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Apanha pérolas há 70 anos, tem prémios de culturismo e também se deita em cima de vidro: Saad, o amigo de Beckham que é património do Qatar

Tem 87 anos, parece frágil, mantém a força para deixar um braço a latejar. Saad Ismail Jassim é a figura mais antiga de uma atividade que o petróleo e o gás secundarizaram entre uma vida de surpresas.

Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Em cada ocasião, em cada pormenor ou em cada decisão, há sempre qualquer coisa de artificial entre toda a realidade de quem visita os principais pontos de Doha por esta altura de Campeonato do Mundo. Não, não se trata de uma qualquer campanha bem engendrada e elaborada como se de um filme se tratasse. Se no Qatar o dinheiro é tudo menos um problema, a maior riqueza do país continua a ser a capacidade de diplomacia, que foi permitindo, sobretudo nas duas últimas décadas, uma maior abertura ao Ocidente. No entanto, e por mais ecossistemas datados no tempo que possam ser criados, como tem acontecido agora nos poucos raios de quilómetros quadrados onde tudo se concentra para o Mundial de futebol, há ainda pontos e fenómenos que dificilmente poderiam ser mais genuínos. Souq Waqif, o maior mercado tradicional ao ar livre, é um deles.

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Pode haver espaços de fãs enormes que têm até esse aliciante de venderem álcool, podem existir já festas que vão sendo criadas por quem tem mais olho e já fez de Doha a sua casa, no velho e habitual costume de receber amigos para um jantar com cerveja, vinho e uns cheirinhos de digestivos, mas não há nada que, da forma mais espontânea possível, substitua este melting pot criado entre os velhos e tradicionais costumes locais. Aliás, as romarias diárias ao local podem ser de tal forma grandes que seguranças e voluntários ficam quase obrigados a criar caminhos de circulação, como se fosse uma gincana com carros a dois pés sem piscas que podem gerar maior tráfego quando se vê algo interessante na montra. À noite, por exemplo, está sempre muita gente. A seguir a um jogo da Argentina, ainda mais. Após um jogo de Marrocos, para esquecer.

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De manhã, é diferente. As pessoas, o interesse e, neste caso, as mãos com sacadas de compras são mais do que muitas na mesma, com as mesmas camisolas de seleções de sempre, mas é como se todos aqueles pequenos estabelecimentos com umas ruas ziguezagueantes pelo meio, que têm sempre uma linha de ordem no meio dos traços de caos, recuassem dois metros quando ninguém vê pela calada da noite para aparentar ser bem mais espaçoso do que na verdade é. O Shay Al-Shmous de Shams Al-Qassabi, umas ruas um pouco mais afastadas do coração, tem outra vez a esplanada cheia (e ainda nos reconhecem quando lá vamos, neste caso não o prometido pequeno-almoço, mas para ver frascos de especiarias na loja adjacente ao restaurante). Há mais, quase num formato de brunch local, não pelo que vem para as mesas mas pela quantidade de pratos da primeira refeição do dia. No entanto, a ementa ainda tem como prato principal a ida às compras.

É por estes caminhos que, quase perdido no meio de tudo o resto, encontramos o The Old Pearl Diver de Saad Ismail Al Jassim. Pequenino, discreto, a pedir uma segunda confirmação de que o Google Maps não teve uma paragem, porque perguntar por informações é meio caminho andado para, dez segundos depois, estarmos a regatear preços por algo que nem temos assim tanto interesse em levar. Um primeiro pé na loja após puxar a porta de madeira mais pesada do que aparenta, um espaço ainda mais pequeno do que o pequenino que nos parecia na primeira imagem. Com seis a oito pessoas além do dono e dos funcionários, está praticamente cheio. Com seis a oito pessoas de mochila às costas, está mais do que a abarrotar. São centenas de colares, fios e pulseiras com o denominador comum de todos terem pérolas. E várias fotos do dono, quase todas antigas, que mostram um jovem com 20, 30, 40 anos. Na parede em frente, atrás do balcão, junto da mesa de atendimento e um pouco na ideia de todos está Saad Ismail Jassim – muda só a idade.

Souq Waqif é o mercado tradicional mais conhecido de Doha onde se situa o The Old Pearl Diver

A rotina de apanhar pérolas, os dois minutos debaixo de água e um Pahlwan a mostrar força

Quando conseguimos ser uma das seis a oito pessoas a entrar na pequena loja (é uma sorte nem toda a gente ter mochila às costas), a lenda vida do património cultural do Qatar está sentado atrás de uma mesa a mexer num colar, antes de levantar-se para responder a uma dúvida sobre preços – a que, na verdade, não responde, mas passa para o companheiro ao lado. Só mesmo quando olha em frente e vê a atenção com que estamos a olhar para um cartaz de louvor da Air Force Friend Association começa a fazer “marcação”. Não olha sempre, até porque, quando se senta, fica a um nível mais baixo, pelo canto do olho está a controlar os movimentos da mesma forma como estamos a controlar o que vai fazendo. Era uma questão de quebrar o gelo numa manhã em que o sol queima. Afinal, jornalistas é algo a que por estes dias já começa a ficar habituado.

– Olá. Chamo-me Bruno, sou jornalista de Portugal. Podemos falar dois minutos?
– Até lhe dou três minutos… O que quer saber?
– A sua história…
– Tem tempo para isso?
– Sim, tenho uma manhã inteira…
– Sente-se aqui então…
– Não há problema pelas pessoas que vêm aqui?
– No problem, no problem…

A receção é divertida mas não muito calorosa, com o tempo percebemos que não é defeito mas sim feitio. Aos 87 anos, Saad simboliza a nobre arte da apanhar pérolas (bem mais complexa do que parece) que foi sempre nobre no Qatar, mas que por estes dias começa a ser uma raridade em desuso, com o advento do gás e do petróleo que mudou aquilo que era a génese da população e da vida local. Mas Saad é mais do que isso, bastando apenas olhar à volta para perceber a imagem que tem na parede principal da loja dos tempos em que ganhava prémios de culturismo e recortes escondidos que até podiam passar despercebidos, de quando se deitava sobre vidro ou via outros partirem pedras na sua barriga. Aqui há um pouco de tudo.

“Eu mergulho ainda a qualquer hora, a qualquer dia. Desde os 18 anos que faço isso, agora estou com 87. Pode ser hoje, pode ser amanhã, pode ser quando quiser. A que horas é que vou? Essa é fácil, tenho de ir sempre de manhã a partir do momento em que apareça luz, à noite não conseguimos ver… Repare, não há bem uma hora fixa, é ir de manhã e voltar depois à tarde”, começa por contar. Mas ainda se apanha um número grande de pérolas? “O mais importante é apanhar o máximo de ostras possível. Podes apanhar mil ostras e depois dizeres que conseguiste uma coleta à volta de um quilo de pérolas”, explica.

Saad Ismail Jassim ganhou um concurso de culturismo em 1958 patrocinado pela Shell Company of Qatar. Era também nessa altura que se deitava em camas de vidro e partia pedras na sua barriga. "Ainda hoje consigo fazer tudo isso", assegura.

A conversa vai andando e Saad diz pela primeira vez a frase “Pergunta o que quiseres, eu sou um livro aberto. Se queres a minha história, eu dou-te a minha história”. Há uma coisa de que não gosta: se estamos a falar de apanhar pérolas, a pergunta seguinte não pode ser se ainda vai em dhows, os barcos tradicionais dessas atividades, que são uma das imagens de marca do país (embora onde antes estavam dhows estejam agora iates de luxo, onde alguns VIP e VVIP até festas dão). “Eu conto, mas tem de ser de A a Z, se não perguntares as coisas certas podes perder capítulos”, avisa, enquanto vai contando essa atividade que em si se poderia até resumir a mergulhar, apanhar a ostra, abrir e ver se tinha pérolas, mas que é bem mais complexa do que isso.

– Há aqui muita gente que fala de si como um exemplo e um símbolo do Qatar, como vê isso?
– Vejo apenas que sou um homem, mergulhador. A única diferença era que antigamente apanhava pérolas para vender e poder comer, agora apanho e muitas fico com elas porque são de água fresca…
– Só apanha ou apanha e trabalha depois as pérolas?
– Apanho e trabalho, faço as linhas. Linhas é o que está aí atrás. Se quiseres um colar, eu consigo fazer. Se quiseres um pulseira, eu consigo fazer. Desenhas no papel como queres, eu consigo fazer. Mas não são todas do mesmo tamanho, há das grandes às que têm apenas 13 milímetros…

Quando nasceu, o Qatar não existia. Quando nasceu, todo aquele território onde agora estamos era um protetorado britânico. Quando nasceu, viviam em todo o país apenas 10.000 pessoas. Quando nasceu, tinha apenas um de três caminhos para seguir: ser um pequeno comerciante, fazer carreira na pecuária ou vestir a pele de apanhador de pérolas. Quando tinha apenas 15 anos, Saad Ismail Jassim fez as primeiras viagens com os mais velhos que iam para o mar à procura de pérolas entre toda a incerteza que é abrir e não haver nada. Aos 18, passou a ser ele o homem que fazia, mas apenas no verão porque o inverno engana e a água, nessa altura, pode ficar demasiado fria para quem faz mergulhos a 13 metros de profundidade e tem a bitola de permanecer dois minutos lá em baixo até voltar à superfície naquelas águas do Golfo Pérsico. Ao todo poderiam ser até quatro meses no mar, com segredos de alimentação e o pedido da estrelinha da sorte.

– Ainda continua a fazer trabalho físico do corpo como fazia?
– Ainda estou em forma… O que queres que faça, eu faço. Deitar-me em cima de vidros, partir pedras com a minha barriga, estou ainda em forma. Eu sou um Pahlwan, um bodybuilder… Queres ver?

Saad Ismail Jassim ganhou o primeiro prémio de um concurso de culturismo em 1958 patrocinado pela Shell Company of Qatar

A mão direita não dava, tinha de ser a mão esquerda para colocar a parte do braço debaixo do seu braço direito (provavelmente por uma questão prática de estar sentado mais desse lado). “Sentes?”, começa por perguntar. “Não”, é a primeira resposta. “E agora?”, insiste. “Também não”, ouve de novo. Tinha de ser um bocado mais a sério para conseguir fazer o seu statement e lá consegue, tanto que é preciso dizer que já estamos a sentir a sua força para que esboce um sorriso mais rasgado durante toda a conversa. E sim, foi mesmo a sério: 20 minutos depois, a caminho da estação de metro de Souq Waqif, que vai obrigar a mais voltas ainda do que é normal para entrar, pela forma como as barreiras estão colocadas, aquele braço não tinha propriamente dor, mas ainda sentia aquela impressão de quem foi apertado por alguma coisa.

O amigo David Beckham, Luís Figo e como o petróleo e o gás mudaram o Qatar

“Já não existem muitas pessoas a apanhar pérolas, são as pessoas que fazem mergulho e outras mas que fazem isso para depois ficarem muitas vezes com as pérolas para si. Não sei quantas pessoas ainda fazem isso, mas ainda há algumas. Onde? Dez milhas, 30, 40, 50, depende… Se apanho mais coisas? Eu vou pelas ostras, no mar há muitas, muitas ostras. Aquilo que nunca sabemos é quantas pérolas vamos conseguir apanhar”, explica no final de uma conversa que teria ainda um take II quando um turista americano está na loja mas fica sobretudo fascinado com as imagens que vê do tempo em que Saad era um culturista.

– Isto que vou mostrar não perguntaste, como se apanham as pérolas…
– Mas isso já tinha visto quando estive a ler coisas e a ver vídeos onde você explicava onde era…
– Mesmo assim, ouve e percebe como se faz…

"Agora com petróleo e gás há muito dinheiro ganho. O país mudou e mudou de forma muito rápida. É assim, todos os países mudam, mas eu continuo a ser o mesmo e poderia ir apanhar pérolas em qualquer sítio."

“Esta pedra é a primeira parte, é aquilo que nos leva para baixo para podermos chegar à zona onde estão as pérolas. Esta rede é a segunda parte, é com isto que nós conseguimos apanhar e guardar as ostras. Esta mola [nd.r. chama-lhe clip] é a terceira parte, muito importante. Quando coloco isto no nariz consigo estar dois minutos debaixo de água sem respirar. Antigamente estávamos três a quatro meses no mar, nos barcos”, explica quase com a mesma precisão com que falara a David Beckham num dos documentários que o antigo internacional inglês gravou no Qatar antes do Mundial. “É meu amigo”, diz, enquanto mostra a sua página do Instagram onde tem algumas imagens mais antigas e mais uma fotografia deste ano com… Luís Figo.

No entanto, é percetível que já não fala com o mesmo entusiasmo quando o assunto projeta o futuro, tendo em conta as alterações que a descoberta de gás e petróleo no Qatar provocou com o passar dos anos e que teve impacto naquilo que considera ser uma arte como a coleta de pérolas. Quando está a explicar o que comia ao longo do dia para aguentar o trabalho, das tâmaras com café de manhã ao peixe com arroz feito com calda de tâmara para dar mais energia e tirar a sede, é um; quando fala na forma como as gerações que se seguiram olham para aquilo que sempre gostou de fazer, torna-se outro. “Agora com petróleo e gás há muito dinheiro ganho. O país mudou e mudou de forma muito rápida. É assim, todos os países mudam, mas eu continuo a ser o mesmo e poderia ir apanhar pérolas em qualquer sítio”, assegura.

David Beckham fez um documentário sobre uma figura que é considerada quase património cultural do Qatar

Saad preferia os tempos em que ganhou o título de Pahlwan que se orgulha de colocar como se fosse quase um primeiro nome, como aconteceu no final da década de 50 com uma distinção feita num concurso da Shell Company of Qatar. E também preferia os tempos em que tinha muitas pessoas a ver as proezas de deitar-se em vidro ou partir pedras na barriga. Não, não são apenas histórias, porque tudo isso vai passando no ecrã de uma pequena televisão que tem na loja. Até o mundo das pérolas mudou, sobretudo com o advento de uma inovação japonesa que conseguia estimular as outras para segregarem pérolas. “Hoje não há pérolas naturais como no meu tempo”, conta. Mesmo sendo um recuo aos tempos em que tinha de trabalhar para comer, era aí que se sentia mais confortável. E é isso que o mantém como “património” do Qatar.

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