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Anna Arutunyan. "É difícil ir contra uma pessoa poderosa que está tão assustada como Putin está"

A russo-americana Anna Arutunyan foi jornalista em Moscovo e agora analisa o Kremlin à distância. Em entrevista ao Observador, fala da Ucrânia, de Navalny e do que se passará na cabeça de Putin.

Apesar de ser uma das analistas que mais publica no Ocidente sobre o Kremlin e a política interna russa, Anna Arutunyan não dá muitas entrevistas. Nascida na União Soviética, cresceu nos Estados Unidos e regressou a Moscovo no início da década de 2000 para trabalhar como jornalista. Nos últimos dez anos, contudo, tem vivido no estrangeiro, entre o Reino Unido e os Estados Unidos, colaborando como analista para organizações como o Crisis Group e o Wilson Center. No entanto, não perde a capacidade de olhar para o próprio país sem os vícios dos estrangeirados, não subscrevendo todos os consensos dos colegas — sobretudo no que diz respeito à figura de Vladimir Putin.

Putin não é um Estaline, não é um tipo de visionário ideológico com um forte sentido do que quer para a Rússia”, afirma em entrevista ao Observador, contrariando alguns dos retratos habitualmente feitos no Ocidente que descrevem Putin como um mestre da estratégia. Em vez disso, Arutunyan aponta-lhe os constantes “ziguezagues” e “hesitações”. “Acho que está a tentar imitar o estalinismo sem o aplicar de facto. Joga com os medos da sociedade russa, emite ameaças, espalha a confusão e a discórdia, mas sem fazer todas as coisas que habitualmente se esperam de um ditador“.

Não que isso signifique que Anna Arutunyan o considera um líder democrático ou suave. Antes pelo contrário: a russo-americana não tem dúvidas em sublinhar como o Presidente “se tornou muito mais autoritário”, governando “pelo medo e pela repressão”, ao longo da última década. E essa brutalidade é cristalizada no destino do opositor Alexei Navalny, que morreu na passada sexta-feira, cujo papel a analista não cessa de destacar: Navalny, diz, tornou-se não apenas num “mártir”, mas “num farol de esperança para o futuro da Rússia”. “Putin não vai durar para sempre; Navalny sim”, prevê.

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O que não significa que uma revolução na Rússia esteja ao virar da esquina. A antiga jornalista sublinha repetidamente como o papel das elites russas é fundamental para qualquer futuro sem Putin e não acredita na possibilidade de um grande levantamento popular num país onde “as pessoas estão com medo” — até dentro do Kremlin, sobretudo depois da morte de Yevgeny Prigozhin, objeto do próximo livro de Arutunyan a ser publicado, Downfall, juntamente com o também especialista na Rússia Mark Galeotti. A própria sociedade russa, como explorou longamente no seu primeiro livro A Mística de Putin (ed. Quetzal) publicado há dez anos, tem uma relação complexa com o poder — e Arutunyan coloca o foco até em si própria, recordando na obra o momento em que conheceu pessoalmente Vladimir Putin no trabalho e sentiu o impulso de retirar da mesa os livros críticos do Presidente russo.

A situação atual na Rússia é impossível de ser desligada do que se passa no campo de batalha na Ucrânia — e Arutunyan também sabe do que fala, tendo analisado a guerra no Donbass em Hybrid Warriors: Proxies, Freelancers and Moscow’s Struggle for Ukraine (sem edição em português, publicado em 2022) — com qualquer alteração do atual equilíbrio militar a poder ter reflexos na política interna russa. No dia em que se assinalam dois anos do início da invasão de larga escala da Rússia à Ucrânia, a maioria dos russos, contudo, não estará numa “busca interior”, prevê a analista. “Quando o Kremlin diz ‘Estamos cercados’ [pelo Ocidente], isso infelizmente tem eco numa grande parte da população russa“.

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Vladimir Putin anunciou a invasão de larga escala à Rússia a 24 de fevereiro de 2022

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Este sábado assinalam-se os dois anos do início da invasão de larga escala da Rússia à Ucrânia. Como acha que a maioria dos russos vai reagir à data?
Já ouvi alguns russos dizerem que a morte de Alexei Navalny é para eles um ponto de viragem tão emocional como o início da guerra. Mas, no que diz respeito à efeméride, não creio que estes dois anos provoquem uma grande busca interior entre os russos. Não nos podemos esquecer que hoje [quinta-feira, 22 de fevereiro] há outra efeméride, em que se assinalam os dez anos do golpe… [Pausa] Peço desculpa, “golpe”? “Golpe” não, é uma expressão da propaganda russa. Bom, enfim, do derrube de Viktor Yanukovich na Ucrânia e do início da Primavera ucraniana. Para o governo russo e para os setores patrióticos esta é uma data muito mais relevante, porque consideram que a guerra dura há dez anos e que a invasão foi o culminar disso.

Fevereiro de 2022 é visto como um contínuo, não como o início de nada?
Sim, como a continuação do que começou em 2014, para eles está tudo ligado — e de certa forma para os ucranianos também, diga-se. Muitos ucranianos têm dito “Isto começou há dez anos quando derrubámos o nosso Presidente e a Rússia não concordou com isso e enviou tropas para cá”. A realidade é mais complexa. É claro que houve tropas russas na Crimeia, mas também houve voluntários. Houve um movimento popular separatista no leste [da Ucrânia] que foi alimentado pela Rússia. Por isso sim, de certa forma, o conflito começou há dez anos.

"Tenho sérias dúvidas de que haja um apoio em massa à invasão da Ucrânia — ou à "operação militar especial", como lhe chama o Kremlin. Independentemente das sondagens, a minha estimativa é que o apoio real não vá além de 15% entre toda a população. Dito isto, quando a questão é colocada de outra forma, como "Apoia que nos defendamos do Ocidente?", isso tem mais aprovação por parte dos russos."

Independentemente da questão da data, a guerra na Ucrânia será um tema nos próximos dias na Rússia, certo? Há uma campanha presidencial a decorrer e, recentemente, houve a conquista de Avdiivka​.
Claro que sim. Mas a forma como o Kremlin se tem posicionado em relação a esta guerra é mais na lógica de uma guerra mais prolongada contra o Ocidente, que diz ter instigado uma guerra por procuração contra a Rússia. É assim que veem o campo de batalha. [Vladimir] Putin diz uma e outra vez que isto não é sobre a Ucrânia, é sobre o Ocidente. Este tipo de declarações são cada vez mais recorrentes, a de retratar um país na defensiva contra um Ocidente agressivo que está a usar a Ucrânia para enfraquecer a Rússia.

Há sondagens sobre a opinião geral em relação à guerra na Rússia, mas alguns especialistas dizem que não se deve extrapolar a partir delas, porque muitos russos não aceitam responder. É possível ter uma perceção real de como a maioria se sente em relação à guerra neste momento?
Isto é muito interessante. Tem razão quando fala dos problemas com as sondagens relativas à guerra na Ucrânia, os resultados dependem muito de como a questão é colocada. Tenho sérias dúvidas de que haja um apoio em massa à invasão da Ucrânia — ou à “operação militar especial”, como lhe chama o Kremlin. Independentemente das sondagens, a minha estimativa é que o apoio real não vá além de 15% entre toda a população. Dito isto, quando a questão é colocada de outra forma, como “Apoia que nos defendamos do Ocidente?”, isso tem mais aprovação por parte dos russos. Porque, de certa forma, encaram-no como uma resposta à política de sanções do Ocidente e à mensagem, na minha opinião, vaga e pouco clara dos aliados ocidentais da Ucrânia sobre o que querem. Muitos no Ocidente dizem “Temos de derrotar a Rússia”. É claro que querem dizer “derrotar na Ucrânia”, mas isto é tão vago que cria uma ilusão depois explorada pelo Kremlin de que o Ocidente está a tentar enfraquecer e destruir a Rússia. Não é esse o caso, mas, tendo em conta as mensagens pouco claras do Ocidente, quando o Kremlin diz “estamos cercados”, isso infelizmente tem eco numa grande parte da população russa.

Há dez anos publicou o seu livro A Mística de Putin (ed. Quetzal). Nele escrevia que o culto da personalidade em torno de Putin era muito específico: não era como o de Estaline, era antes um movimento popular orgânico, mais de baixo para cima do que promovido pelo Estado. Isso mudou nestes dez anos?
Mudou muito. É claro que ainda há um elemento de baixo para cima na relação com o poder a que Putin reage. Mas mudou no sentido em que Putin se tornou muito mais autoritário, é agora um líder que governa mais através do medo e da repressão do que pela abordagem híbrida e multifacetada que adotava na altura em que escrevi A Mística de Putin. No meu livro mais recente, tentei acompanhar essa transformação relativamente à Ucrânia, que, de certa forma, começou como esse movimento de baixo para cima — o que não significa que tivesse um apoio popular em massa na Rússia. Creio que isso nos ajuda a perceber como o Kremlin se apoia em diferentes setores da sociedade quando precisa de reforçar o seu poder e não tem uma visão clara do que quer e onde assenta a sua legitimidade.

"O leste da Ucrânia é um bom exemplo das hesitações de Putin. Ele não sabia o que fazer, não sabia o que queria. Estava a reagir às ameaças e oportunidades no terreno à medida que surgiam. Em vez de ter uma visão clara do que pretendia na Ucrânia (Anexar apenas a Crimeia? Anexar mais territórios? Apenas apoiar os separatistas?) deixou os atores não-estatais e os elementos dos serviços de segurança tomarem as decisões."

O que explica essa radicalização de Putin ao longo deste dez anos?
Creio que tem estado a crescer continuamente e assenta na combinação de duas coisas. Por um lado, a forma como Putin vê o mundo, a sua paranoia, é em certa medida uma resposta aos seus próprios erros, que vai reforçando essa paranoia. Em 2012, quando regressou à presidência [depois de afastar Dmitry Medvedev, provocando fortes protestos populares], Putin perdeu subitamente o apoio da elite liberal, dos cosmopolitas, de uma certa classe média que queria cultivar. Eles revoltaram-se contra ele. E Putin sentiu-se tão ameaçado que se afastou deles. Aproximou-se das alas mais nacionalistas, até dentro do seu próprio governo, e do aparelho de segurança. E, junto da população, aproximou-se das classes trabalhadoras, que mantêm visões mais anti-ocidentais e tradicionalistas. Tentou promover a imagem de que era o homem certo no lugar certo, o único capaz de governar a Rússia, precisamente porque se sentia ameaçado.
E culpou as tensões internas numa suposta interferência ocidental. Acusou diretamente a à altura secretária de Estado Hillary Clinton de apoiar as manifestações de 2012 e de tentar interferir na política russa. E, é claro, quando aconteceu a Revolução em Kiev e o afastamento de Yanukovich, Putin convenceu-se de que isso era mais um passo da “guerra híbrida” do Ocidente contra a Rússia. Essa é uma das razões pelas quais reagiu tão rapidamente, anexando a Crimeia. Não foi algo que ele tivesse planeado antes, que desejasse há muito. Na perspetiva dele, nesta sua visão do mundo, era como se não tivesse escolha. Já o leste da Ucrânia é um bom exemplo das hesitações de Putin. Ele não sabia o que fazer, não sabia o que queria. Estava a reagir às ameaças e oportunidades no terreno à medida que surgiam. Em vez de ter uma visão clara do que pretendia na Ucrânia (Anexar apenas a Crimeia? Anexar mais territórios? Apenas apoiar os separatistas?) deixou os atores não-estatais e os elementos dos serviços de segurança tomarem as decisões.

Ia improvisando, portanto. Mas acha que há uma crença sincera, que a sua paranoia é genuína? Quando ele diz que a Ucrânia sempre fez parte da Rússia ou que é controlada pelo Ocidente, Putin acredita de facto nisso ou usa essas afirmações como desculpas para as suas ações?
Acho que num certo nível ele acredita nisso, talvez até tenha sempre acreditado. Mas quando faz estas declarações em público está sobretudo a justificar o seu comportamento reativo. Por exemplo, é interessante pensarmos na invasão total de fevereiro de 2022, nos bombardeamentos e envio de tropas para Kiev: Putin e as suas forças estavam numa posição muito melhor para levar isto a cabo na primavera de 2014 e, no entanto, optaram por não o fazer. Apesar de haver pedidos nesse sentido por parte dos militares, dos serviços de segurança, dos separatistas ucranianos, dos voluntários russos que foram combater para lá. E, contudo, ele não o quis fazer. Isso indica-me que, para Putin, não se trata tanto de querer tomar a Ucrânia, mas mais de provar algo ao Ocidente. Na altura ele não queria envolver-se numa guerra de expansão, talvez nem mesmo agora essa seja a sua principal intenção. Acho que se convenceu de que foi encurralado pelo Ocidente quando, na verdade, foi encurralado pelas suas próprias decisões e indecisões.

Assenta esta radicalização de Putin na reação da classe média e urbana em 2012 e no crescimento dos movimentos da oposição. Mas eles representam uma fatia pequena da população. Porque é que Putin ficou tão assustado com isso?
Isto relaciona-se muito com a emergência de Alexei Navalny. Até 2012, a oposição liberal era, de facto, marginal. Não tinha ligações com outros segmentos da população russa, como os colarinhos-azuis, os não-cosmopolitas, que formam a base do Rússia Unida [partido de Putin]. Em 2012 surgiu Navalny, que tinha um passado de certa forma ambíguo. Era um liberal, mas também era um nacionalista. E, quando falo em nacionalismo, é importante lembrar que há várias formas de interpretar o nacionalismo russo: há o etnonacionalismo tóxico, imperialista, que é assustador; e há outro nacionalismo que se baseia não na etnia, mas na identidade dos cidadãos e no tipo de país partilhado que querem construir. Este era o tipo de nacionalismo que Navalny defendia à altura, tal como defendia valores liberais, como a independência dos tribunais e eleições livres, justas e democráticas. E combatia a corrupção, um assunto que era um problema não apenas para a oposição, mas para todo o país — havia uma hemorragia de dinheiro devido à corrupção, de tal forma que, quando Dmitry Medvedev era Presidente, foi criada uma campanha anti-corrupção. Portanto, o movimento liberal com Navalny transformou-se em algo muito maior e mais ameaçador para o Kremlin, porque Navalny estava a falar de problemas transversais e Putin sabia-o.

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Alexei Navalny destacou-se publicamente nos protestos de 2012

AFP via Getty Images

Era um líder da oposição eficaz, talvez o mais eficaz de todos os que Putin enfrentou. Isso explica um medo tal que levou ao envenenamento, prisão e agora morte? Ou diria que, em relação a esta última, o mais certo é Navalny ter sido vítima das condições do sistema prisional na Rússia?
A coisa certa a dizer neste momento é que o Kremlin é responsável pela morte de Navalny. Isto é completamente verdade e acredito nisto, quer tenha sido por causa do sistema prisional, quer tenha sido um ataque direto. Também penso que ele foi envenenado, se não por ordens diretas do Kremlin, pelo menos com a sua bênção. Agora, ainda não temos os detalhes [sobre a morte] e, para ser honesta, hesito em fazer acusações diretas. Talvez daqui a cinco ou dez anos tenhamos todos os detalhes que nos permitam perceber o que aconteceu ao certo.
Quanto à questão mais geral, sobre quão ameaçado por Navalny se sentia Putin… Enquanto ainda estamos no meio deste momento, é difícil perceber. Porque as ações e o comportamento de Putin em relação a Navalny têm sido estranhos e até contraintuitivos. Em 2012, quando todos achávamos que Navalny ia ser preso, não foi. Foi judicialmente acusado, mas não foi condenado a pena de prisão e até foi autorizado a concorrer às eleições autárquicas de Moscovo, contra o presidente Sergei Sedanin, em 2013. Obteve 27% dos votos.

Um resultado muito impressionante, se tivermos em conta que não eram eleições totalmente livres…
Exato, mesmo impressionante! É um resultado que nos diz duas coisas: uma é que Navalny tinha resiliência e apoio popular; a outra é que o Kremlin deixou que isto acontecesse, deixou que ele fizesse campanha. Há quem explique isto com a sugestão de que Navalny era uma espécie de candidato plantado pelo próprio Kremlin, mas rejeito categoricamente essas teorias da conspiração. Acho que, em vez disso, isto reflete a abordagem de Putin: “Vamos deixá-lo fazer o que entender, fingir que não temos medo dele. Porque se o prendermos vai parecer que temos e isso só o torna uma ameaça ainda maior.” Mas o problema não desapareceu. A repressão sobre a oposição continuou, mas a oposição não desapareceu. Porque quando se começa a apontar o dedo ao poder, a dizer que o Kremlin está a mentir às pessoas, os problemas em vez de desaparecerem acumulam-se. E continuam lá, seja o líder Navalny ou outro qualquer. Era nesse ponto que o Kremlin estava em 2020. Podiam tê-lo simplesmente prendido de imediato, mas foi envenenado. Porque tinham medo dele. E agora isto. Como lhe digo, ainda não temos todos os detalhes do que aconteceu, vamos esperar pela investigação da família e dos aliados de Navalny. Mas o que é certo é que o Kremlin tinha tanto medo deste homem que não sabia ao certo o que fazer com ele e tudo o que tentou falhou.

"O aparelho repressivo neste momento é tão eficaz que não espero que haja surpresas durante a eleição, nem sequer manifestações consideráveis. As pessoas estão com medo. Mas isso não altera o facto de que, fundamentalmente, Navalny se tornou num mártir, num farol de esperança para o futuro da Rússia. E as pessoas estão só à espera do momento certo. Putin não vai durar para sempre; Navalny sim."

Antes de ser envenenado, Navalny disse em algumas entrevistas que talvez o Kremlin tivesse medo de fazer dele um mártir. Tenha ou não a sua morte sido intencional, acha que foi isso que aconteceu?
Sem dúvida, fizeram dele um mártir. E embora eu tenha algum pudor em dizer taxativamente o que aconteceu, de uma forma ou de outra o Kremlin acabou por matá-lo, falta é saber exatamente como. Mas às vezes sobrestimo as capacidades intelectuais do Kremlin. Talvez eles sejam tão tacanhos que, mesmo havendo esta consciência de que estavam a fazer de Navalny um mártir, isso não os tenha travado.
O aparelho repressivo neste momento é tão eficaz que não espero que haja surpresas durante a eleição, nem sequer manifestações consideráveis. As pessoas estão com medo. Mas isso não altera o facto de que, fundamentalmente, Navalny se tornou num mártir, num farol de esperança para o futuro da Rússia. E as pessoas estão só à espera do momento certo. Putin não vai durar para sempre; Navalny sim.

Também escreveu bastante sobre a rebelião de Yevgeny Prigozhin e a sua morte. Acha que é um caso que demonstra que Putin está a perder o controlo no interior do Kremlin? Ou, pelo contrário, reforçou-o?
O motim de Prigozhin foi uma grande lição para Putin. É difícil ter a certeza em que se baseia o controlo de Putin, mas suspeito que seja no medo. Ou seja, [o Kremlin] é uma caixa de ressonância onde toda a gente tem medo de toda a gente e até Putin tem medo do seu próprio círculo. É uma bolha onde cada um diz o que acha que o outro quer ouvir — e quando digo “o outro”, quero dizer “Putin”. Ele neste momento está paranoico e assustado até com o seu próprio círculo.
Quando o motim de Prigozhin aconteceu, estávamos numa fase em que Putin tinha desaparecido, estava a delegar decisões noutros. Aquilo que ele aprendeu com isto é que tinha de manter pelo menos uma aparência de controlo, porque a perceção é muito importante. Portanto, em primeiro lugar, Prigozhin tinha de morrer. E, em segundo, Putin passou a ter uma presença pública muito mais robusta. É claro que uma parte disso é pelo facto de estarmos em campanha eleitoral, mas acho que é também uma lição aprendida com o motim. E, mais especificamente, o Kremlin passou a tentar controlar as milícias privadas. Até aqui apoiava-se nas empresas militares privadas como [a Wagner de] Prigozhin para levar a cabo a sua guerra e ganhar projeção por todo o mundo, mas agora percebeu que é um erro deixá-las à solta e está a tentar centralizá-las e integrá-las no comando [militar] russo.

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O motim de Yevgeny Prigozhin foi um alerta para Putin

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Agora, em termos políticos, Putin está a controlar a situação? Vou ser honesta e dizer que não sei. Não é que ele não esteja forte o suficiente para controlar o poder atualmente, é óbvio que sim e que não vai a lado nenhum, pelo menos nos próximos meses. Mas não sei se ele sabe exatamente o que está a fazer e para onde quer ir, se tem uma estratégia de saída. Essa tem sido uma característica do putinismo: ele não tem uma visão de longo-prazo, nunca teve. Só que agora, com a guerra e o culminar de tudo isto, acho que ele já não tem sequer uma visão de futuro para si e para o país. Já nem sei se isso lhe importa sequer.

Mas o que é certo é que Putin está há mais de 20 anos no poder, os opositores estão mortos ou presos e até figuras de dentro do sistema como Prigozhin são afastadas. Que capacidade tem ele que outros antecessores como Boris Ieltsin não tinham?
Essa é uma questão muito interessante, no sentido em que as fraquezas de Putin são também as suas forças. O curioso em Putin é que ele não é um Estaline, não é um tipo de visionário ideológico com um forte sentido do que quer para a Rússia. Está há 24 anos a ziguezaguear, a adaptar-se ao que for preciso para se manter no topo. Mas, de certa forma, as suas fraquezas têm-se tornado mais e mais evidentes desde 2012. Não tem qualquer visão. Qual é a sua ideia para a Rússia? Quer construir o quê? Quer fazer o país avançar para onde? Creio que nem ele sabe. Isso foi uma força durante os seus primeiros dois mandatos presidenciais e até durante o período de regência de Medvedev, em que Putin oscilava entre a repressão e períodos de suavização. Hoje em dia, acho que está a tentar imitar o estalinismo sem o aplicar de facto. Joga com os medos da sociedade russa, emite ameaças, espalha a confusão e a discórdia, mas sem fazer todas as coisas que habitualmente se esperam de um ditador.

"Até na elite todos estão assustados. O porquê é muito simples: é difícil ir contra uma pessoa poderosa tão assustada como Putin está. As pessoas evitam agir contra tipos agressivos e assustados, porque a reação deles é imprevisível. Pode correr bem; ou pode correr mal e, dois meses depois, acabam como Prigozhin."

Creio que o problema para ele é que, mais cedo ou mais tarde, vamos começar a ver mais descontentamento nos setores da sociedade em que ele se apoia agora, os super-patriotas. Eram as críticas deles que Prigozhin estava a propagar, aquele discurso de “Faz-te um homem”, que tem apoio entre muitos super-patriotas e apoiantes da guerra. As falhas de Putin eram apontadas por Prigozhin, por Navalny, pelos nacionalistas, pela oposição liberal. E estão a começar a ser percecionadas dentro do seu círculo próximo também.

Diz que a sociedade russa está assustada. Acha que alguma vez haverá uma reação popular, de baixo para cima, contra Putin — como houve durante tantos anos a favor?
Não creio que qualquer mudança futura seja fruto de um movimento de protesto popular. É claro que pode haver algum pontualmente, mas, em termos históricos, na Rússia é necessário um consenso da elite, que tem de ter capacidade política e vontade para agir. Neste momento não vemos isso, porque até na elite todos estão assustados. O porquê é muito simples: é difícil ir contra uma pessoa poderosa, que está tão assustada como Putin está. As pessoas evitam agir contra tipos agressivos e assustados, porque a reação deles é imprevisível. Pode correr bem; ou pode correr mal e, dois meses depois, acabam como Prigozhin. Ninguém sabe e ninguém quer dar o primeiro passo. Pode haver uma mudança de fundo, sobretudo em relação à Ucrânia, com as coisas a correrem bem [à Rússia] e o Kremlin a decidir que é altura de acabar com a guerra nos seus termos e levantar o clima repressivo — e isso levar as pessoas a pensarem “É a nossa oportunidade”. É altamente improvável, contudo. Acho que o mais provável é haver algum tipo de derrota e isso servir de catalisador para possíveis protestos. Protestos em reação às eleições ou a uma política impopular do Kremlin… Mas não sabemos. Nunca sabemos como estas coisas se vão processar.

Nunca se adivinha qual será o gatilho para uma revolução.
Sim. Nunca é uma só coisa, tem de haver uma espécie de efeito dominó. E a História russa mostra-nos também que é um processo que ocorre sempre dentro da elite — sem ela, nada muda.

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