786kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

SOPA Images/LightRocket via Gett

SOPA Images/LightRocket via Gett

As feministas têm sempre razão?

Quais os contornos de um discurso que tem marcado, com progressiva força, o espaço público em Portugal? Um ensaio de Patrícia Fernandes, a partir de quatro livros publicados em português.

    Índice

    Índice

Partindo de quatro obras com publicação recente em Portugal – Feminismo de A a Ser, de Lúcia Vicente (2019), Feminismo para os 99%: um Manifesto, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser (2019), e Todos devemos ser feministas (2015) e Querida Ijeawele: como educar para o feminismo (2018), de Chimamanda Ngozi Adichie – procuraremos traçar os contornos de um discurso que tem marcado, com progressiva força, o espaço público em Portugal: o discurso feminista.

Inspiramo-nos no título do livro de Francisco Bosco, A vítima tem sempre razão? Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro, para apresentar um argumento paralelo e que nos permite responder, de imediato, à questão colocada. Embora muitos tópicos feministas mereçam preocupação social e reflexão política (desde os números trágicos de violência doméstica ao incumprimento da legislação laboral), uma feminista pelo simples facto de ser feminista não tem sempre razão. Na verdade, o feminismo traduz-se num conjunto de ideias que fornece um vocabulário através do qual acedemos e interpretamos o mundo e constitui, nessa medida, uma ideologia. Como ideologia, afirma-se contra outras ideias que identifica como rivais e com quem disputa a hegemonia do espaço público. Como ideologia, não se traduz num acesso privilegiado à Verdade mas, antes, numa questão de aceitação dos seus pressupostos. E como ideologia, importa estar sujeita a escrutínio crítico. É esse o nosso objetivo.

Uma questão ideológica

Em Feminismo de A a Ser, Lúcia Vicente procurou sintetizar “o que é o feminismo, os seus movimentos, os seus universos paralelos”. O livro cobre um amplo espectro de tópicos, muitas vezes de forma confusa e com pouco rigor nos termos, apresentando o grande defeito dos escritos deste tipo: ao tentar simplificar um universo demasiado complexo, acaba por dar origem a um discurso incoerente. Este aspeto é especialmente notório no tratamento lacunar que é dado à disputa sobre a biologia na discussão feminista. Importa não esquecer que parte significativa do debate atual sobre feminismo ocorre em torno de questões sobre género e transexualidade, com investidas ferozes de ambas as partes. E basta pensar em toda a polémica em torno da participação de mulheres transgénero em competições desportivas femininas para perceber que as coisas são muito mais complexas do que o modo como Vicente as coloca.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ainda mais relevante, contudo, é a omissão às várias formas de pensar o feminismo, isto é, aos vários feminismos que compõem o feminismo. A consideração das quatro vagas feministas (que Vicente aborda) não permite capturar as duas correntes centrais do feminismo (que Vicente ignora). Mas é no cruzamento entre essas quatro vagas e duas correntes que as lutas feministas se tornam mais claras.

A vitória do patriarcado

Designemos a primeira dessas correntes como feminismo de cariz liberal. Quando lemos os textos de Chimamanda Ngozi Adichie encontramos a defesa de que às mulheres deve ser permitido tudo o que é permitido aos homens. As diferenças biológicas entre os dois sexos – que as há, de acordo com Adichie, e que justificaram o modo como as sociedades historicamente se organizaram – não justificam hoje a sociedade que temos. O mundo mudou, a tecnologia transformou radicalmente o nosso modo de vida e, por isso, não há razão para que antigas divisões baseadas no género subsistam. As sociedades atuais, diz-nos a escritora nigeriana, devem assegurar direitos iguais para homens e mulheres e a missão das mulheres e homens feministas passa por sensibilizar todos os outros para as alterações de mentalidade que é necessário imprimir na sociedade. Objetivo: que as futuras jovens não venham a nascer num mundo que trata desigualmente homens e mulheres.

Ao longo das últimas décadas, sucessivas reformas foram sendo implementadas para tentar corrigir as regras do jogo e torná-lo mais “igualitário” ou “inclusivo”. Ainda assim, o mundo não se tornou aquilo que as feministas idealizavam. Pior ainda: algumas medidas originaram mesmo resultados distintos dos pretendidos ou esperados.

Como se nota, não há aqui recusa do modo como o jogo funciona – apenas uma reivindicação de que as regras sejam adaptadas por forma a permitir às mulheres participar no jogo. Como disse Adichie em entrevista ao Expresso: “Em geral, agrada-me o capitalismo humano. Não sou anticapitalista. Sou anti certas formas de capitalismo.” É também esta a posição de Sheryl Sanberg: no seu livro Faça acontecer — Lean in: mulheres, trabalho e a vontade de liderar, a diretora de Operações do Facebook procura instigar as mulheres a um comportamento que as faça vingar num mundo dominado por homens (lean in), sem pôr em causa esse mundo.

Ora, esta visão é irreconciliável com o posicionamento expresso por Nancy Fraser, Tithi Bhattacharya e Cinzia Arruzza em Feminismo para os 99%: um Manifesto. Como dizem as autoras:

[a]pesar de condenar a “discriminação” e defender a “liberdade de escolha”, o feminismo liberal recusa-se terminantemente a enfrentar as condicionantes socioeconómicas que tornam a liberdade e o empoderamento impossível para a larga maioria das mulheres. O seu verdadeiro objetivo não é a igualdade mas a meritocracia. Em vez de procurar abolir a hierarquia social, visa “diversificá-la”, “habilitando” mulheres “talentosas” a chegar ao topo.

“Feminismo de A a Ser”, de Lúcia Vicente (Objectiva)

Esta é, então, a segunda corrente que referimos, assumidamente anticapitalista: de acordo com ela, a luta feminista não é uma questão de tornar o mundo do poder acessível às mulheres; o ponto é antes o de contestar o próprio sistema, o de abolir a própria ideia de poder a ser exercido por poderosos sobre os mais fracos. Não interessa que Christine Lagarde ocupe pela primeira vez a presidência do BCE, Ursula von der Leyen a presidência da Comissão Europeia ou Kristalina Georgieva a direção do FMI. Na verdade, são organizações infames pelo que é indiferente se quem as lidera é um homem ou uma mulher. O que é necessário é desmontar o jogo vigente. Nesse sentido, falar de um mundo feminista, como faz Lúcia Vicente, é usar um termo vazio: as propostas de uma e outra corrente originariam mundos radicalmente diferentes.

O feminismo radicalizado

Na sua pureza teórica, estes dois feminismos são incompatíveis, mas os últimos anos têm assistido à divulgação de um discurso que aproximou a corrente liberal da corrente antissistema, numa síntese de radicalização. O que conduziu a isso? Todas as ideologias (sejam elas comunistas, (neo)liberais, socialistas ou anarcocapitalistas) assentam na seguinte dualidade: de um lado, temos um conjunto de ideias acerca de como funciona o mundo e de como deveria funcionar; do outro, temos o próprio mundo. E o problema é que o mundo nem sempre está interessado nas nossas posições ideológicas – ou porque é demasiado complexo para a ilusão humana de que o podemos controlar ou porque as pessoas que nos rodeiam teimam em não ver o mundo da mesma forma.

No domínio feminista, isto traduziu-se no seguinte processo: ao longo das últimas décadas, sucessivas reformas foram sendo implementadas para tentar corrigir as regras do jogo e torná-lo mais “igualitário” ou “inclusivo”. Ainda assim, o mundo não se tornou aquilo que as feministas idealizavam. Pior ainda: algumas medidas originaram mesmo resultados distintos dos pretendidos ou esperados (pensemos no paradoxo da igualdade de género, a propósito das sociedades nórdicas). Ora, quando esperamos que o mundo assuma a forma que pretendemos e isso não acontece, medra a ideia de que meras reformas não são suficientes – é preciso algo mais radical. Afinal, todo o jogo social parece viciado.

“Feminismo para os 99%”, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Frase (Objectiva)

Assim, mesmo posições moderadas foram adotando o princípio de que o culpado é uma entidade abstrata que designam como patriarcado e que precisa de ser erradicado. O discurso feminista passou a estar orientado para a luta contra a sociedade, contra a estrutura, contra o sistema. A mulher, independentemente da sua condição concreta, assume estruturalmente o papel de vítima e todos os homens, independentemente da sua situação concreta, garantem estruturalmente o estatuto de privilegiado.

Há muitas variações nesta radicalidade, desde as conceções próximas de Andrea Dworkin e Catherine MacKinnon (que entendem que o sistema patriarcal consubstancia uma relação de dominação de tal ordem que toda a relação heterossexual é violenta, ilegítima e imoral) presentes na vaga feminista que nasceu com o #metoo, às ações intersecionais contra violações galináceas. Mas o que é comum ao discurso radicalizado atual é a ideia de poder e de que todas as relações sociais consubstanciam dinâmicas de poder – uma herança foucaultiana, que gera três graves problemas visíveis nos nossos dias.

A luta pelo poder

O primeiro desses problemas prende-se com o seguinte aspeto: considerar que todas as dinâmicas sociais se limitam a reproduzir lógicas de poder significa subscrever uma visão agonística da política enquanto palco de luta constante. Não é por acaso que este tipo de ativismo surge designado, no mundo anglo-americano, como SJW (Social Justice Warriors): se se trata de uma luta, então devemos ser guerreiros. E se é verdade que a política, na sua essência, contém uma dimensão de disputa, reduzir a política unicamente à luta transforma-a numa zona de guerra permanente onde não é possível o diálogo. Em sentido clássico, a política pode ser entendida como a disputa de razões e a arte do compromisso – mas quando visualizamos o próprio compromisso como resultado de dinâmicas de poder, então minamos qualquer possibilidade de ação política. Ora, é precisamente esta dimensão de polarização, entrincheiramento e violência que observamos na política atual, especialmente ampliada pelas tecnologias digitais.

Em consequência, o domínio público e político tem passado a ser dominado por um discurso de ódio e raiva. E isto diz-nos muito da sociedade moderna: enquanto as virtudes antigas valorizavam a moderação e o bom senso, hoje raiva e ódio são consideradas formas legítimas, e até mais válidas, de discurso. A esse propósito, diz-nos Adichie em dois momentos:

Há pouco tempo, escrevi um artigo sobre o que significa ser uma jovem mulher em Lagos. Um conhecido disse-me que havia muita raiva no texto, que eu não me deveria ter expressado assim. Mas eu não via razão para me desculpar. É claro que eu estava com raiva. A questão de género, como está estabelecida hoje em dia, é uma grande injustiça. Estou com raiva. Devemos ter raiva. Ao longo da história, muitas mudanças positivas só aconteceram por causa da raiva. (2015)

Lembras-te de como nos fartámos de rir com um artigo atrozmente escrito sobre mim há uns anos? O autor acusava-me de estar “furiosa”, como se “estar furiosa” fosse alguma coisa de que uma pessoa devesse envergonhar-se. É claro que estou furiosa. (2018)

O que significa exatamente “a libertação da mulher”? Quem decide os termos e a natureza dessa libertação? Quem valida a saída do cativeiro? É possível ser-se livre e muçulmana? É fácil falar em libertação da mulher – mas, em concreto, em que consiste?

Mas quando vivemos numa sociedade assente em luta, ódio e raiva, que espaço sobra para uma convivência comunitária saudável e equilibrada?

Em terceiro lugar, importa destacar o processo de legitimação que está subjacente a esta luta. De onde vem a legitimidade para intervir no espaço político? Este tipo de ideologias identitárias assenta num fenómeno que podemos designar como a epistemologia do eu: o conhecimento e a sua validação dependem apenas da nossa vivência pessoal. Se uma feminista interpreta todas as experiências negativas como resultado de ações discriminatórias pelo facto de ser mulher, isso é suficiente. Não precisamos já do outro, em especial do que é mais distante, para validar o nosso conhecimento – a verdade já não é solidariedade, no sentido expresso por Richard Rorty. O que conta é a forma como cada um interpreta a sua vivência. Adichie deixa isso especialmente evidente quando, na mesma entrevista, afirma:

Enviámos os nossos trabalhos por e-mail. O professor imprimiu-os todos, pegou num e disse: “Este é o melhor trabalho de todos. Quem o escreveu?” Chamou pelo meu último nome, e eu levantei a mão. Ele olhou para mim e ficou surpreendido. Foi um momento muito breve, mas deu para perceber a sua surpresa. Percebi que estava surpreendido por eu ser negra.

“Todos Devemos ser Feministas”, de Chimamanda Ngozi Adichie (D. Quixote)

Nesta história, Adichie refere-se à sua experiência como negra, mas o sentido dá forma ao seu pensamento feminista: ela interpretou a situação e essa interpretação corresponde à verdade. O problema é que, quando não abrimos espaço ao outro e à possibilidade de a nossa experiência pessoal não constituir toda a verdade, caímos numa lógica conspirativa. Se só a minha interpretação dos acontecimentos é válida, tudo o que dizem contra mim está errado e é feito para me prejudicar – só posso confiar naqueles que reforçam as minhas ideias e validam as minhas experiências. E isto é típico dos sistemas fechados: a voz dos outros só interessa enquanto caixas de ressonância das minhas próprias palavras; as outras vozes, as diferentes, as discordantes, devem ser caladas ou penalizadas.

Ganhar a luta, perder a luta

Devemos, contudo, notar que, quando adotamos uma perspetiva filosófica e ideológica sobre o mundo, ficamos cativos dessa perspetiva e sujeitos às suas contradições e dificuldades. É precisamente o que acontece com esta subscrição de que “tudo é poder e dinâmicas de poder”. Terminaremos a nossa análise, destacando três dessas dificuldades.

A primeira delas prende-se com a ambiguidade do mundo real. O que significa exatamente “a libertação da mulher”? Quem decide os termos e a natureza dessa libertação? Quem valida a saída do cativeiro? É possível ser-se livre e muçulmana? É fácil falar em libertação da mulher – mas, em concreto, em que consiste? Por outro lado, a complexidade da vida real desafia o pressuposto de todos os movimentos identitários: em que sentido é que ser mulher constitui toda a experiência pessoal, justificando um compromisso de sororidade incondicional e a defesa de valores comuns? Um exemplo deixará esta problemática mais evidente: o direito à interrupção voluntária da gravidez não é moralmente aceite por todas as mulheres – e isto porque há muitas formas de olhar para o mundo e muitas camadas que compõem o ser humano para lá do seu sexo.

“Querida Ijeawele: como educar para o feminismo”, de Chimamanda Ngozi Adichie (Bertrand)

Em segundo lugar, o feminismo radical tem gerado efeitos nocivos no que diz respeito ao próprio sentido do poder da mulher. Se, discursivamente, a luta se diz pelo poder, a prática mostra-nos que a luta feminista criou uma autoimagem da mulher como vítima de que o homem é o único culpado (pensemos na introdução de todo um vocabulário que diaboliza o homem: mansplaining, manspreading, manterrupting). Há dois problemas nesta imagem. Por um lado, a demonização do homem não só gera efeitos contraprodutivos para as mulheres, como nota Camille Paglia, como produz injustiças particulares contra indivíduos concretos, como chama a atenção Francisco Bosco. Por outro lado, esta cultura de vitimização espoleta dinâmicas perversas de competição pelo estatuto de vítima-maior e está muito longe do feminismo empoderador e libertador – pelo contrário, fragiliza e enfraquece a mulher, como defende Laura Kipnis. O pensamento feminista radicalizado parece ter-se limitado a substituir um cativeiro por outro cativeiro.

Por fim, a maioria das feministas parece ignorar uma lição política básica: todos os discursos geram contradiscursos, todas as ações geram reações – e quanto mais radical for um discurso, mais radical será a resposta. No domínio feminista, tal tem originado reações, por sua vez radicalizadas e polarizadas, de movimentos que reivindicam direitos para os homens. A riqueza de Margaret Atwood está muito na capacidade de perceber este aspeto. Na verdade, o primeiro passo para agirmos de modo inteligente em termos políticos é aceitar que o mundo não gira apenas em torno do nosso umbigo. Mas isso é algo que o feminismo radicalizado, que se tornou hegemónico no espaço feminista e tem vindo a conquistar espaço público, parece incapaz de compreender.

Patrícia Fernandes é professora da Universidade da Beira Interior e da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora