As paredes dos museus de Benfica e Sporting seguram fotografias com nomes comuns a ambos os emblemas, nomes cuja glória pessoal misturou as cores dos dois clubes. Quando Jorge Jesus recrutou João Mário para os encarnados, o médio passava a estar em condições de ser mais um a poder pintar conquistas em tons de verde e vermelho. O Benfica apostava em vencer o título e o médio encontrava o treinador com quem tinha mostrado mais rendimento quando trabalharam juntos no Sporting. A mudança para o rival causou dissabores, não só devido aos problemas causados pela cláusula anti-rivais do contrato, mas porque acontecia na ressaca da festa do título em que João Mário foi uma peça preponderante nos leões (34 jogos, dois golos, duas assistências e uma presença sólida no meio-campo ao lado de João Palhinha).

“Assumimos as nossas escolhas e os outros as escolhas deles. Essa conversa de que o João Mário saiu do Sporting e o Sporting está arrependido… Não estou arrependido de nada e o Sporting também não”, comentou o treinador dos leões, Rúben Amorim. “O Sporting perdeu o Balakov, perdeu o Figo, perdeu o Bruno Fernandes. Esta equipa vale pelo todo. Os jogadores vão para onde querem e cada um faz as suas escolhas. A única coisa que posso dizer é que o João Mário foi um excelente profissional enquanto aqui esteve. O Sporting desde o primeiro minuto disse que queria ficar com o João Mário”, acrescentou o técnico descartando remorsos pela perda do jogador.

Apesar de tudo, João Mário estava no Sporting por empréstimo. O internacional português tinha contrato com o Inter de Milão. “As sensações são ótimas. Sempre quis voltar onde me sinto bem, onde quero voltar a ser feliz e para mim é uma grande honra voltar a esta casa, que conheço bem. Sou mais um para ajudar. Quero voltar a ser feliz. Aqui fui feliz e sinto-me bem”, foram as palavras que disse na apresentação e que não faziam antecipar a mudança para o Benfica. A primeira temporada nos encarnados fez os adeptos sportinguistas pensarem que não tinham perdido nada que um Matheus Nunes em ascensão não fosse capaz de compensar. Mas Jesus saiu e João Mário passou a prestar devoção a Roger Schmidt. Tudo mudou aí.

O sucesso de João Mário esta temporada, sob o comando do treinador alemão, tocou nos pontos sensíveis da relação entre os dois clubes. As visitas ao Estádio de Alvalade, que já não eram simpáticas para o jogador, mostraram que nem a vestir o vermelho da seleção está protegido. Com o título conquistado ao serviço do Benfica, João Mário tornou-se assim no nome mais recente a figurar num Hall of Fame específico, propriedade daqueles que conseguiram ser campeões por Sporting e Benfica.

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Toda a equipa do Benfica subiu de rendimento face ao que tinha mostrado na época anterior. O treinador mudou, o sistema de jogo mudou, as dinâmicas mudaram. Pelo contrário, enquanto Jorge Jesus foi o treinador das águias, o técnico manteve João Mário no papel de médio centro do 3x4x3 dos encarnados, posição onde se tinha destacado no ano em que conquistou o título de campeão Sporting. Parecia uma aposta sem risco.

“Toda a gente conhece o passado do João Mário, não só no rival, o Sporting, mas também fora do Sporting”, destacou Jorge Jesus quando o médio chegou ao Benfica. “Foi um jogador que custou 45 milhões ao Inter de Milão. Tem que ter qualidade para custar o preço que custou. É um jogador que está habituado a ser campeão. Teve a influência que teve no nosso rival. Conheço-o muito bem, porque trabalhou comigo. Achámos que ele era o jogador ideal para fazer aquela função e não só aquela, pode fazer várias funções no sistema tático da equipa. Entrou como uma luva no Benfica e adaptou-se bem. É um jogador que, para além da qualidade técnico-tática, é uma pessoa bem estruturada mentalmente. As coisa têm sido fáceis para ele. Há o fator de já o conhecer e saber quais são as melhores qualidades dele e aquilo que podemos retirar”.

No início de 2021/22, a jogar ao lado de Julian Weigl, as exibições foram positivas, mas o avançar da época fez de João Mário uma figura prescindível, sobretudo quando Nélson Veríssimo, interinamente, se instalou no comando técnico da equipa da Luz após a saída de Jesus.

O que Roger Schmidt fez esta época revela tanto de estudo como de boa memória. João Mário fez a melhor época da carreira em termos de números a atuar mais sobre o corredor. Em 2015/16, tinha realizado 45 jogos, sete golos e 10 assistências. Nessa temporada, o treinador e o médio defrontaram-se na Liga Europa quando o alemão ainda orientava o Bayer Leverkusen. Quando o técnico chegou ao Benfica, recordou-se de como o internacional português lhe tinha causado problemas e colocou-o a jogar como falso extremo. Se dúvidas existissem de que o jogo de Schmidt em Alvalade tinha servido para dar início à apreciação de João Mário, já como treinador do Benfica, o técnico confirmou que sim. “O João Mário é um jogador completo, é um desportista perfeito que tem uma excelente atitude. Está sempre motivado, é muito profissional. Faz os jogadores à sua volta serem melhores. Ele não perde a bola, toma as decisões certas”, acrescentou.

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O técnico revolucionou o futebol do Benfica assim que chegou a Lisboa. Roger Schmidt é amigo da bola e juntou à volta da fogueira do Inferno da Luz jogadores que partilham o mesmo interesse. João Mário é um dos solidários com a causa da preservação da espécie esférico. O alemão colocou João Mário a atuar numa zona híbrida, sempre entre as linhas defensivas do adversário e, por vezes, nas costas do avançado. O treinador afirma que o seu pupilo não é um extremo nem um médio ofensivo, mas sim um “meio 10”, um jogador que se alimenta do que acontece entre o ser e o parecer. “O João Mário é um jogador-chave para nós. É um jogador com liderança. É o segundo capitão. Até agora, está a fazer uma época fantástica, não apenas porque marcou muitos golos e fez muitas assistências. Na minha opinião, é muito fiável taticamente, com e sem bola”, elogiou Roger Schmidt antes da eliminatória da Liga dos Campeões com o Inter.

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“Durante um estágio da seleção, um jogador do Sporting falou comigo a dar-me conta do interesse [do Sporting] e as coisas fizeram-se. Eu e o Eurico [Gomes] fomos para o Sporting, o Benfica vingou-se na mesma moeda, com Botelho e Laranjeira”, contou António Fidalgo numa entrevista ao Observador em 2017. Longe da altura em que os agentes se tornaram figuras de proa na transação de jogadores, o verde e o encarnado já se misturavam. António Fidalgo esteve nos dois clubes, mas apenas se tornou campeão nacional pelos leões. Apesar de fazer parte do Benfica campeão nacional em 1975/1976, sob o comando de Mário Wilson, viu-se remetido ao papel de suplente de Manuel Bento e José Henrique.

O antigo guarda-redes admite que a rivalidade era limitada pelas linhas do campo. Fora disso, os jogadores de Benfica e Sporting tinham uma relação que não era afetada pelos emblemas que representavam. “O ambiente era fraterno entre todos nós, mesmo nos tais encontros fortuitos nos cafés da Praça do Chile. E é disso que tenho mais saudades. Dessa camaradagem imensa. Só havia uns atritos antes do dérbi”, contou António Fidalgo na mesma ocasião.

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Eurico Gomes e Laranjeira, dois dos nomes envolvidos nas trocas que marcaram a época 1979/80, esses sim tiveram papel de relevo em ambos os clubes. Aliás, no caso do primeiro, trata-se do único jogador a sagra-se campeão por Benfica (1975/76, 1976/77), Sporting (1979/80, 1981/82) e FC Porto (1984/85, 1985/86). O segundo, quando deixou o clube onde jogou até aos 27 anos, conquistando o título de campeão nacional em 1973/74, mudou-se para o Benfica onde fez o mesmo na temporada 1980/81.

Colegas de balneário de Eurico Gomes no Sporting foram Rui Jordão e Artur Correia. Ao contrário do central, o palmarés dos dois só se ficou pelos título conquistados no Sporting e no Benfica, ainda que o lote daqueles que o conseguiram fazer seja restrito. Jordão, que veio para Portugal rotulado como o novo Eusébio, começou por representar o Benfica e, logo aí, foi duas vezes bicampeão (1971/72, 1972/73, 1974/75 e 1975/76). Em cinco temporadas nos encarnados, apenas por uma vez não terminou no primeiro lugar. Seguiu-se uma temporada em Espanha antes de rumar ao Sporting, onde, apesar dos muitos golos marcados (184 em 280 jogos), não teve o mesmo sucesso ao nível dos troféus (1979/80 e 1981/82). Artur Correia terminou a carreira aos 30 anos devido a problemas com lesões, mas nem por isso deixou de ser seis vezes campeão nacional (1971/72, 1972/73, 1974/75, 1975/76, 1976/77 e 1979/80), cinco pelo Benfica, uma pelo Sporting.

No entanto, o primeiro a ser campeão pelos dois rivais foi José Pérides que em 1964/65 juntou o título conquistado ao serviço dos encarnados aos que tinha vencido com os leões em 1957/58 e em 1961/62. Um médio escondido no protagonismo de Eusébio que, nessa temporada em que as águias saíram por cima no campeonato, marcou 28 golos na temporada.

Sensivelmente na mesma altura, Barroca iniciava aquela que não foi a mais brilhante das carreiras. Em quatro épocas de Benfica, realizou apenas 14 jogos. Apesar da falta de protagonismos, participou nos títulos de 1959/60 e 1960/61, não tendo somado minutos na conquista de 1962/63. O número de jogos não aumentou quando se mudou para o Sporting. Em sete épocas, fez apenas 22 jogos, os suficientes para contribuir no título dos leões de 1965/66.

Nos anos mais recentes, João Vieira Pinto tornou-se em mais um elemento a juntar à lista. Depois de quase se ter mudado para Alvalade no verão quente de 1993 o jogador acabou a fazer um hat-trick no 6-3 contra o Sporting que viria a dar o título às águias. No entanto, a mudança concretizou-se mesmo em 2000. “Já tinha percebido que o presidente me queria ver pelas costas, deixando claro que isso podia acontecer a qualquer momento. Por outro lado, não achava possível que avançasse sem me ouvir primeiro. Há diferenças entre uma intenção e a falta de respeito de quase me porem a mala à porta. Isso não esperava, até porque não o merecia, em função do que dei ao clube. Orgulho-me do meu passado e do que fiz ao serviço de todos os clubes da minha carreira e em nenhum deles fiz algo que justificasse um tratamento daquele tipo”, disse o jogador numa entrevista ao Record em 2011. “No Sporting reconquistei a alegria de jogar à bola e o respeito de todo um clube, algo que no Benfica perdi gradualmente em dois anos e meio”. No meio dessa felicidade, o Menino de Ouro conquistou a liga em 2001/02 pelos leões.

Tratava-se do último campeonato vencido pelos leões antes do triunfo de 2020/21, onde, além de João Mário, estava também João Pereira. Sob o comando de Rúben Amorim, o lateral direito, na terceira passagem pelo clube, voltou a festejar depois de em 2004/05 0 ter feito ao serviço do Benfica. Aliás, o próprio Rúben Amorim foi campeão pelos dois clubes, embora pelos verdes e brancos só o tenha feito enquanto treinador. Após o título, João Pereira terminou a carreira. Era o último na lista de jogadores que tinham sido campeões por Benfica e Sporting… até aparecer João Mário.