A nova legislatura traz um Conselho de Estado bem diferente em termos políticos, mas igual quando o critério avaliado é o género. Com a dissolução do anterior Parlamento, o PS limpou as réstias da geringonça do Conselho de Estado e os dois maiores partidos — que distribuem os lugares entre si, apesar de o Chega tentar entrar nestas contas — continuam a manter o que era prática até aqui, indicando apenas homens para o órgão consultivo do Presidente da República.
O que estará em causa esta sexta-feira, 29, quando a lista for votada pelos deputados, será apenas a escolha dos cinco nomes que o Parlamento tem direito a indicar — as cinco escolhas de Marcelo Rebelo de Sousa, assim como as restantes inerências, não mexem com o início de uma nova legislatura.
Esquerda fora, bloco central de volta
Desde logo, o que ficou claro com a hecatombe eleitoral dos partidos à esquerda do PS foi que os maus resultados não trariam apenas uma redução das bancadas, mas também dos seus lugares de influência noutros palcos.
Com o fim oficial da geringonça, confirmou o Observador, não houve sequer contactos entre os antigos parceiros para manter o acordo não-escrito que existia desde 2015: tanto nesse ano como em 2019 o PS optou por abdicar dos três (de cinco) lugares a que teria direito para indicar apenas o presidente do partido, Carlos César, e ceder os outros dois a militantes de peso do Bloco de Esquerda e do PCP (respetivamente, Francisco Louçã e Domingos Abrantes).
Desta vez, nada: não houve contactos, apesar de a cúpula do Bloco de Esquerda considerar, como o Observador dava nota aqui, que seria do “interesse” do PS contrariar a ideia de “absolutismo” e promover a ideia de um partido absoluto mas dialogante, prolongando o espírito de parceria à esquerda. Sem efeito. O PS decidiu, desta vez, ficar mesmo com os três lugares a que terá direito, decididos por António Costa e Carlos César.
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Assim, os socialistas manterão César e irão recuperar Manuel Alegre (que em 2015 se mostrou surpreendido com a saída do órgão, uma vez que chegou a ser convidado — e desconvidado) e acrescentar o antigo candidato presidencial António Sampaio da Nóvoa, que terá sido sugestão do próprio César. Fica, assim, fechada a lista de candidatos que o PS irá apresentar.
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Significa isto que haverá mais bloco central neste Conselho de Estado. Do lado do PSD, o mistério também já foi desfeito. Isto depois de Rui Rio ter recusado no início do mês esclarecer se voltaria a indicar-se a si próprio para a composição do órgão, uma vez que está de saída da liderança do PSD (as eleições diretas estão marcadas para 28 de maio) e de ter considerado que o Conselho de Estado até tem uma “importância reduzida”.
Depois, Rio admitiu que chegara a pensar indicar-se — apenas para dar o lugar ao sucessor a seguir, garantiu — mas o PSD acabou por decidir manter o lugar de Francisco Pinto Balsemão e acrescentar o nome do antigo ministro das Finanças, Miguel Cadilhe.
Já há, no entanto, no PSD quem discorde da forma como o processo correu: se as diretas no PSD tivessem acontecido mais cedo, recordava em entrevista ao programa Vichyssoise, da rádio Observador, Miguel Relvas, o novo presidente do PSD poderia ter assumido um lugar no elenco do Conselho de Estado. “Não ter o futuro líder do PSD no Conselho de Estado é um ato desvalorizativo. Não me parece muito adequado. O senhor Presidente da República não merecia”, argumentou Relvas.
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Bloco central retoma tradição antiga
A lei determina que o Conselho de Estado inclua “cinco cidadãos eleitos pela Assembleia da República, de harmonia com o princípio da representação proporcional”, escolhidos no princípio de cada legislatura. De acordo com o método de Hondt, que o regimento da Assembleia da República impõe, geralmente são os dois maiores partidos — PS e PSD — que conseguem indicar e eleger esses nomes.
Agora, PS e PSD vão retomar a tradição que vingava nos tempos anteriores à geringonça — a apresentação de uma lista conjunta de cinco nomes, validada depois pelo voto secreto, em urna, dos deputados. Em 2015, a maioria no Parlamento era de esquerda, embora o PSD fosse o partido mais votado, o que levou a que a lógica mudasse — o PSD teria direito à maioria dos lugares, se a lógica fosse partidária; mas a esquerda teria direito à maioria, tendo em conta a representação parlamentar.
O PS entendia então que a esquerda também deveria ficar representada no órgão, e tanto BE como PCP manifestaram essa vontade e indicaram os dois nomes para uma lista construída com os socialistas, por oposição à lista desenhada à direita. Em 2019, a lógica das conversas entre PS, BE e PCP foi a mesma, mas regressando ao formato da lista única, consensualizada entre os partidos.
Com o fim da geringonça e o PS absoluto, volta a regra antiga — e o bloco central apresenta Carlos César, Manuel Alegre, António Sampaio da Nóvoa, Francisco Pinto Balsemão e Miguel Cadilhe na lista em que os deputados irão votar (e que têm de eleger por mais de dois terços, o que não será problema nesta composição parlamentar).
Só três mulheres, nenhuma indicada pelo Parlamento
A composição do Conselho de Estado não se fica por aqui, embora estas sejam as escolhas que o Parlamento tem direito a indicar, o que faz sempre que termina uma legislatura. É, aliás, entre o resto dos nomes que se encontram atualmente — como continuará a acontecer daqui para a frente, graças a estas escolhas dos partidos — as únicas mulheres do elenco.
A composição é, atualmente, a seguinte: Marcelo Rebelo de Sousa, que preside ao órgão; Augusto Santos Silva, por inerência, por ser Presidente da Assembleia da República, assim como António Costa, por ser primeiro-ministro; nas restantes inerências encontram-se João Caupers, presidente do Tribunal Constitucional; Maria Lúcia Amaral, provedora de Justiça; Miguel Albuquerque, presidente do Governo da Madeira; José Manuel Bolieiro, presidente do Governo Regional dos Açores; António Ramalho Eanes e Aníbal Cavaco Silva, antigos presidentes da República.
É preciso somar a estes nomes as escolhas pessoais de Marcelo Rebelo de Sousa: António Lobo Xavier, António Damásio, Lídia Jorge, Luís Marques Mendes e Leonor Beleza. Ora verificando esta lista e também a dos nomes que o Parlamento irá votar, encontram-se apenas três mulheres: Lídia Jorge e Leonor Beleza, ambas indicadas por Marcelo, e Maria Lúcia Amaral, provedora de Justiça. Entre os nomes indicados pelos partidos, nenhuma, tal como já acontecia na legislatura anterior.
PSD em maioria, mas PS recupera terreno
Em relação ao elenco que existia no início da última legislatura, no que toca às escolhas do Presidente, não há grandes mudanças: Marcelo Rebelo de Sousa foi reeleito entretanto, em 2021, mas não fez alterações aos nomes escolhidos, maioritariamente associados aos partidos da direita. Aliás, as únicas mudanças registadas desde a sua primeira eleição, em 2016, deveram-se à morte de Eduardo Lourenço (substituído por Lídia Jorge) e à saída de António Guterres para secretário-geral da ONU (substituído por António Damásio).
O PS continua a segurar, dentro das inerências, os dois lugares que correspondem ao presidente da Assembleia da República, embora agora este passe a ser ocupado por Augusto Santos Silva em vez de Eduardo Ferro Rodrigues, e ao primeiro-ministro, António Costa.
Mas o PSD também ganhou mais peso em relação ao início da legislatura, graças às inerências que permitem que também José Manuel Bolieiro, presidente do Governo regional dos Açores (conquistado ao PS em 2019), a somar a Miguel Albuquerque, presidente do Governo regional da Madeira, se sentem no órgão consultivo.
Feitas as contas, o bloco central fica, muito mais do que em 2019, em relativo equilíbrio. No último elenco, tendo em conta as áreas políticas de cada membro do Conselho de Estado — e descontando as presenças dos magistrados e nomes associados à Ciência e à Cultura –, o PSD contava com oito nomes, o PS com três (pelo menos depois da morte do ex-Presidente Jorge Sampaio) e Bloco de Esquerda, PCP e CDS (graças à indicação de António Lobo Xavier, por Marcelo Rebelo de Sousa) com um cada um. Desta vez a divisão fica assim: PSD de novo com oito nomes, mas PS com cinco e CDS mantém Lobo Xavier. À esquerda do PS, nada.
Esta fotografia política de um Conselho de Estado em que o bloco central é dominante é, aliás, ilustrativa do desenho dos cargos políticos nesta legislatura. Olhando para a Assembleia da República, PS e PSD também conseguem, desta vez, dividir entre os dois as presidências de todas as 14 comissões parlamentares.
É uma mudança assinalável em relação à última legislatura, quando o Bloco de Esquerda, enquanto terceira força política, tinha direito à presidência de uma comissão. Diferença: além de ser a terceira força, tinha mais deputados do que tem agora o Chega (BE tinha 19, o Chega conseguiu 12). Assim, pelo método d’Hondt, desta vez só o centrão tem direito a esses lugares de destaque no Parlamento.
Nas vice-presidências do Parlamento, desenha-se o mesmo cenário, embora aí a escolha seja mais complexa e não dependa de nenhuma regra matemática, mas antes da vontade dos deputados. Apesar de haver quatro assentos, só foram eleitos por maioria no Parlamento um nome do PS (Edite Estrela) e um do PSD (Adão Silva).
Os nomes dos outros dois grupos parlamentares que tinham direito a indicar as suas escolhas (por serem a terceira e quarta força política) foram chumbados (no caso da Iniciativa Liberal era João Cotrim Figueiredo; o Chega indicou primeiro Diogo Pacheco de Amorim e depois Gabriel Mithá Ribeiro, em ambos os casos sem sucesso). Os partidos podem apresentar novos nomes, mas por agora, mais uma vez, o centrão domina a mesa da Assembleia da República.
Chega apresenta lista, sem votos para isso
Quem não está de acordo com a composição da lista e com o regresso do bloco central ao Conselho de Estado é o Chega. Mesmo sabendo que, tendo em conta o princípio de representação proporcional que pauta esta eleição, PS e PSD ficarão com os lugares, o partido de André Ventura decidiu apresentar uma lista própria — pode fazê-lo desde que a proposta seja apresentada por pelo menos dez deputados (e o Chega tem doze).
Assim, o Chega decidiu avançar com uma proposta de lista encabeçada pelo diplomata e vice-presidente do partido António Tânger Correa, e que inclui ainda o empresário Eduardo Urze Pires, a médica Eunice Ramos, o engenheiro Manuel Furtado Mendes e Jorge Pereira, funcionário público na área da Saúde no distrito do Porto e licenciado em ciência política, como escrevia o Público. Mesmo assim, na sexta-feira, e tendo em conta a composição parlamentar saída das eleições de janeiro, o resultado será previsível: um regresso do bloco central ao Conselho de Estado, onde pela mão dos partidos não entram mulheres.
Título corrigido às 20h47 para indicar que haverá três, e não duas, mulheres com assento no Conselho de Estado.