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Anabela Moreira fala do que correu mal na primeira experiência de representação, do curso de Psicologia e da importância de homenagear os pais
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Anabela Moreira fala do que correu mal na primeira experiência de representação, do curso de Psicologia e da importância de homenagear os pais

Anabela Moreira fala do que correu mal na primeira experiência de representação, do curso de Psicologia e da importância de homenagear os pais

Anabela Moreira. "Muitas vezes perguntei-me: porque raio é que me vim meter nisto?"

Para ser a noviça Josefina em "O Último Banho", Anabela Moreira viveu vários dias num convento e emagreceu mais de 15 quilos. Em entrevista, fala da família, da carreira e de um futuro desconhecido.

Mudou-se para um convento, em pleno Monsanto, Lisboa, e durante vários dias viveu como uma noviça. Rezou, tratou de pessoas acamadas, distribuiu comida e roupa em bairros desfavorecidos. Encontrou ali uma paz que não esperava e, mais do que isso, fez as pazes com a sua infância, passada no Externato São José, dirigido por freiras. Como em todos os projetos anteriores, Anabela Moreira, quis colocar-se na pele de Josefina, a protagonista de “O Último Banho” (filme que se estreou esta semana), para entender melhor uma mulher que não conseguiu perceber totalmente à partida. Perdeu também 15 quilos e encontrou num dos adereços, um relógio de pulso, uma semelhança que lhe fazia lembrar constantemente a madrinha, Ester.

No filme de David Bonneville é uma noviça prestes a fazer os votos perpétuos quando reencontra o sobrinho (Martim Canavarro), abandonado pela mãe (interpretada pela irmã gémea de Anabela, Margarida Moreira). A vontade de cuidar deste jovem é grande, mas Josefina é confrontada com sentimentos que desconhecia. Incesto, pensamentos proibidos e dilemas morais fazem parte desta história, que chega aos cinemas portugueses esta quinta-feira, 1 de julho — e que faz parte do 23.º Festival de Cinema Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira, que decorre até dia 4.

“O Último Banho” foi o pretexto para a conversa com Anabela Moreira, mas a atriz de 45 anos, que se mostra agora numa fase tranquila em relação às suas escolhas e ao que exige dela própria — muito graças às mulheres fortes que tem representado ultimamente —, contou ao Observador o que correu mal na primeira experiência na representação, em que teve de passar vários dias numa casa de alterne; falou do curso de psicologia que não terminou, da importância de homenagear os pais na curta-metragem que realizou e do motivo para eles não verem os filmes que faz.

[o trailer de “O Último Banho”:]

Quais foram os passos para construir esta Josefina?
Nunca parto muito por fora, apesar de depois as transformações físicas serem evidentes, acontecem porque vêm de um processo interior e não exterior. Neste caso específico, assim que li o guião, existiam ali uma série de coisas que eu não compreendia, nomeadamente sobre a vida religiosa dela. E então perguntei ao David Bonneville, que gosta muito de atores, se a produção me dava apoio para passar uns dias num convento. E foi o que eu fiz. Estudei no Externato São José [no Restelo, Lisboa], que tem a congregação das irmãs dominicanas, e fui falar com uma delas. Não fui ao colégio, que era o que menos queria na vida. Consegui um contacto e descobri que elas têm um espaço extraordinário em Monsanto, que eu desconhecia. Fazem um trabalho extraordinário, têm uma zona onde acolhem crianças. Este foi o primeiro passo, ir para o convento, estar lá quatro ou cinco dias. Fiquei surpreendentemente agradada.

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Porquê?
As irmãs todas têm um espaço para se recolherem à noite. Uma salinha com um quarto, uma espécie de suite. Funcionam com muitas regras, uma disciplina muito grande. Muitas delas são ainda noviças, estão na fase que dura anos até passarem a ser freiras, casarem com Deus. Qualquer uma de nós, num momento mais aflito da nossa vida, pode ir lá bater à porta. Elas recolhem-nos. Há pessoas que acham que podem ter uma vocação e vão lá passar umas semanas. Têm uma espécie de uma casa privilegiada, com um jardim privilegiado em pleno Monsanto. Estão muito recolhidas, quando saem à rua não vêm vestidas de freiras porque elas próprias dizem que são vítimas de bullying, chamam muito a atenção. E a ideia de estar ao serviço de Deus é não chamar a atenção sobre nós próprios. Por exemplo, elas cortam o cabelo muito curto, não para tirar o seu lado feminino, mas sim porque poderiam passar demasiado tempo a ocupar-se com as coisas do corpo.

Como era a rotina?
Já não me recordo a que horas, mas tínhamos de acordar muito cedo. Depois tínhamos um momento de oração com aqueles conhecidos cânticos dos conventos, era muito bonito. Gravei algumas coisas no telefone para o caso de ser necessário. Temos muitas ideias preconcebidas do que é a vida ali. Aquilo é uma intenção de nos darmos aos outros. Não é esquecermo-nos de nós mas, no fundo, usar este tempo de vida para estarmos nesta contemplação do que é maior. Tínhamos um momento do dia para ajudar pessoas que estão acamadas, em casa. Havia outros dias em que havia gente que ia lá lavar roupa. Há pastelarias que, quando sobra comida, vão lá entregar e então saíamos com uma carrinha e íamos distribuir em bairros muito pobres — às vezes também era roupa. Há um sentimento de plenitude quando fazemos uma coisa boa, elas alimentam-se de estar ao serviço dos outros. Eu saí de lá uma pessoa diferente. Foi muito bonito porque cheguei a uma altura em que pensei: olha, se tudo me corresse muito, muito mal, eu acho que ia ser feliz aqui. E isto foi um pensamento que eu alcancei ao fim de três dias.

"Fiz muita comédia no início e lembro-me perfeitamente de olhar para a cara das irmãs, das professoras, que eram tão austeras e fechadas — comigo especialmente porque eu não era assim tão atenta nas aulas —, e elas estarem a rir como se fossem crianças de seis anos. Foi aí a primeira vez que senti que tinha a capacidade de transformar a pessoa à minha frente."

Sentiu uma ligação que não esperava?
Senti que claramente não tenho vocação para estar presa a tantas regras, mas aquilo é uma decisão. Também é um sacrifício. Por exemplo, a noviça que me acompanhou (porque eu era noviça no filme) disse-me uma coisa que me mudou completamente. Ela estava na universidade, já não sei se a estudar direito. Ela dizia: “Anabela, eu tento evitar cultivar amizades com rapazes porque este sentimento que eu alcanço todos os dias aqui é tão bonito, profundo e preenche-me tanto, sou tão feliz que, se me apaixonar por um homem, este sentimento vai passar a ser projetado para um homem, que é só uma parte do todo, com todos os sentimentos que advêm daí”. Não é dizer que a sexualidade não existe, que não há desejo ou paixão. Não, é uma decisão de ir por aquele caminho. É evitar situações onde isso possa acontecer. Isso foi determinante para a construção da minha personagem. De facto, era esse o elo que faltava para compreender quem era a Josefina que, apesar de ter esta ligação religiosa e de ter tomado estas decisões, está num dilema quando está em contacto com o sobrinho, que é uma criança mas com um corpo de adulto. Ela, naquele afeto de um homem, fica confusa e aquilo ultrapassa as normas das relações. Ela expõe-se a isso quando está a tomar conta dele. Quando tem aquele tipo de cuidado, tão próximo da pele e da carne, há algo que desperta dentro dela e a partir daí já não consegue voltar atrás. É como esta noviça que dizia “se eu me apaixonar, posso perder isto que tenho agora”.

E a transformação física? Perdeu muito peso.
Na altura vinha do filme “Fátima” e tinha engordado muitos quilos. Passou-me uma coisa pela cabeça e pensei que uma mulher tão disciplinada, com tanta capacidade de sacrifício, não devia ter excesso de peso. Em dois meses perdi 16 ou 18 quilos, já nem sei, mesmo a tempo de começar o filme. Queria ter uma figura drenada, seca. Depois houve coisas engraçadas. A minha madrinha, que se chama Ester, acompanhou-me no processo todo. Uso um relógio no filme igualzinho a um que ela tinha e sempre que olhava para as minhas mãos, via as mãos de outra pessoa, a minha tia Ester, que era uma costureira, uma mulher muito trabalhadora. Essas foram as duas únicas coisas que foram trabalhadas ou pensadas, uma que eu não estava à espera e a outra feita de acordo com esta austeridade.

Também foi buscar memórias ao tempo em que esteve no colégio de freiras?
Era um externato, um colégio normal, mas era dirigido pelas irmãs. Acho que entrei para a creche, com três ou quatro anos, e saí no nono ano. Tive a sorte de ter uma irmã maravilhosa, que era a irmã Luísa Barbosa, mas existiam algumas que, não vou dizer que eram más, mas era assim que nós interpretávamos. Havia coisas que aconteciam que não eram justas.

Reguadas, por exemplo?
Éramos só meninas a partir da primeira classe, agora olhando para trás não era fácil controlar. Havia uma irmã que não dava reguadas mas, no recreio, andava sempre atrás de nós a prometê-las. Essa era dura. Lembro-me de dar uma novela brasileira, porque na altura não havia portuguesas, que tinha uma música que dizia qualquer coisa como “banana meu bem, caroço não tem e cabe em qualquer pescoço” e nós repetíamos aquilo sem sabermos o que estávamos a cantar. Houve uma irmã dessas que passou por nós, que continuámos a cantar porque na nossa cabeça não havia nada de sexual, e parou. Horrorizou-nos com o que disse. Era mais esse tipo de violência. Por exemplo, um dia houve uma irmã que entrou numa aula com um pedaço de pão.“Quem é que deitou este pão no lixo?”, disse. Foi um sermão de meia hora porque havia pessoas a morrer no mundo e houve a promessa de que a culpada ficaria um dia sem comer no colégio, por exemplo.

Anabela Moreira interpreta é uma noviça prestes a fazer os votos quando reencontra o sobrinho (Martim Canavarro), abandonado pela mãe (Margarida Moreira) e descobre sentimentos que desconhecia

Havia consequências?
No refeitório elas nunca queriam que pedíssemos comida em excesso para não haver desperdício. Tudo o que havia no prato tínhamos de comer. Lembro-me do pânico que era quando alguma coisa sabia mal, éramos todas nós a arranjar guardanapos para irmos pondo os bocadinhos e irmos escondendo. Aconteceu alguém deitar um resto de comida fora. A irmã tocou o sino, pôs-se em cima de uma cadeira — subia sempre para rezar antes e no fim da refeição — e obrigou a menina a tirar do lixo e comer. Mas era um ambiente saudável e agora vejo-o com alguma nostalgia — a maioria das minhas amigas que tiveram filhos entretanto puseram-nos lá. Eu sei que tinha notas miseráveis lá, era sempre na base do safar, e depois cheguei à escola secundária do Restelo e tinha 16, 17 sem precisar de fazer nada.

O que é que mudou na forma como agora olha para isso?
Eu via uma dessas irmãs como dura. Depois cheguei ao convento e vi que ela é responsável pelas crianças que são entregues pelo tribunal — algumas delas chegam lá muito traumatizadas, maltratadas pela família, abandonadas. Essa irmã tem um piso onde dorme com as crianças e tinha um cão, que era o Poeta, que dormia à porta do quarto dela, que estava sempre aberta. As crianças tinham um pesadelo e ela levantava-se ou as crianças iam ter ao quarto dela, tinham sempre autorização. A verdade é que, em pouco tempo, aquelas crianças florescem. Foi das coisas mais comoventes que vi na minha vida porque aquela mulher, que não foi mãe, é mãe daquelas 20 crianças. E mais: ela não utiliza o dinheiro que vem do estado para cada criança. Ela cria uma conta bancária, onde coloca o dinheiro desde sempre. Coloca-as a estudar no colégio S. José, têm acordos para estudarem até ao 12.º ano e depois apoios para continuarem para a universidade. E ela é rígida, mas é uma forma de amor, está a educar. No filme, em vez de fazer a freira amorosa, usei isso. Não sei explicar mas acho que também fiz as pazes com o meu passado.

Estava à espera disso?
Não. E isso aparece pontualmente no filme com o olhar, a forma de controlar se a saia não está muito levantada, a blusa não está muito aberta. É quase uma austeridade amorosa, um “estou aqui e estou a ver-te”, como os pais.

Foi também no colégio de freiras que fez a primeira peça de teatro. Lembra-se do que era?
Já me ri imenso a pensar nisso. Era eu e a minha melhor amiga, a Sandrine Marvão. Eu dizia: eu sou a prima. Ela dizia: eu sou a Vera. Depois dizíamos as duas: nós somos a primavera. Este foi o primeiro papel, uma coisa sem importância nenhuma. Depois, sempre que havia um exercício de ginástica, inventávamos uma performance e íamos para cima do palco. Tínhamos umas professoras maravilhosas que faziam uma peças de final do ano. Sei que me deram o papel principal, era apresentadora, dizia umas piadas. Fiz muita comédia no início e lembro-me perfeitamente de olhar para a cara das irmãs, das professoras, que eram tão austeras e fechadas — comigo especialmente porque eu não era assim tão atenta nas aulas —, e elas estarem a rir como se fossem crianças de seis anos. Foi aí a primeira vez que senti que tinha a capacidade de transformar a pessoa à minha frente..

Que idade tinha?
Talvez 13 ou 14. Lembro-me dos elogios nas semanas seguintes quando as pessoas passavam por mim e pela minha mãe. Eu era tão má em tudo — ia para as aulas já a pensar como disfarçar que não estava a ouvir. Era a primeira vez que fazia algo sem esforço e que conseguia feedback positivo. Depois afastei-me dos palcos, vou regressar para o ano ao Teatro da Trindade.

"Quando consigo colocar a emoção certa na cena, abano. Por exemplo, agora no filme do João Canijo [“Mal Viver”, que está em pós-produção], em que estivemos quatro meses em Esposende fechados, há ali uma parte final em que aquilo escala e eu fiquei 15 dias cansada. Se tivesse de repetir o que tinha feito, não conseguia."

A fazer comédia?
Não, ninguém agora me associa a comédia. Lembro-me de estar na ACT e o João Canijo, que foi meu professor, dizer à Elsa Valentim: a Anabela tem tempos de comédia. Ela disse que não porque achava que eu conseguia fazer drama de forma muito intensa. Já não sei o que ela disse mas lembro-me de pensar: estou lixada, se começar pelo drama, vão associar-me só ao drama. Se começar pela comédia, vão associar-me só à comédia. É o que acontece a muitos atores.

Ficam fechados num quadrado?
Sim. No ano passado, em outubro, tive a sorte de fazer um projeto que ainda não estreou. Chama-se “Chegar a Casa”, do Sérgio Graciano. Ainda não vi nada e é muito difícil fazer comédia para uma câmara, devo dizer, nunca sabemos se é na dose certa, sobretudo quando não temos muita experiência. Também fiz um piscar de olhos à comédia em “O Pátio das Cantigas” (2015), do Leonel Vieira. Mas gostava muito de fazer projetos de comédia inteligentes. E é bom, sabe bem.

Sobretudo nos tempos que vivemos?
Ai, sim. Quando fiz o “Sangue do Meu Sangue” (2011), onde me deixava sacrificar pelo Nuno Lopes e ele abusava sexualmente de mim, nos dois ou três anos seguintes telefonavam-me a convidar para projetos onde ia ser violada. Comecei a dizer que não porque não é um sítio bom para tu estares, não queria voltar àquela emoção.

[o trailer de “Sangue do Meu Sangue”:]

É muito pesado.
Muito. Quem me conhece e gosta muito de mim, às vezes vê-me chegar a casa com a minha energia muito gasta. O Marco Medeiros, que eu adoro e com quem vou trabalhar no Trindade, faz a direção de atores em alguns projetos do Sérgio Graciano. Lembro-me de fazermos uma cena [em “A Rainha e a Bastarda”, série prevista para 2022] em que estivemos umas três horas naquilo, numa violência emocional. Não se consegue chegar logo lá, àqueles níveis de violência, de intensidade. Às vezes as pessoas estão a falar à minha volta e eu estou a observá-las e a observar-me a mim, o que é um processo muito neurótico. É estar a viver uma emoção profunda e, em vez de estar só a vivê-la, é estar a pensar: “ah, espera aí, então é isto que eu sentiria se…”

Isso é muito desgastante, o cérebro não pára.
Não, o cérebro não pára. Porque depois, em cena, usamos essas coisas. Eu faço isto desde muito cedo, sem grande consciência. É preciso estar sempre disponível e depois chegamos a um ponto em que nos vamos fechando a tudo. Nos anos em que estudei na ACT cheguei a um ponto em que deixei de ver o telejornal, não conseguia mais. Estava a abrir-me e lembro-me de ligar o televisor e ver um pai a agarrar o filho numa situação de guerra e aquilo está-me cravado na cabeça como se tivesse estado lá a ver. Mas isso não interessa nada, só interessa a nós, atores.

Interessa o processo, porque não começa só quando se grita “ação” e não termina com “corta”. Para construir as personagens, a Anabela já fez uma data de coisas, já trabalhou numa lota, num bar de alterne. Como é que depois, quando regressa a casa, volta a ser a Anabela?
Não se volta, venho com coisas acrescentadas. Quando consigo colocar a emoção certa na cena, abano. Por exemplo, agora no filme do João Canijo [“Mal Viver”, que está em pós-produção], em que estivemos quatro meses em Esposende fechados, há ali uma parte final em que aquilo escala e eu fiquei 15 dias cansada. Se tivesse de repetir o que tinha feito, não conseguia.

Qual foi o projeto mais difícil de deixar para trás? Foi o “Mal Nascida” (2007)?
Sim, por causa dos 25 quilos que achava que ia perder rapidamente e não perdi.

[o trailer de “Mal Nascida”:]

Não se reconhecia?
Enquanto estive a fazer o filme, sentia-me protegida. Assim que fiz a cena de nu deixei de comer hidratos de carbono. Mas um ano depois, dois anos depois, não estava a conseguir perder peso e tinha pequenos ataques em que comia como se fosse uma viciada. Depois via a minha irmã gémea, com um cabelão, magra, e eu pensava: espera, eu sou assim. Houve um dia em que fomos almoçar com os meus pais e os meus irmãos e a Margarida veio ter comigo horrorizada. Disse-me: Anabela, tu não pareces da nossa família. Até a forma como estás a andar. Eu comia com a boca quase em cima do prato. Parece absurdo, mas tive alguma dificuldade em libertar-me daquilo.

O curso de Psicologia ajudou alguma coisa na construção destas personagens?
Ficaram ferramentas, sobretudo porque as coisas não são lineares.

O curso foi para fazer a vontade aos pais?
Sim, é comum nos meus colegas. Havia o medo de não conseguirmos [viver da profissão de ator].

A Patrícia Vasconcelos ia abrir a ACT — Escola de Atores e eu comecei a namorar o meu pai para me pagar o curso, que era caro. Foram 18 meses seguidos, de manhã à noite. A minha irmã continuou na faculdade, fez o mestrado, mas eu não me arrependo.

Chegou a acabar o curso?
Não, fiz até ao quarto ano e depois pus-me a andar. Na altura já se escolhia a especialização, quis psicologia clínica. Comecei a lidar com casos de esquizofrenia, compulsões e eu, na altura, queria era ser atriz. Já fazia publicidade e umas brincadeiras. A Patrícia Vasconcelos ia abrir a ACT — Escola de Atores e eu comecei a namorar o meu pai para me pagar o curso, que era caro. Foram 18 meses seguidos, de manhã à noite. A minha irmã continuou na faculdade, fez o mestrado, mas eu não me arrependo.

Foi nesse curso que conheceu o João Canijo e foi logo estagiar para um filme dele [“Noite Escura”, 2004]. Foi passar uns dias numa casa de alterne, mas a experiência não correu nada bem. O que é que aconteceu?
Eu sabia lá no que me ia meter. Havia homens que só lá iam para conversar, para serem ouvidos, para beber. Antes de eles chegarem as mulheres só diziam mal deles e, assim que eles desciam as escadas em caracol, elas desfaziam-se em sorrisos. Era um ambiente tão cínico. Elas diziam que para estar ali à conversa tinham de ter uma bebida, que era sempre champanhe. Depois tinham uma série de técnicas porque se durante uma noite inteira bebessem o que lhes pagavam, saíam dali em coma. Havia umas esponjas onde iam colocando o champanhe enquanto eles estavam distraídos, despejavam dentro do frapê. Eu ia observando, mas não estava preparada para aquilo, estive lá três ou quatro dias.

[o trailer de “Noite Escura”:]

Sentia-se desconfortável naquele ambiente ou em perigo?
As alternadeiras ganham metade do que vale a garrafa. Comigo faziam a totalidade, portanto eu valia por duas. Houve alturas em que não me deixaram tão protegida. O primeiro homem que olhou para mim como uma coisa, eu nunca tinha experienciado isso, estava a olhar-me descaradamente para o peito. Eu olhava para elas como que a pedir para me chamarem e nada.

Que idade tinha?
Tinha 27, já não era assim tão nova mas ainda era menina. E depois tive uma experiência com um senhor com os seus 60 ou 70 anos, que só ia lá fazer negócios, nem sequer queria que eu me sentasse. Ele até disse que estava à espera de uma pessoa, mas eu insisti. Elas [as alternadeiras] riram-se, se calhar o senhor ia lá só para beber e raramente queria companhia. Sentei-me e fui contando a história da minha personagem, que era a Rute. Tinha fugido da casa dos meus pais. Ele ouviu-me e às tantas disse: “Sabe, faz-me lembrar uma filha que eu perdi. Tinha a mesma idade. Diga-me uma coisa: quanto dinheiro é que a Rute (ele achava que eu era a Rute) precisa para ir estudar, para não precisar de estar aqui?” E [faz uma pausa, emocionada] eu olhei para ele. “Eu não preciso de nada”, disse. Afastei-me, subi as escadas em caracol, bêbada, porque era incapaz de mandar álcool fora — tinha medo de ser apanhada —, mudei de roupa e não avisei ninguém que me ia embora. Não ia voltar mais ali. Uma coisa é estar como atriz a brincar, outra é mexer com a vida de alguém e usar essa pessoa para experimentar uma personagem. Não sei o que me aconteceu ali, mas aquilo era tudo tão mau e, de repente, ele tem aquele gesto.

Ainda existe essa casa?
Não sei, mas essa casa não está aberta. Tem uma luz vermelha à porta, toca-se para entrar. Era um bocadinho mais acima do Largo do Rato.

"Os meus pais ignoram completamente o meu percurso, não acompanham nem os fracassos, nem os sucessos. Com o 'Sangue do Meu Sangue' ganhamos o Globo de Ouro de Melhor Filme. Quando cheguei a casa, os meus pais, não só não tinham visto, como o comentário do meu pai foi: 'Estás com o cabelo tão esquisito'"

Como é que os seus pais, uma família tradicional, olham para este tipo de papéis? Foram aprendendo ao longo dos anos?
Isto pode parecer negativo, mas com o tempo percebi que é a melhor coisa do mundo. Os meus pais ignoram completamente o meu percurso, não acompanham nem os fracassos, nem os sucessos. Com o “Sangue do Meu Sangue” ganhamos o Globo de Ouro de Melhor Filme. Quando cheguei a casa, os meus pais, não só não tinham visto, como o comentário do meu pai foi: “Estás com o cabelo tão esquisito”. Se me estava a sentir minimamente magnífica, porque fazemos um grande investimento para ir a essas festas, passou-me logo. E isto sabe bem, é reality check. Se está a dar uma coisa na televisão em que sei que vou aparecer nua, não exponho os meus pais a isso e eu acho que eles agradecem.

Em “O Dia do Meu Casamento” (2016), que a Anabela realizou, a sua mãe aparece. Porque quis incluí-la?
Sim, ela é a mãe da noiva. Acho a minha mãe uma mulher extraordinária e ela não sabe que é. Para mim são duas pessoas distintas: uma que sofre e que se deixa magoar pela vida e depois há um outro lado dela, que não poderia ser inventado. Ela é incrível, as coisas que diz, o que lhe passa pela cabeça. Podemos chamar-lhe tradicional, sim, houve um certo peso geracional. A minha mãe ficou em casa a tratar dos filhos, não se dedicou a nenhuma carreira nem desenvolveu nada que fosse só dela.

[o trailer de “O Dia do Meu Casamento”:]

São quantos filhos?
Somos quatro. Eu e a minha irmã gémea, a Margarida. Depois nasceu a Catarina e mais tarde o João, o menino da família. Também fazia parte desta coisa tradicional, ter um filho homem. A minha mãe nasceu numa vila, perto de Coimbra, chamada Serpins — o meu pai é de Fonte Limpa, uma serra —, e vinham com essas tradições. Eram outros tempos e eu nunca vivi aquilo. Quanto mais construía o guião de “O Dia do Meu Casamento”, mais queria fazer uma homenagem ao meu pai e à minha mãe. Eles, como família tradicional, tinham aquela ideia de que uma mulher só sai de casa para casar. Apesar de nunca me terem incentivado a casar, havia essa ideia. Eu estava na fase em que tinha ido viver sozinha e havia alguns sentimentos menos positivos sem necessidade, eles achavam que eu não queria estar junto deles. Eu pensei: bom, não me caso, vou fazer “O Dia do Meu Casamento”. É uma mulher que deixa o pai e isso está transcrito também na figura da menina. O pai nunca é filmado, é uma sombra. A mãe está sempre ao lado da noiva mas, no fundo, quem ela está a abandonar é a casa e o pai. Foi uma declaração de amor e foi uma forma de juntar uma série de coisas que tinha vivido.

Contou com o João Canijo nesse projeto.
Sim, foi ele que me provocou para começar a realizar. Desde miúda que filmava ao milímetro todas as viagens dos meus pais, era uma espécie de obsessão.

Antes de ser atriz já era realizadora então.
Sim, é verdade. Nos trabalhos da escola também fazia vídeos. Eu ficava fascinada porque o que via através da câmara era muito diferente do que via com os olhos. O João chegou a oferecer-me uma câmara para eu fazer experiências. Depois incentivou-me a filmar de forma mais profissional e eu fiz documentários. Quando escrevi o guião de “O Dia do Meu Casamento”, fi-lo sem pensar muito na concretização. Um dia telefonaram-me da Midas a dizer que tinha ficado em primeiro lugar num concurso do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual) e eu fiquei entre o feliz e o “oh, meu Deus, agora vou ter de fazer isto”.

"Imagino-me a ser mãe, mas o meu imaginário já começa a absorver as experiências negativas — e eu agradeço às mulheres que falam sobre a maternidade de uma forma real, porque é muito duro — e sei que, apesar de todas as coisas bonitas, é uma tarefa árdua. Acho que me sinto preparada, mas é preciso uma série de coisas, não é só querer."

Tem uma data de projetos em pós-produção. Como é que fez tanta coisa no meio de uma pandemia?
Nem sei. Alguma coisa aconteceu na minha vida desde o primeiro confinamento e não parei de trabalhar. Na segunda fase mais complicada da pandemia, estive fechada em Ofir durante quatro meses a fazer o filme do João Canijo. Tenho tido esse privilégio. Acho que as coisas mais interessantes vêm ter connosco a partir de uma certa idade e comigo tem acontecido isso. Quando era jovem tinha muitos medos, colocavam-me uma câmara à frente e eu só fazia disparates, ficava tão nervosa que nem estava a pensar bem no que estava a fazer. Dizia o texto o mais rapidamente possível para sair dali. Foi um processo muito longo até descobrir como fazer, por onde ir.

Ao mesmo tempo sempre largou tudo para se entregar a cada projeto. Se um filme exigir que se mude para os confins do mundo, está lá no dia a seguir.
Sim, porque não tenho filhos [risos], não tenho marido, sou completamente independente.

Sente que em algum momento da sua vida vai ter necessidade de abrandar?
Quando se começa a pensar na hipótese ou não de ter um filho, é preciso decidir. Se gostaria de assentar com uma pessoa e viver com ela, está na altura de decidir. Lembro-me de ver numa atriz que esteve connosco em Ofir o sofrimento de deixar uma filha pequenina, porque é físico até, não é só uma coisa emotiva. Eu nunca passei por isso.

E tem essa vontade ou é como o exemplo da noviça, que não se expõe para não saber o que isso é?
[Risos] É um bocadinho por aí.

Teria de abdicar sempre de alguma coisa?
É verdade. Para mim foi sempre mais fácil abdicar desse lado da minha vida. Não do lado familiar, atenção. Aliás, eu começo mais tarde a ser atriz (eu e a minha irmã gémea) pela família, porque estávamos onde tínhamos de estar. Eu sei o peso que o amor por alguém tem. E por isso abdico mas, mais tarde, tudo isso pode magoar. Não me arrependo mas, depois de abdicar durante tanto tempo, fugi. Foi uma opção, segui a minha vocação. Imagino-me a ser mãe, mas o meu imaginário já começa a absorver as experiências negativas — e eu agradeço às mulheres que falam sobre a maternidade de uma forma real, porque é muito duro — e sei que, apesar de todas as coisas bonitas, é uma tarefa árdua. Acho que me sinto preparada, mas é preciso uma série de coisas, não é só querer. Vamos ver, a vida já me surpreendeu tanto. Houve coisas de que já tentei fugir e que vieram ter comigo, outras que não procurei e que apareceram. Para já, aprendi com a idade que não se morre de desgosto, quem me dera que me tivessem explicado isso quando era miúda. Ultrapassa-se tudo.

Numa entrevista disse que, para se sentir realizada, faltava-lhe comprar a casa dos seus sonhos e ter mais compaixão consigo própria. Que lutas internas é que ainda trava?
Já comprei a casa [risos]. As últimas mulheres que interpretei ajudaram-me muito. Agora, quando uma coisa corre mal, já não fico a torturar-me. É engraçado, já não me lembrava de ter dito isso, mas era de facto um dos grandes objetivos e estou a conseguir chegar lá. Tenho mais piedade de mim própria. Não estava era preparada para me rir de mim. Havia coisas que me deixavam envergonhada ou deprimida e agora já penso “que se lixe”. Todos temos a mesma importância e eu tenho de viver comigo. Se as pessoas não quiserem entender, não entendem. Não sei se é da idade, se destas mulheres extremamente fortes que tenho interpretado. Tive de entender o que era ser assim.

Se essas personagens tivessem aparecido na sua vida quando tinha 30 anos não teria conseguido entendê-las?
Sim, teria interpretado algumas coisas com alguma agressividade ou energia agressiva. Não sei explicar mas antigamente vinham ter comigo personagens como hippies, a miúda cool, a rapariga que andava por ali. Agora têm-me oferecido mulheres fortes, que mudam o destino das histórias, que podem ser vistas como loucas, não são vítimas. Isso é muito engraçado. Ou fui eu que mudei e as pessoas começaram a ver-me capaz de fazer esses papéis ou foram estas mulheres que me alteraram.

Se calhar são as duas coisas juntas.
Sim. Estou muito agradecida a estas últimas personagens, que mudaram até o meu tom de voz. Estou menos a fingir que não estou aqui. Houve algumas situações na minha vida em que conseguia passar despercebida, porque assim também não era posta em causa, e depois não sei… Os projetos do João Canijo também são de grande auto-descoberta. Fui descobrindo coisas, deitando cá para fora.

É como terapia?
Uma das ferramentas da psicologia é o psicodrama, uma pessoa poder imaginar-se numa determinada situação protegida. Os atores têm o privilégio de usar coisas pesadas e colocá-las num certo sítio. Outras pessoas não podem chorar esses assuntos, não têm um espaço para serem ouvidos. Entre “ação” e “corta”, nós mandamos, somos nós que ali estamos. Há palavras que não são nossas, que nos permitem ir lá dentro e pôr cá para fora certas coisas. Lembro-me de estar a fazer uma cena com a Rita Blanco no filme do João Canijo e, de repente, ver o meu pai. Não foi preparado, não foi pensado, ela estava a falar comigo e eu estava a ver os olhos do meu pai. Houve algumas coisas que lhe disse naquele take que foi como se estivesse a dizer ao meu pai. É uma sorte poder trabalhar e exteriorizar coisas tão profundas. É um alívio, mas também te esgota. Houve um projeto muito giro que fiz há pouco tempo em que eu era uma mulher milenar, cheia de operações e de próteses. Andava toda torta, nem conseguia subir as escadas da minha casa [risos]. Só pensava: porque raio é que faço isto a mim própria? Quando estava na ACT, lembro-me de uma vez apanhar um autocarro e ver uma senhora que parecia toda feliz a limpar um dos vidros. Pensei: é isto, claro, quão feliz é que eu seria se a única coisa que fizesse fosse garantir que a janela estava limpa, em vez de andar aqui a mexer com as emoções, agora consigo, agora já não consigo… Agora já nem tanto, mas muitas vezes perguntei-me: porque raio é que me vim meter nisto? Mas depois chego ao fim e, se o trabalho for minimamente bem feito, há um alívio. Depois não chega, é preciso estar sempre a encher, nunca existe um vazio.

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