O discurso de André Ventura na rentrée

O que disse e o que queria dizer André Ventura no primeiro discurso da nova temporada política

Anotações

“Tivemos uma semana muito particular, em que tivemos mais uma vez António Costa a ser António Costa. Tivemos o primeiro-ministro a revelar-se tal como é: a falar “dos cobardes dos médicos” com aquele ar violento dele (…) Temos um primeiro-ministro que não sabe ser primeiro-ministro, que a todos os que lhe opõem responde mal, responde com agressividade e mostra aquilo que é. António Costa perdeu o controlo do país e do governo, porque sabe que a crise que vamos enfrentar vai ser das mais duras, talvez a crise das nossas vidas.”

Foi André Ventura que impulsionou o que viria a ser o caso da semana e foi por aí que André Ventura arrancou o discurso da rentrée do Chega, no Algarve. Quando, este sábado, um vídeo de António Costa a falar com jornalistas no final de uma entrevista, off the record, foi divulgado nas redes sociais, o Chega foi o primeiro partido a fazer aquilo a que se chama aproveitamento político da situação. Apressou-se a pôr um vídeo no youtube com as palavras ditas pelo primeiro-ministro e a fazer o vídeo circular. Depois do Chega veio o CDS. Fazendo questão de repetir a frase “dos cobardes dos médicos” (António Costa referia-se aos médicos que se terão recusado a entrar no lar de Reguengos de Monsaraz onde um surto de Covid-19 mataria 18 pessoas), André Ventura procura aqui atacar Costa dizendo que a sua “irascibilidade” revela que “perdeu o controlo do país” numa altura de crise em que tanto controlo é preciso. Ventura recorda o episódio do Terreiro do Paço, no último dia de campanha eleitoral, em que António Costa se exaltou com um popular, e recorda o episódio da última reunião com os epidemiologistas na sede do Infarmed em que o primeiro-ministro, segundo relatou a revista Visão, se exaltou com a ministra da Saúde e com os próprios especialistas técnicos. Tudo para atacar António Costa, deixando claro que é ele que é o seu adversário mais direto.

“Ía aparecer o Chicão, assim muito direito, a dizer que ‘nós não somos essa direita, nós somos uma outra direita’, que ninguém sabe qual é mas é outra. Uma direita conservadora, de cabelo bem arranjado, sapatinho de vela, bela gravata, e todos juntos fazemos uns belos 0,6% em Portugal rumo ao grande renascimento da direita. Não devemos falar do que quase não existe, mas sempre que o Chega faz qualquer coisa o CDS aparece. (…) Manifestações não é para nós, nós estamos aqui no clube, fazemos uns posts, vamos cortar cabelo a Braga, isso é que é o CDS.”

Depois de atacar o primeiro-ministro, Ventura vai ao CDS, o seu adversário real. E fá-lo num tom depreciativo e de rebaixamento para vincar as diferenças que acredita haver nos dois partidos: um é o partido da direita dos salões, dos “clubes”, do conservadorismo e da aparência (“cabelo bem arranjado, bela gravata, sapato de vela”), o outro (o Chega) é o partido do povo, da rua. E Ventura quer deixar claro que é da direita da rua que os portugueses gostam mais. Para rebaixar o CDS ataca pessoalmente a figura do presidente do partido, Francisco Rodrigues dos Santos, e com isto deixa claro que parte da sua estratégia é apostar no desaparecimento do CDS. Diz que esta direita só vale 0,6% quando na verdade as sondagens apontam para 4% (e foi isso que o CDS teve nas últimas eleições), o que evidencia que é a esse eleitorado que o Chega quer falar e é esse eleitorado que precisa de conquistar.

“Temos uma mensagem muito clara para eles: somos tão falsos que já somos a 3ª força política em Portugal”.

É um truque fácil: cavalgar as sondagens, quando elas estão favoráveis, para se agigantar, o que tende a surtir o efeito desejado. Quando a imagem que passa é a de que o partido já é grande, então o partido tende a crescer ainda mais. Na verdade, o Chega é representado neste momento por apenas 1,29% dos eleitores, tendo sido a sétima (e penúltima) força mais votada nas últimas legislativas de outubro. As sondagens mais recentes, com a de agosto da Intercampus, dão ao Chega cerca de 7,9%, deixando-o ainda assim atrás do Bloco de Esquerda, com 8,5% das intenções de voto, o que faz com que não seja verdade que o Chega seja a terceira força política em Portugal. Ao mesmo tempo, Ventura tenta passar uma mensagem de vitimização contra os que, como “a revista Visão”, que referiu no discurso, dizem que muitos dos apoiantes do Chega são “perfis falsos” criados nas redes sociais, com o contraponto de que mesmo sendo perfis falsos continuam a subir nas sondagens.

“O Chega não se coligará com ninguém, com nenhum partido, com nenhuma força ou com nenhum sistema. Nunca nunca nos vergaremos ao sistema. Nunca, nunca, nunca. Oiçam as minhas palavras” (…) Se pensam que o Chega vai ser um partido muleta que vai sentar-se à mesa com o PSD para negociar o ministério disto ou daquilo em troca de apoio, desenganem-se. Não é isso que queremos nem isso que somos”

André Ventura já o tinha dito e voltou a repetir. Desta vez com uma espécie de recurso à Bíblia (Ventura evoca várias vezes a sua fé e devoção católica) para usar a “negação de Pedro”. E disse três vezes nunca num tom mais elevado: “Nunca, nunca, nunca”. Nunca se coligará com o PSD nem com qualquer outro partido do sistema, porque a estratégia de Ventura passa por se pôr de fora do sistema até conquistar o sistema. Mais à frente, no discurso, viria a dizer que nunca se contentará em ser a “segunda ou terceira” força política, só descansará quando for a primeira porque só assim conseguirá mudar o país. Daí recusar taxativamente a ideia de se juntar ao PSD num eventual bloco de direita. Porque isso seria ser igual aos outros e querer apenas ‘lugares’, diria também. É a resposta de Ventura à última entrevista de Rui Rio, em que o líder do PSD não fechou a porta a um eventual acordo com o Chega se o Chega fosse ao encontro das posições do PSD e “moderasse” o discurso. Ventura diz ‘read my lips’: Nunca.

“Vejam estas manifestações que fizeram à porta da SOS Racismo, tinham de implicar o André Ventura e o Chega de certeza. Estavam 12 ou 13 tipos com máscaras ridículas, os mesmos provavelmente que estavam aqui à porta hoje, com cartazes mais ridículos ainda, e a dizer que o Chega é xenofobia e fascismo” (…) “Nós não somos Fascistas, não somos extremistas nem somos pouco solidários”

Mais uma vez André Ventura procura afastar-se do discurso da extrema-direita neo-fascista e racista e dos movimentos como os que imitam rituais do Ku Klux Klan, dizendo que no dia que quiser ir à porta de associações como a SOS Racismo não vai só com meia dúzia de mascarados, mas vai com ‘milhares’ e vai sem máscara para dizer “cara a cara: deixem de chular o país com subsídios e mais subsídios para não fazerem absolutamente nada”. Ou seja, André Ventura e os seus apoiantes até podem fazer generalizações de determinadas raças ou etnias, dizendo que “vivem de subsídios” e “não fazem nada” — o que para Ventura não é racismo –, mas no dia que o disser é na cara e não atrás de máscaras. Com isto, Ventura volta a dar a entender que o movimento responsável pelas ameaças a deputadas e a dirigentes da SOS Racismo até pode ter sido desencadeado pela própria esquerda para o incriminar a ele, daí comparar essa manifestação à que ocorreu (contra o Chega) ontem à noite às portas daquele mesmo comício em Loulé. Ventura quer com isto descolar da extrema-direita racista, negar a radicalização, para com isso não assustar ninguém e não perder votos junto da população ‘real’ e descontente com o sistema. Daí afirmar taxativamente que o partido não é tudo aquilo que dizem ser.

“Se as minorias querem direitos têm de ter também deveres. Com o Chega, a impunidade das minorias vai acabar”.

Foi com este tipo de discurso que André Ventura começou a ganhar mediatismo: com os ataques à comunidade cigana e às minorias em geral, ainda como candidato à câmara de Loures nas listas do PSD. A ideia é, ao mesmo tempo que nega a xenofobia, o racismo e a pouca solidariedade, dizer ‘aquilo que as pessoas pensam mas não têm coragem de dizer’. O ataque às minorias já não é tão declarado como era há uns tempos, quando era preciso rasgar e romper, mas está sempre presente para espicaçar a plateia que aplaude. Antes de dizer isto, André Ventura já tinha dito taxativamente que os cidadãos africanos, como um todo, “vivem de subsídios e não fazem nada”. Para logo a seguir dizer que o Chega não é fascista, extremista nem pouco solidário.

“Perguntam-me: E se não ganharem? E se nunca lá chegarem? E se eles se unirem todos contra vocês?Mesmo que haja uma 2ª volta nas presidenciais, eles vão-se unir todos contra vocês.”

É a primeira vez no discurso que André Ventura fala nas presidenciais, que serão a sua prova de vida e de força, já em janeiro. E não o faz de forma inocente: fá-lo referindo-se a uma segunda volta (que só acontecerá se um dos candidatos, neste caso Marcelo Rebelo de Sousa, não tiver mais de 50% na primeira ida às urnas). Certo é que a ideia de segunda volta é improvável tendo em conta as sondagens, que dão a Marcelo 67,7% (na sondagem da Intercampus de agosto) e a Ventura 10%. Mas ainda faltam uns meses e é esse o caminho que Ventura quer percorrer: roubar votos a Marcelo para disputar o palco. É o toca a reunir e o apelo para que os eleitores não desmobilizem. Sendo que ganhar está fora do espectro real, quanto mais votos Ventura tiver mais legitima será a sua força e a sua implementação para os combates eleitorais que se seguem, incluindo as próximas legislativas. Ventura teve 1,29% nas últimas legislativas, se chegar perto dos 10% que lhe dão as sondagens nas presidenciais, vai sempre poder clamar que está a crescer.

“Se os debates quinzenais acabaram não foi pelo PAN ou pela Joacine, foi pelo Chega. Eles não nos sabem responder, não têm argumentos para nós. Eles não querem debates com o Chega. Querem calar-nos e silenciar-nos”.

É a estratégia de vitimização, uma vez mais. Várias vezes ao longo do discurso André Ventura evoca o episódio em que Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, o “tentou calar” ao tirar-lhe a palavra. Agora, referindo-se ao acordo feito entre PS e PSD, e aprovado na AR, para acabar com os debates quinzenais com o primeiro-ministro e tornar as idas do primeiro-ministro ao Parlamento mais esporádicas, Ventura faz o mesmo: diz que só o fizeram por não quererem debater com ele. Isto apesar de André Ventura ter pedido a suspensão do mandato de deputado, e a substituição pelo número dois do Chega em Lisboa, para se dedicar às campanhas eleitorais que se avizinham: regionais dos Açores e Presidenciais. Mas sobre isso, Ventura nada disse. Curioso é lembrar que o principal oponente desta reforma regimental acabou por ser Marcelo Rebelo de Sousa, que, não podendo vetar a lei sobre o fim dos debates quinzenais por ser da inteira competência da Assembleia, vetou outras leis paralelas e deixou o recado claro de que não gostou do que saiu dali. Neste caso, não pode acusar o seu putativo adversário nas Presidenciais de ser conivente com o “Bloco Central”.

“Quando vejo o Presidente da República ignorar estas ofensas aos médicos e dizer que o primeiro-ministro está a fazer o que pode, eu nao percebo. (…) Um Presidente da República que, quando o país atravessava uma das maiores crises, salvava pessoas no mar.  E depois mudou de roupa, com a toalha enrolada à volta dos cações, e falou sobre o Orçamento do Estado”.

Ventura termina como começou: usando a polémica das palavras ditas pelo primeiro-ministro numa conversa off the record para matar dois coelhos de uma cajadada só — Costa e Marcelo, pondo-os aos dois no mesmo saco e a atuar como cúmplices. É, aliás, a única vez que André Ventura fala diretamente sobre Marcelo Rebelo de Sousa ao longo de todo o discurso, o que faz parte da estratégia de o desvalorizar para se valorizar a si. Na fase final do discurso, Ventura usa o mesmo tom jocoso que tinha usado para se referir a Francisco Rodrigues dos Santos para lembrar o momento em que, de férias, Marcelo Rebelo de Sousa apareceu como é habitual nas praias do Algarve em calções de banho. É a velha estratégia: desvalorizar o adversário mas trazê-lo para o ringue.