André Coelho Lima e Carlos Eduardo Reis, antigos homens fortes de Rui Rio e ambos deputados do PSD, não poupam críticas à forma como Luís Montenegro decidiu abster-se na votação da moção de censura ao Governo de António Costa. Apesar de terem respeitado a disciplina de voto da bancada social-democrata, os dois entregaram uma declaração por escrito onde não escondem a incompreensão com a orientação dada pela direção do partido.
No texto a que o Observador teve acesso, Coelho Lima e Carlos Eduardo Reis contestam em vários momentos a argumentação utilizada por Luís Montenegro e demais membros da direção do partido para justificar a abstenção do partido. “Vivemos tempos paradoxais. Que não toleram tibiezas na afirmação dos nossos princípios, que não são estes”, chegam a escrever.
A crítica à decisão de Montenegro é uma constante ao longo do documento. “Não vivemos em condições normais. A ausência de demarcação veemente daquilo a que os portugueses têm vindo a assistir é algo com que não conseguimos, por uma questão de princípio, pactuar de modo silente”, insistem.
André Coelho Lima, vice-presidente de Rui Rio foi recentemente escolhido para coordenar os deputados sociais-democratas na comissão de revisão constitucional. Carlos Eduardo Reis tornou-se uma peça importante no rioísmo, até ser diretor de campanha de Jorge Moreira da Silva nas últimas diretas do PSD e um crítico feroz de Montenegro. Na declaração de voto que entregaram, os dois concordam:
“Não censurar comportamentos desta natureza pode passar uma mensagem equívoca ao eleitorado (…) Somos frontalmente contra o populismo. Mas isso não significa não compreender o sentimento do eleitorado e há circunstâncias em que não é avisado não acompanhar o clamor social que existe.”
Mais à frente, Coelho Lima e Carlos Eduardo Reis voltam à carga: “O institucionalismo não nos pode fazer distanciar das pessoas”, dizem , já depois de terem deixado outro recado: “A não viabilização [da moção de censura] pode implicar uma ausência de demarcação que, face ao que temos assistido, tem que ser firme e indubitável”.
“O deslizar da peneira moral é, em si mesmo, motivo de preocupação. E manifestamente de censura. Sem hesitações (…) A política é exemplo, não pode deixar de ser exemplo. Pelo que é dificilmente compreensível que não seja censurável o mau exemplo (…) A alternativa afirma-se também na diferença. Não na demarcação forçada ou não assente em convicções. Não na demarcação tática e oportunista. Mas na demarcação natural, de políticas e de posturas. Haverá comportamento de que seja mais fácil uma clara demarcação política do que este?”, interrogam.
A irritação de Montenegro
Recorde-se que a posição da direção do partido foi recebida com algumas reservas entre alguns elementos grupo parlamentar social-democrata. A forma como Luís Montenegro e os vários dirigentes sociais-democratas foram justificando a resistência do partido em alinhar com a ideia de demissão de António Costa causou urticária em alguns setores do PSD.
Em particular, foi mal recebida junto de alguns antigos apoiantes de Rui Rio, que não se cansaram de lembrar, em surdina, as vezes em que o anterior líder foi acusado de ser frouxo sempre que insistia na necessidade de pôr os interesses do país à frente dos do partido.
A narrativa encontrada por Montenegro não foi muito diferente da de Rio noutros momentos. Foi isso, aliás, que foi sendo dito várias vezes publicamente: o “país real”, ao contrário da bolha “mediática e política”, não perceberia que se somasse uma crise política a uma crise social e económica — sendo que, em 2019, Rui Rio votou a favor de uma moção de censura a um minoritário António Costa, como recordam Coelho Lima e Carlos Eduardo Reis.
Mais recentemente, em entrevista à SIC, o líder social-democrata insurgiu-se com as notícias sobre as reservas da sua própria bancada em relação à orientação de voto dada pela direção do partido na moção de censura apresentada pela Iniciativa Liberal, disparando contra a comunicação social e contra as fontes anónimas que vão alimentando as conspirações internas.
“Do PSD, não vi nenhuma pronúncia de ninguém. Vi uma notícia do jornal Expresso que dizia que maioria da bancada estava contra decisão de Luís Montenegro. Fui ao grupo parlamentar, estive olhos nos olhos, aqueles que intervieram concordaram com a minha decisão e aqueles que não intervieram não a colocaram em causa. E um órgão de comunicação social disse ‘a maioria dos deputados está contra’. Com base em quê?!”, criticou Montenegro.
De facto, e segundo apurou o Observador na altura junto de fontes que estiveram na reunião da bancada onde foi anunciada abstenção, a intervenção de Luís Montenegro foi largamente aplaudida pelos deputados. Não existiram relatos de críticas abertas ao líder social-democrata pela posição assumida — o que não quer dizer que não havia alguns deputados a discordar da decisão, como agora se pode atestar.
Os argumentos de Montenegro para justificar a abstenção podem ser sintetizados em dois: a inconsequência do voto — o PS tem maioria absoluta; e a irresponsabilidade que seria atirar o país para eleições antecipadas um ano depois das últimas legislativas e num momento tão delicado para a vida coletiva do país.
Ora, Coelho Lima e Carlos Eduardo Reis discordam. “É objetivamente merecedora de censura a incompetência do Governo, e forma como repetidamente diz uma coisa e faz outra. É objetivamente merecedor de censura a forma como este Governo não se mostra capaz de gerir Portugal convenientemente, de nos conduzir no sentido do desenvolvimento e da melhoria das condições económicas. Tudo isto e muito mais é merecedor de censura“, começam por argumentar.
“Não desejamos instabilidade. Mas a verdade é que a maioria absoluta em que assenta o Governo liberta, precisamente, os partidos de oposição para poderem votar mais de acordo com a sua convicção sem ter que olhar para a que crê ser a sua responsabilidade institucional. (…) Não se percebe por que se funda a abstenção no argumento de se não querer contribuir para a instabilidade política. Não se vislumbra o sentido da argumentação institucional ou de respeito pelo estabilidade dos mandatos.”
“O deferimento moral e consequentemente político do Governo deve merecer censura. E considerámos que os momentos de censura são os que a justificam; e esses não se criam artificialmente: ou existe ou não existem. E agora existem, manifestamente”, rematam.
Dois percursos diferentes no pós-Rio
Apesar de serem ambos antigos homens de Rio, os dois, apesar de próximos e geralmente alinhados, têm mantido atitudes diferentes desde a derrota de janeiro de 2022. André Coelho Lima, que era vice do PSD, decidiu afastar-se dos holofotes mediáticos, mantendo-se como deputado discreto.
Recentemente, no entanto, tem vindo a merecer paulatinamente mais destaque — foi envolvido no processo de revisão da Constituição e mais tarde recuperado pela cúpula de Luís Montenegro para coordenar os deputados do partido no processo de revisão constitucional.
Carlos Eduardo Reis, por sua vez, bateu-se de frente contra a máquina eleitoral de Montenegro durante as últimas diretas, tendo sido diretor de campanha de Jorge Moreira da Silva. Em maio de 2020, deu uma entrevista ao Observador particularmente dura e que inflamou os ânimos do outro lado. A frase que titulou essa entrevista sintetizava bem o grau de animosidade: “A sabotagem de Montenegro não ajudou o partido e não está preparado para governar”.
Daí para cá, Carlos Eduardo Reis, que fora muito importante para a sobrevivência de Rui Rio no Conselho Nacional (2019) em que as tropas de Montenegro tentaram derrubar o líder em funções, consolidando seu estatuto de figura influente no aparelho social-democrata nas diretas contra Montenegro e Paulo Rangel, tem-se mantido relativamente discreto. Até agora.
Como o montenegrismo está a recuperar o rioísmo
André Coelho Lima não é o único elemento próximo de Rui Rio que tem vindo a merecer a aposta de Luís Montenegro. Antes dele, aliás, Joaquim Miranda Sarmento, o homem das Finanças do antigo líder social-democrata, integrou desde o primeiro momento a equipa montenegrista — foi escolhido para desenhar a moção estratégica nas diretas com Moreira da Silva e seria escolhido como líder parlamentar do partido.
Mais recentemente, José Silvano, secretário-geral de Rui Rio e um dos confidentes do antigo líder social-democrata durante grande parte do seu reinado, foi escolhido para substituir Joaquim Pinto Moreira na presidência da Comissão da Revisão Constitucional.
“O presidente do PSD e o presidente do grupo parlamentar entenderam fazer-me o convite, dizendo que era a melhor solução. Nunca recusei trabalho a favor do partido e de Portugal“, justificou o próprio em declarações ao Observador.
A esse propósito, esta quinta-feira, em entrevista ao Público e à Renascença, Hugo Soares, secretário-geral do partido, recusou a ideia de que a atual direção estivesse a recuperar quem quer que fosse, desdobrou-se em elogios a Silvano e garantiu que o partido conta com todos.
“No PSD não recuperamos ninguém, contamos com todos de forma igual. Não fazemos perseguição nenhuma, bem pelo contrário. Queremos um partido cada vez mais coeso, a contar com todos. José Silvano foi secretário-geral do partido, portanto exerceu funções relevantes dentro do PSD. É um ilustre advogado e tem todas as condições”, disse.
Mas além de Coelho Lima e José Silvano, há várias apostas que foram sendo renovadas no grupo parlamentar do PSD. Ricardo Batista Leite, que saltou para a primeira linha do combate político pela mão de Rio e que se tornou um dos grandes rostos do partido durante o período mais agudo da pandemia, é agora o primeiro vice-presidente da bancada social-democrata.
Hugo Carneiro, que apareceu no plano nacional com Rio, que ascendeu a secretário-geral adjunto do PSD e que tinha em mãos a sensível tarefa de controlar as contas do partido, o que muitas críticas internas lhe valeu, também é um dos vices da bancada.
O mesmo vale para Catarina Rocha Ferreira: fez parte do Conselho Estratégico Nacional do PSD, pertenceu à equipa de Adão Silva, quando este dirigia a bancada, foi repescada por Paulo Mota Pinto durante um curto período de tempo e continuou com Miranda Sarmento.
Paulo Rios de Oliveira está com Rui Rio desde 2018 e ganhou mais protagonismo nestas últimas legislativas — foi terceiro na lista de candidatos a deputados, logo atrás de Sofia Matos, cabeça de lista nessas eleições, e do próprio Rio.
A mesma Sofia Matos, que chegou a ser candidata à liderança da JSD com a bênção do rioísmo contra Alexandre Poço, que, nas disputas internas, esteve sempre na trincheira oposta à Rio, é agora coordenadora do grupo parlamentar social-democrata na Comissão de Administração Pública, Ordenamento do Território e Poder Local.
Paulo Ramalho, vereador na Maia e com influência na estrutura do PSD/Porto, era um grande apoiante de Rui Rio — esteve com ele nas diretas de 2019, em que o principal adversário era, precisamente, Luís Montenegro. Nas últimas diretas, chegou a ser apontado como possível trunfo de Moreira da Silva no Grande Porto. Agora, é coordenador do grupo parlamentar na Comissão Agricultura e Pescas.
Num plano diferente, Miguel Poiares de Maduro também tem feito um caminho de aproximação ao montenegrismo. O ex-ministro fez parte do Conselho Consultivo do Conselho Estratégico Nacional do PSD, uma espécie de grupo de sábios onde estava também Pacheco Pereira, por exemplo.
Depois, foi fazendo um período de descolagem e chegou mesmo a coordenar as bases do programa eleitoral que Paulo Rangel ia apresentar caso vencesse as diretas contra Rio. Nas últimas diretas, esteve com Moreira da Silva contra Montenegro. Finalmente, seria escolhido por Montenegro para coordenar o projeto de revisão constitucional do PSD.
Montenegro à procura de recuperar o brilho e o estado de graça