista. Lembro-me que, por não ter sido das pessoas que aderiram a essa tomada de posição exagerada, de não me ter posto com essas fantasias, alguns colegas chamarem-me Aninhas PPD. Se não era daquelas que andavam de braço levantado, tinha que ser a Aninhas PPD. Achava imensa graça. Ria-me imenso.

A publicação do O Sexo Inútil (2016), foi um desses atos políticos do seu percurso?
Sim, como foi Os Sinais do Medo, o primeiro livro que escrevi. São livros que vêm, de alguma forma, chamar a atenção de determinadas realidades que são ainda proscritas, quase, ou eram.

“Aos poucos, a escrita foi ganhando terreno. Era como se a minha casa tivesse várias divisões, todas elas ocupadas pelo teatro. De repente há uma que é ocupada pela escrita, depois começa a haver uma outra onde a escrita também entra. E os compartimentos começaram a estar cada vez mais tomados pela escrita.”

Foi uma situação inédita a de uma mulher com exposição pública não recorrer à ficção para falar de homossexualidade. Na altura, teve receio ao fazer essa tomada de posição?
Não tive nenhum receio. Quando escrevi o Os Sinais do Medo talvez, porque quando o editor leu disse-me: “Isto é um livro muito atrevido, um livro muito ousado”. Aí pensei: será que me vai acontecer alguma coisa? Mas não. Acho que a minha vida, de certa forma, profissional, tem-se pautado por ousar certas coisas. Ter feito o nu, ter feito determinadas peças com determinados temas que não se faziam na altura…

Quando faz a peça Equus, Amargura para Um Cavalo, de Peter Shaffer, no Teatro Variedades, com uma cena de nudez, estamos em pleno PREC, 1975.
Sim e quando fiz A Verdadeira História de Jack, o Estripador. Foram momentos do meu trajeto profissional em que tive que fazer grandes escolhas. Fui, obviamente, chamada a atenção, disseram que corria perigos de poder ser despedida da televisão, quando ainda trabalhava lá. Tive muitas vozes contra. Tinha que ter uma grande certeza dentro de mim de que estava certa daquilo que queria dizer e daquilo que queria passar, para não sucumbir a essas vozes, esses velhos do Restelo que me queriam calar. Não era por mal, às vezes era até achando que me estavam a defender.

Teve sempre uma grande certeza dentro de si?
Houve momentos de dúvida também. Sou humana. Não era dúvida sobre o que queria fazer, era dúvida sobre: devo ou não devo, corro o risco ou não corro? É mais isso.

Foi apresentadora e atriz, fez teatro, cinema e televisão, escreveu telenovelas, letras de músicas, livros, mas conseguiu manter-se sempre à margem do circo mediático que envolve a indústria do entretenimento. Primou sempre pela discrição pelo medo ou por ser da sua natureza?
É a minha natureza. Não é por medo, de todo, até porque acabo por fazer coisas que não são discretas. Sou discreta por natureza, depois faço é coisas que não são discretas, mas não é para dar nas vistas. Já fiz coisas ao longo do meu percurso profissional que chamam a atenção, porque são coisas que falam de temas mais fraturantes.

Com o jornalista Pedro Oliveira em "O Lugar do Morto"(1984), de António Pedro Vasconcelos. O filme tornou-se um dos maiores êxitos da história do cinema português

Quando publicou esse livro, em 2016, disse que se “contam pelos dedos” as figuras públicas que assumem a sua homossexualidade. Entretanto, passaram quase dez anos.
Já houve mais. Mas não é obrigatório que as pessoas assumam, nem essa frase contém algum julgamento. Não contém julgamento nenhum. Cada um fala da sua vida privada. Não temos de falar da nossa vida privada lá porque somos artistas e temos um lado da vida que é público, não temos nada que falar da nossa vida privada. Fala quem quer ou quem tem motivos para isso. Cada um sabe por que motivos se esconde, por vezes são motivos familiares, por vezes não interessa. Respeito as pessoas.

Um ano depois da publicação desse livro, em 2017, a secretária de Estado da Modernização Administrativa, Graça Fonseca, que viria a tornar-se ministra da Cultura, tornou-se na primeira governante a assumir a sua homossexualidade.
E ainda bem, fez muito bem.

Reconhece que por vezes a partilha pode ter esse efeito?
Há sempre um que tem de ser o primeiro. Há sempre uma pessoa que tem de dar o primeiro passo. Não estou a dizer que ela tenha feito porque eu fiz, de maneira nenhuma. Até porque eu assumi a minha homossexualidade muito antes de escrever O Sexo Inútil. Numa entrevista ao Público, quando escrevi Os Sinais do Medo.

E ainda antes — em 2009, na apresentação do Movimento pela Igualdade no acesso ao casamento civil, no Cinema São Jorge — quando o fez saber para defender que duas pessoas do mesmo sexo tinham o direito a poder casar-se se quisessem fazê-lo.
Exatamente. Portanto, não estou a dizer que as pessoas fizeram ou tomaram essas atitudes seguindo os meus passos. Mas que, eventualmente, posso ter inspirado alguém a isso não tenho dúvida. Se ela está ali e está viva, e bem de saúde, porque é que eu também não hei de poder fazer o mesmo? Acho que tem de haver pessoas a dar os primeiros passos, é fundamental.

“Temos muita preocupação em Portugal de não sair fora daquilo que aparentemente parece que é o certo, de não se dar nas vistas, de não ser diferente daquilo que é expectável.”

Uma década depois, há mais abertura para no “Portugal bafiento” de que falava há pouco?
Sim, acho que há mais abertura. Embora ainda haja muita coisa para resolver. E acho que nunca estará totalmente resolvido. E depois temos de ter atenção porque as conquistas que temos tido em muitas áreas podem todas andar para trás rapidamente. Basta que um partido de extrema-direita ou um de extrema-esquerda se imponha.

Isso assusta-a? 
Assusta-me, claro. Não gostaria nada de ter um partido de extrema-esquerda nem um partido de extrema-direita a mandar no meu país.

Voltando ao princípio, o que pode a escrita fazer?
A escrita pode fazer o que tem feito. Para quem lê o que escrevemos, e para quem lê alguns livros, não estou a dizer os meus, que não são certamente os mais importantes, mas há livros muito importantes e é importante que as pessoas leiam, porque os livros abrem as cabeças das pessoas. Abrem-lhes o espírito, mostram-lhes novos horizontes, novas formas de pensar. Isso é muito importante, que todos nós contactemos com formas de pensar diferentes da nossa, com propostas de vida diferentes, com olhares que às vezes nem nos passam pela cabeça. Isso é muito bom porque nos ajuda também a transformar muita coisa dentro de nós. A vida não é mais do que isso, transformação. O nosso corpo transforma-se ao longo dos tempos e a nossa mente também é desejável que se transforme.

Aos 75 anos, como se lida com a transformação, da mente, do corpo? Pensa na ideia de finitude?
Penso muitas vezes. Penso sobretudo na ideia de que não gostava de ter que sofrer muito para morrer. Gostava de morrer de repente, não ter que atravessar o calvário de certas doenças. Nisso penso, obviamente. Quanto mais os anos vão passando mais perto estamos disso nos poder acontecer.

Ao 75 anos, Ana Zanatti diz que "a vida não é mais do que transformação". "O nosso corpo transforma-se ao longo dos tempos e a nossa mente também é desejável que se transforme", diz ao Observador

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Este mês voltou a discutir-se a questão da eutanásia — mais de 250 personalidades exigem a regulamentação da lei, um ano depois de ter sido promulgada.
Completamente legislada, e bem legislada, sou inteiramente a favor da eutanásia. Quando a pessoa já não tem qualquer esperança de vida, de melhorar, quando não tem nada, não há um espaço de tempo à sua frente com qualidade de vida, e pede ajuda, acho que é fundamental dar essa ajuda às pessoas, e não as deixar sofrer só para que esteja morta viva durante mais algum tempo.

Cada dia é menos ou mais um/ para estarmos perto?”: perguntava-lhe sobre a ideia de finitude também a propósito deste verso do poema Desnorte, deste livro, As Trapezistas.
Gosto muito que cada um leia um verso e depois retire a sua interpretação daquilo que escrevi, como eu retiro daquilo que outros escrevem. É uma das riquezas da poesia. A prosa explica-se muito mais, orienta mais a mente do leitor. Aqui não. Uma das belezas da poesia é essa. Nós deixarmos em aberto no campo para quem lê ir lá buscar aquilo que quiser e que lhe fizer mais sentido. Hoje pode fazer sentido isso e amanhã pode fazer sentido outra coisa. Já me tem acontecido abrir em livros de poemas, às vezes abro uma página ou caio naquele poema que já li noutra altura e que li de outra forma. Naquele dia quis dizer outra coisa para mim. Isso é muito rico num poema.

Assumindo então a injustiça de lhe ter pedido para refletir sobre um verso seu, peço-lhe para o fazer com um de Saint Exupéry que escolheu citar neste livro: “Cada um é o único responsável de todos”.
A mim diz-me que nós todos fazemos parte do mesmo. Esta ideia de que estou aqui, tu estás ali, e o outro lado do mundo, e que somos entidades muito separadas, que nada do que faço se reflete algures em alguém, não concordo, não partilho disso. Acho que tudo o que faço se reflete de alguma maneira em alguém, em alguma coisa. E tudo o que toda a gente faz a mesma coisa. É uma ideia peregrina, mas se todos nós nos conjugássemos para uma ideia de bem, e para fazermos bem, possivelmente teríamos um mundo diferente.

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