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“Vaca” é também o primeiro filme de uma nova experiência de cinema em sala em Lisboa, uma vontade de trazer de volta o cinema de bairro: a Cinetoscópio
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“Vaca” é também o primeiro filme de uma nova experiência de cinema em sala em Lisboa, uma vontade de trazer de volta o cinema de bairro: a Cinetoscópio

“Vaca” é também o primeiro filme de uma nova experiência de cinema em sala em Lisboa, uma vontade de trazer de volta o cinema de bairro: a Cinetoscópio

Andrea Arnold passou quatro anos a filmar a vida de uma vaca: "Só vemos ecrãs e tudo embalado, não conhecemos a realidade"

Chama-se “Vaca”, mas o espectador decorará imediatamente o nome do animal, Luma, a estrela do documentário de Andrea Arnold. Um dos acontecimentos de Cannes 2021 estreia esta semana entre nós.

Um filme a propósito, protagonizado por ou com animais no título — seja de ficção ou documental — tem tendência para dar protagonismo a questões. ambientais. E não é errado (bem pelo contrário) ver em “Vaca”, magnífico documentário da britânica Andrea Arnold, sobre a vida de uma vaca leiteira, chamada Luma, essa mensagem, centrada na crueldade criada pela necessidade humana de consumo. Mas há mais neste filme. E há sobretudo a relação que Arnold cria entre a vaca e o espectador — mesmo que esta frase possa parecer algo estranha.

A realizadora não adorna nada na realidade da vida deste animal. E não é por vermos ao detalhe o processo da indústria pecuária que a experiência de ver “Vaca” se torna impessoal. Há uma série de mensagens e vontades da realizadora que vão passando ao longo do filme. Há, como Andrea Arnold nos diz em entrevista, um desejo de que este filme nos ligue – a nós, espectadores – com o real, com os nossos sentidos, com o que está à nossa volta e com o mundo, como ele se processa. Só assim poderemos mudar, agir em conformidade.

É a primeira experiência de Arnold com documentários. Tem um currículo irrepreensível no cinema, com “Aquário”, “Montes dos Vendavais” e “American Honey”. Tem percurso feito na televisão (“Transparent”, “I Love Dick” e “Big Little Lies”) e agora traz-nos este “Vaca”, um filme-experiência que comunica de forma inesperada. Não é pelo objeto filmado ser uma vaca, mas pela forma como após alguns minutos nem sequer se pensa mais nisso. Luma é uma estrela e a sua vida uma tragédia a que se assiste impávido.

“Vaca”, que foi um acontecimento na edição do festival de Cannes do ano passado, é também notícia entre nós por ser o primeiro filme de uma nova experiência de cinema em sala em Lisboa, uma vontade de trazer de volta o cinema de bairro. A Cinetoscópio (formada por pessoas da Risi Film, O Som e a Fúria e Gambito, parte da Alambique) começa um projeto de programação no Cinema Fernando Lopes, que se localiza no campus da Universidade Lusófona.

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Estivemos à conversa com a realizadora de “Vaca”, Andrea Arnold, via Zoom, dias antes da estreia do documentário em Portugal:

[o trailer de “Vaca”:]

Não vamos falar do final, mas tenho de confessar que, apesar de previsível, é impressionante.
Toda a gente fala do fim, acho que não há grande segredo. Nos filmes não queremos saber como acaba, mas faz parte. Acabei de fazer uma outra entrevista e o entrevistador falou durante imenso tempo sobre o final.

Depois de ver “Vaca” lembrei-me de “Monte dos Vendavais”. Fiquei surpreendido porque os sentimentos são parecidos: “é maravilhoso, mas também cru e cruel”. Sente isso em relação aos seus filmes, sobretudo em relação a “Vaca”?
A vida é assim, não é? A vida é incrível, mas também é brutal, difícil, sinto que só estou a ser realista sobre as coisas como elas são. Claro que imagino certas coisas nos meus filmes, mas é a forma como vejo a vida. É mesmo bonita… por exemplo, hoje estava no parque, está um dia quente aqui em Londres, e as árvores estão bonitas, verdes, a florescer, e os cheiros… não resisti a aproximar-me das árvores e cheirá-las. E hoje estou triste – não vou falar disso, porque é um assunto pessoal –, mas há esta beleza no parque e estou triste com algo. É a vida, está cheia de coisas bonitas e coisas brutais. E experienciamos isso a todo o momento.

O que a levou a afastar-se da ficção e realizar o seu primeiro documentário?
Não tenho um plano para a carreira, sou movida pelo que me interessa. Já tinha pensado neste filme há cerca de dez anos, foi quando tive a primeira ideia para “Vaca”. Demorei algum tempo a começar e, depois de o fazer, precisei de quatro anos. Como realizadora, acho que devo explorar coisas diferentes. Disse que viu “Monte dos Vendavais” e agora o “Vaca” e teve os mesmos sentimentos… De certa forma não interessa em que formato estou a realizar, mas o tipo de objetos que estou a explorar. Aliás, acho que explorei documentário nos meus filmes de ficção: uso pessoas reais, gosto de filmar sítios reais, adoro meter montes de animais neles. Adorava fazer um filme com cenas filmadas só num take, para parecer o mais real possível [risos].

"Há quem diga que uma das diferenças entre os humanos e os animais é que os animais não conseguem ver o futuro. Mas ao ver a Luma durante tanto tempo e as outras vacas, ao prestar atenção ao meu cão... eles sabem o futuro, eles sabem que "naquele" dia certas coisas vão acontecer, começam a ficar agitados, a mugir, excitados, ainda antes de abrirem as portas. Não sei como, mas sabem."

Gosta da imprevisibilidade da vida?
Sim, não se pode controlar, as coisas vêm até nós. Por exemplo, com o extrator de foco [1.º câmara assistente], gosto que esteja à procura e não à frente da ação. Acho que deve estar à procura, sem saber o que fazer, mas encontrar o que está a acontecer. É a ideia de que a vida está à nossa frente, não a podemos controlar, manipular. Gosto disso… e se estou a realizar uma cena e sinto que é previsível, vou fazer algo diferente para abanar um pouco o momento. Estou sempre à procura da realidade, do que é real, vivo. Quando temos estas pessoas, que não são atores profissionais, é imprevisível. É por isso que gosto deles.

Porquê?
Às vezes não aparecem a tempo. Temos de os levantar da cama. No “American Honey” isso acontecia muitas vezes, não se queriam levantar, porque tinham saído à noite, tinham ido dançar e não queriam vir filmar. Tínhamos de os acordar: “tens de vir, é o teu trabalho”. E eles diziam “não, não quero, porque deveria de querer ir?”. E tínhamos de esperar imenso tempo. Mas gosto disso. No “American Honey” tínhamos operários que trabalhavam numa petrolífera e algumas raparigas que também faziam parte do filme estavam a flirtar com eles. Uma das mulheres estava a ver e não gostou, agarrou nele e levou-o para casa. E isso foi a meio de uma cena. E ela levou-o, tive de filmar a cena de novo. Não se pode fazer nada, são pessoas, se decidem que vão para casa, vão para casa. Por vezes é um pesadelo, mas prefiro esses desafios a ter tudo controlado. Para mim isso é algo morto… por isso, fazer documentários é uma extensão do que me interessa. E quero fazer mais.

Por falar nisso, como é filmar vacas?
Por vezes é alarmante. Na maior parte do tempo não parecem agressivas, mas são grandes e mexem-se. E à volta delas tudo se torna escorregadio, é preciso ter cuidado. Houve momentos em que eu e a Magda [Kowalczyk, diretora de fotografia] quase tivemos acidentes. Fomos filmar um boi, e era um novo boi colocado no campo com as vacas. Fomos filmar o que ia acontecer, era só eu e ela num camião, ela estava atrás, a filmar, e eu a conduzir. E o boi, que era jovem, com as hormonas em grande, tinha acabado de descobrir o seu poder. Não faço ideia o que ele pensou o que nós éramos, mas não gostou do camião, começou a ir contra ele, o que foi assustador: ele era gigante e estava a usar toda a sua força. Disse à Magda que tínhamos de sair e o boi e as vacas foram atrás de nós. Senti que ele ia mesmo virar o camião, é um daqueles momentos assustadores mas… a Magda assustava-me às vezes, porque ela metia-se mesmo lá no meio. Quando decidimos que era a Luma que iríamos filmar, ela metia-se lá no meio, mesmo quando as vacas estavam a ser ordenhadas. A Magda não acreditava que elas a iam magoar e isso manteve-a segura. Ela sentia-se segura e relaxada entre elas e é provável que as vacas tenham sentido isso. É por causa disso que ela consegue aquelas imagens… penso que ela no final sentia-se uma delas, já pensava como elas.

"Cow" Photocall - The 74th Annual Cannes Film Festival

É a primeira experiência de Arnold com documentários. Tem currículo no cinema (“Aquário”, “Montes dos Vendavais” e “American Honey”) e na televisão (“Transparent", “I Love Dick” e “Big Little Lies”)

Getty Images

As vacas normalmente estão muito calmas, mas depois há aquele momento em que vão para o campo e estão muito excitadas a correr.
Isso foi no primeiro dia em que saíram, na primavera. A vaca passa seis meses dentro, durante o frio, e depois há uma altura na primavera em que as deixam à solta. Uma pesquisa no Youtube por “spring turnout” dá resultados maravilhosos, com vídeos filmados pelos vaqueiros. Há quem diga que uma das diferenças entre os humanos e os animais é que os animais não conseguem ver o futuro. Mas ao ver a Luma durante tanto tempo e as outras vacas, ao prestar atenção ao meu cão… eles sabem o futuro, eles sabem que “naquele” dia certas coisas vão acontecer, começam a ficar agitados, a mugir, excitados, ainda antes de abrirem as portas. Não sei como, mas sabem. E também sabem quando vão ser separados da vitela. A Luma ficava sempre a mugir quando sentia isso, parecia irritada. Ela sabia o que ia acontecer. As vacas têm vidas diferentes das nossas, mas é possível ver emoções, como inveja, raiva, calma… ou carinho, proteção. Não sabemos como é, temos de usar a nossa imaginação, imaginar o que sentem.

Foi ao usar a sua imaginação que percebeu que a Luma seria a vaca que queria filmar?
Quando descobrimos a quinta onde íamos filmar, tínhamos depois de descobrir a vaca que iríamos filmar. Tinha de esta grávida, falaram da Luma, eles não dão nomes a todas as vacas, por isso achei que o facto dela ter um nome era bom sinal. A Luma é uma vaca muito bonita, mas penso que sentiria o mesmo se tivesse trabalhado com outro animal, tem a ver com o tempo que passamos com eles, a pensar neles e no que eles pensam.

Filmou durante quatro anos. Teve prazer em fazer um projeto a longo prazo?
É sempre bom sair de Londres e ir para a natureza. Quando olho para o filme, sinto coisas intensas. Não sei se “prazer” é a palavra certa… gostei de fazer algo mais pequeno, com menos pessoas envolvidas. Senti como se estivesse a fazer um poema. É gentil, é um processo lento. Gostei disso. Mas o assunto é complicado, acho que quando o vejo, sinto o mesmo que o público. É muito complexo.

"Quando vemos tudo embalado, carne, peixe, isso não se parece com a realidade. Há uma grande desconexão. Houve uma altura em que vivíamos com os animais, matávamos os animais, para comer, para lhes tirar a pele e vestir. Vivíamos com eles, interagíamos de uma forma real. Agora, é tudo feito às escondidas e perdemos a ligação com isso. 'Vaca' tem um desejo meu, para que nos relacionemos com a realidade."

Mencionei a palavra “prazer” no sentido do inesperado. Viver com a ideia de que, num dia qualquer, de surpresa, seria dia de filmar algo em específico.
Éramos uma equipa pequena, de cinco pessoas. Por vezes eu não estava disponível e ia outra pessoa. Se fosse algo específico, íamos com alguém para gravar o som. Tudo dependia de quando acontecia. Às vezes sabíamos das coisas com tempo, podíamos planear, outras vezes não. Houve alturas em que eu estava muito ocupada e esperávamos para quando estivesse disponível. Foi tudo muito flexível. Comprámos uma carrinha para viver nela enquanto estávamos lá. Mas isso raramente aconteceu.

Por vezes, foi desolador ouvir Luma mugir. Como foi estar lá?
Já sabia muito sobre o que acontece nestas quintas. Não ia com ilusões. Sabia que ia estabelecer uma relação com a Luma e que ia ser difícil. Já estava preparada. Não queria interferir ou não contar a verdade. Há pessoas que me perguntam se eu tive vontade de a tirar de lá… era importante mostrar como era. Tive de colocar os sentimentos de lado e filmar o que estava a ver. Acho que sabia o que esperar… tenho amigos que desconheciam por completo esta realidade, das vacas leiteiras. E fico surpreendida, o facto de haver pessoas inteligentes que desconhecem isto. Acho que tem a ver com a nossa desconexão com a natureza, temos ideias românticas, temos brinquedos com animais, puzzles com imagens da natureza, livros para crianças em que há botões que fazem sons. Crescemos com imagens românticas da natureza… até nas artes plásticas, vamos a uma galeria e é tudo romantizado, imagens pastorais. Temos uma ideia romântica da natureza e a realidade é diferente. Queria que as pessoas se ligassem a essa realidade, que soubesse de facto como as coisas são.

Por falar em desconexão: num supermercado no Reino Unido é difícil ver um peixe inteiro no supermercado. Em Portugal, vejo muitas vezes ingleses ou americanos surpreendidos por nos verem a comer um peixe inteiro. E ficam algo enojados, até…
É mais real. Quando vemos tudo embalado, carne, peixe, não conhecemos a realidade. Só vemos ecrãs. Há uma grande desconexão. Houve uma altura em que vivíamos com os animais, matávamos os animais, para comer, para lhes tirar a pele e vestir. Vivíamos com eles, interagíamos de uma forma real. Agora, é tudo feito às escondidas e perdemos a ligação com isso. “Vaca” tem um desejo meu, para que nos relacionemos com a realidade.

"No início, achei muito visceral estar junto das vacas, o barulho que fazem, ao respirar, mastigar, o mugir, os pequenos barulhos" (na foto a diretor de fotografia, Magdalena Kowalczyk)

Uma das coisas que mais me impressionou ao longo do filme tem a ver com a relação entre as vacas e as crias, o aleitamento. Chega a haver cenas desconcertantes, revoltantes até.
Na altura em quer procurávamos quintas, vi uma vaca a dar à luz. E vi tudo, vi o parto, a vitela a tentar levantar-se. E assim que a vitela se levantou, estava a tentar ser alimentada e encontrar as tetas. E foi frustrante, estava a chupar em tudo. A mãe estava agitada, a tentar ajudá-la… e a vitela tentava encontrar as tetas. Isto durou muito tempo, os animais estavam muito agitados. Eles estavam desconectados. Após uma hora ou duas, a vitela conseguiu estabelecer uma ligação com a mãe e começou a beber o leite e os animais ficaram calmos. Aconteceu uma bonita conexão… por vezes sinto que esta desconexão que temos no mundo, contribui para este sentimento de agitação que temos. Quanto maior conexão existe, a qualquer nível, mais calmos estamos. Mas estamos a encorajar a desconexão. E devíamos fazer o contrário.

Sobre a banda-sonora: a música que se ouve no filme estava mesmo a passar na quinta?
Eles estão sempre com a rádio ligada, com música pop, com canções de amor, de amor perdido, “onde é que estás, eu amo-te, sinto a tua falta”. E achei apropriado, porque se adequava ao que se passava ali. Aquelas canções estavam a passar durante a rodagem, por acaso, outras fui eu que escolhi. São todas cantadas por mulheres, fazia todo o sentido.

Ouvir as canções à distância cria uma certa empatia com o som das vacas.
No início, achei muito visceral estar junto das vacas, o barulho que fazem, ao respirar, mastigar, o mugir, os pequenos barulhos. Queria apanhar isso, esse som, a dimensão delas. Era importante para perceber muitos detalhes, ouvir como elas respiram. Foi algo em que trabalhámos muito. Precisamos de ir mais para o mundo sensorial. Estar menos tempo em frente aos ecrãs, perceber mais a nossa humanidade. Temos de cheirar, tocar, sentir. Experimentar o outro.

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