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Numa extremidade, o Teatro Nacional D. Maria II, na outra, o ascensor do Lavra. Na vizinhança, o Coliseu dos Recreios, o Teatro Politeama e a Sociedade de Geografia de Lisboa. Quem passa na Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa, não adivinha o que esconde um dos edifícios com mais história na cidade: contas por resolver, pessoas que trabalham sem receber ordenados, obras ilegais, dívidas por saldar e serviços que, em vez de renascerem, estão coxos ou parados. O que se passa no Ateneu Comercial de Lisboa?
A história que contam e por que ainda passam Teresa Ferreira e Liliana Escalhão, proprietárias de um espaço de restauração e bar situado no Ateneu chamado Primeiro Andar, ilustra a confusão e a incerteza em que está “metido” um dos edifícios mais emblemáticos da cidade de Lisboa. O Ateneu Comercial de Lisboa — declarado Instituição de Utilidade Pública em 1926 —comemora este ano 135 anos de atividades culturais, de educação, lúdicas e desportivas. Ou deveria comemorar, porque muitas delas pura e simplesmente já não existem. A piscina fechou — por vezes o espaço é usado para festas —, o pavilhão não vê um jogo de equipas há muito tempo e ainda mais longe vão os tempos dos campeonatos de xadrez, dos saraus de ginástica, da equipa de esgrima, das exposições, das tertúlias de leitura.
A cultura para todos
Mas primeiro, uma viagem no tempo. Recuemos a 1880. Portugal atravessava mais um dos muitos picos de crise – financeira e intelectual. Por causa disso, e aproveitando o tricentenário da morte de Luís de Camões, um grupo de trabalhadores do comércio decidiu meter mãos à obra (e cabeças a pensar, antes de tudo), para estender o acesso ao ensino e à cultura, exclusivo às famílias mais abastadas, a mais pessoas. O grupo de comerciantes tinha vários alvos na mira: garantir uma instrução especializada aos da sua classe (das mais numerosas do país), encontrar um espaço onde pudessem encontrar-se e, a longo prazo, incentivar a prática desportiva. “Mente sã em corpo são” era o lema. Tudo por fases, claro, que não seria fácil instituir todas as categorias de uma vez só. Agarraram no nome de Camões – soldado e homem de letras – e fizeram-no seu patrono. O busto do poeta ainda sobrevive no átrio do Ateneu Comercial de Lisboa. Mas é dos poucos, porque nos últimos anos tudo se foi perdendo. Mesmo os livros (a biblioteca foi das primeiras conquistas da associação, que recebeu donativos e ofertas de obras das mais variadas pessoas), estão abandonados e esquecidos numa sala fechada.
E é a história deste edifício e desta associação que inspira Teresa e Liliana a abrir um espaço comercial no primeiro piso do Ateneu Comercial de Lisboa, em junho de 2012. Quando descobrem os fins para que o Ateneu foi criado, decidem adicionar um novo ingrediente ao projeto de restauração que tinham cozinhado nos últimos meses: cruzar a gastronomia com a cultura. Perante um cenário que já não era dos melhores, escolheram aquele espaço porque ficaram entusiasmadas com a ideia de poder ajudar a dinamizar um dos ex-libris da capital, situado em plena Lisboa Pombalina.
O Primeiro Andar, o restaurante que têm há três anos, fica no piso 1 do Palácio dos Condes de Povolide, aquele que é o edifício do Ateneu Comercial de Lisboa há 120 anos, na Rua das Portas de Santo Antão. Mas a associação não viveu sempre ali.
Há 135 anos, quando surgiu a ideia de criar o grémio, ainda não havia dinheiro suficiente para alugar um espaço. À semelhança dos encontros das sociedades secretas (mas sem o ser), o grupo encontrava-se todas as noites, entre as 22h00 e as 00h00, num andar na rua dos Retroseiros, nº 75. A casa pertencia a Elysio Augusto Santos, um dos comerciantes fundadores, e foi ali que puseram o projeto no lume: distribuíram os cargos e decidiram as bases e os fundamentos da agremiação. Lima Nunes, outro dos sócios fundadores, sugeriu a criação de um grémio associativo e é a si que se atribui a instituição: “Daquele a quem se deve a ideia primeira da fundação do Ateneu”, escreveu a Comissão Administrativa na ata de 26 de março de 1881. Já o nome, Ateneu Comercial de Lisboa, chegou pela cabeça de Júlio Irwin.
Os primeiros estatutos do Ateneu eram claros e motivadores: organização de uma biblioteca, aulas diurnas de instrução primária para os filhos dos sócios e para as crianças pobres, aulas noturnas de gramática portuguesa, francesa e inglesa, de geografia e de escrituração comercial para os sócios.
Tinham tudo planeado. O dinheiro entraria através de vários donativos e das quotas dos futuros sócios (200 reis por mês), para mais tarde chegar também pelas receitas dos saraus e outros eventos que promovessem. E por que razão alguém se quereria associar ao Ateneu Comercial de Lisboa? A resposta é simples (e apelativa para qualquer cidadão): melhores perspetivas de futuro. Os primeiros estatutos do Ateneu eram claros e motivadores: organização de uma biblioteca, aulas diurnas de instrução primária para os filhos dos sócios e para as crianças pobres, aulas noturnas de gramática portuguesa, francesa e inglesa, de geografia e de escrituração comercial para os sócios – essenciais para que os empregados do comércio pudessem aprender e crescer profissionalmente. Mais: havia planos de conferências científicas, tertúlias literárias, workshops, entre outros.
Começa a chuva de donativos de muitos particulares (tanto em dinheiro como em livros, esculturas, quadros ou objetos de arte) e o Ateneu Comercial de Lisboa aluga a sua primeira sede social, no nº 79 da Rua do Arco da Bandeira. A associação é inaugurada, como previsto, no dia de Camões: 10 de junho (de 1880). Daí, passam para o 2º andar do nº 196 da Rua dos Fanqueiros, com uma renda anual de 150$000, num prédio mais central. Mas os sócios sempre reclamaram umas instalações maiores e adequadas “ao exercício dos encargos e diversões sociais”, conta Vítor Ribeiro numa notícia histórica que escreveu a 10 de junho de 1905 a propósito dos 25 anos do Ateneu.
Pouco tempo depois, vagava a sede da Sociedade de Geografia de Lisboa, na rua do Capelo nº 5, e o Ateneu faz nova mudança de instalações em 1891. Como o espaço era maior, o grupo de comerciantes comprou mais mobília, uma mesa de bilhar e aparelhos para as aguardadas aulas de ginástica e de dança. Mas o caminho do Ateneu não foi sempre plano e, em 1886, havia apenas 120 associados. As contas derrapavam, os sócios desistiam de o ser, os professores ofereciam aulas sem receber nenhuma contribuição para ver se havia maneira de chamar os ex-sócios (e novos claro). O Ateneu tentava de tudo para a instituição não morrer. Mas, inesperadamente, a associação prega uma partida ao destino que parecia estar traçado e, através de novas iniciativas (festas, exposições, saraus), consegue recuperar os antigos sócios, ao mesmo tempo que conquista novos membros.
É nesta curva de recuperação financeira que o Ateneu se muda, finalmente, em junho de 1895, para o tal Palácio de Povolide – à data, casa do Conde de Burnay. Há 120 anos, pagavam 1.000$00 de renda anual e o espaço era o ideal para albergar novas atividades, mais aulas e festas.
É nesta curva de recuperação financeira que o Ateneu se muda, finalmente, em junho de 1895, para o tal Palácio de Povolide – à data, casa do Conde de Burnay. Há 120 anos, pagavam 1.000$00 de renda anual e o espaço era o ideal para albergar novas atividades, mais aulas e festas (uma das maiores vias de receitas da associação), assim como melhorar as condições das aulas de ginástica, com novas práticas desportivas. O Conde de Burnay cedeu ainda várias mobílias, espelhos e objetos para a ornamentação dos grandes salões, muito património que ainda é do Ateneu.
Quando o senhorio morreu, o palácio foi comprado por uma sociedade hoteleira (Lisboa Palace Hotel) que, à semelhança do que acontece atualmente (sim, já lá vamos), queria transformar o edifício num hotel. O negócio andou às curvas e contracurvas durante anos mas a associação Ateneu conseguiu, finalmente, tornar-se proprietária do Palácio de Povolide a 9 de outubro de 1926. E é na Rua das Portas de Santo Antão, nº110, que se mantém até hoje. O palácio custou-lhes 800.000$00. Hoje, vale mais de 10 milhões de euros.
O certo é que depois de vários percursos acidentados, dinheiro que esticava, mas não chegava para pagar todas as despesas, o Ateneu sempre conseguiu sobreviver. Uma e outra vez. Endividavam-se e inventavam mil e uma formas de virar tudo do avesso e voltar a encher os cofres: exposições, workshops, eventos, concursos. E com a mudança para a nova sede, chegou também “o brilhante período de prosperidades”, escreveu Victor Ribeiro. O Ateneu cresceu e criou novas aulas, mais desportos e uma panóplia de exposições que atravessaram várias épocas do país. Os estatutos e as regras foram adequados aos novos anos e até existiam programas de proteção para desempregados ou para os filhos de sócios que tivessem perdido os pais. Da Escola Comercial do Ateneu saíram ilustres alunos, das aulas de ginástica e de natação, outros tantos. Francisco Marçal, nadador do Ateneu, venceu o campeonato nacional várias vezes. Basílio Oliveira, do boxe, venceu o campeonato de Yorkshire. António Pereira, António Neves e Homero Alves também deram ao Ateneu (e ao país) palmarés no campeonato de Pesos e Halteres. O Ténis de Mesa e o Polo Aquático produziam outros tantos atletas. E ainda havia as festas da associação, sempre concorridas e que animavam a população, mais as exposições e palestras onde acorriam personalidades da época, mesmo presidentes de câmara ou da República.
O princípio do verdadeiro fim?
A história do Ateneu é feita de muitos períodos agitados, mas a associação sempre emergiu. Até agora. Melhor, até há três anos, em 2012, quando Liliana e Teresa arrendaram o seu espaço. E foi nessa esperança de colaborar com mais uma reaparição da associação que as raparigas decidiram alugar as tais salas a que chamaram Primeiro Andar. É que mais uma vez, as contas do Ateneu Comercial de Lisboa voltavam a derrapar e a associação foi perdendo sócios.
A piscina, responsável pelas maiores entradas de dinheiro do Ateneu, por exemplo, já metia água há uns tempos e fechou em setembro de 2011: “Devido a problemas estruturais irreversíveis a curto prazo a piscina vai ficar encerrada por tempo indeterminado. Para mais informações dirija-se à secretaria”, lê-se, a 29 de setembro desse ano, na página de Facebook da instituição.
No Ateneu chegou ainda a existir a Universidade Sénior e a Escola de Medicina Tradicional Chinesa. Mas, neste momento, restam apenas aulas de dança, um professor que às terças-feiras dá basquetebol, aulas de ginástica localizada, um restaurante e três bares. Com o passar dos anos, perderam-se as aulas de esgrima, de música e de canto, mais as de geografia, economia política, direito comercial, contabilidade, aritmética ou línguas. A carreira de tiro, responsável por pôr o nome de portugueses em provas internacionais, esgota-se, e a morte lenta da associação também fez desaparecer o boxe, o polo aquático ou os saraus e os bailes, a arte dramática e o yoga. O edifício degrada-se a olhos vistos.
Um mês depois de Teresa e Liliana assinarem o contrato, o Ateneu é declarado insolvente. Um mês depois de as duas amigas sonharem com um negócio que podia ajudar a salvar o Ateneu, começa o pesadelo que se arrasta até hoje. Teresa e Liliana ficam a saber, pela comunicação social, que havia um buraco de cerca de 400 mil euros nas contas da instituição. E que a direção, empossada em janeiro desse ano, tinha sido substituída por um administrador de insolvência, Joaquim Pereira Faustino, encarregue de limpar o passivo da associação e, ao mesmo tempo, devolver-lhe a vida. É com esta nova administração que as inquilinas passam a tratar de qualquer procedimento necessário entre “senhorio e inquilino”. Mas a “salvação” prometida, não passava por elas…
“Quero-vos fora daqui!”
Um dia, em setembro de 2012, chegaram ao Ateneu para trabalhar. A porta do restaurante estava aberta e, lá dentro, encontraram o administrador de insolvência: “Quero-vos fora daqui!”.
Liliana conta que a frase ríspida serviu de apresentação entre as duas partes: “Chegámos para trabalhar e estava o Dr. Faustino, acompanhado do Eng. Mário Roncon [voluntário no Ateneu desde que se tornou insolvente], e do seu filho, Ricardo Roncon [atual coordenador do Ateneu], que nós não conhecíamos, dentro do nosso espaço! Tínhamos contrato de arrendamento, chave, tudo legal. Na altura ficámos muito assustadas”, recordam.
Joaquim Faustino explica ao Observador por que não está contente com o contrato herdado da anterior direção: “As meninas do Quatro e Meia (nome em que está registada a empresa do Primeiro Andar) utilizam o campo de basquetebol, um espaço pelo qual não pagam”. As arrendatárias contra-argumentam, afirmando que foi esse o acordo quando alugaram o espaço: a entrada dos clientes tinha de ser feita por uma segunda porta, a tal que dá acesso ao campo. E acrescenta Teresa: “Alguns clientes saem do restaurante e juntam-se no campo a conversar, como fazem os do outro bar e como acontece com outros espaços na cidade em que vemos grupos à porta”.
E atira o administrador de insolvência: “Os outros bares têm contratos precários, que se podem resolver num mês, 40 dias, possibilitando a sua interrupção. O Primeiro Andar é o único arrendamento e não se enquadra nos Estatutos do Ateneu porque a entrada é feita por uma rua (a rampa) privada que pertence ao Ateneu e ao Coliseu. Não é uma rua pública”. Mas é o acesso dos clientes de todos os bares do palácio (e uma das saídas dos espectadores que assistem aos concertos do Coliseu).
Apesar do descontentamento da nova gestão do Ateneu, o contrato existe e Teresa e Liliana continuam a meter mãos à obra. Quando alugaram o espaço, inativo há mais de um ano depois de ter servido de casa a “um restaurante árabe”, ficaram com duas salas e uma cozinha no primeiro piso do Ateneu. Pintaram as paredes, recuperaram o chão de tábua corrida, disfarçaram um pedaço de tecto que estava a ruir: “Tínhamos um arquitecto amigo a ajudar para não fazermos nenhuma asneira na traça original das divisões”, recorda Liliana. Decorações feitas, inauguraram o espaço a 28 de julho de 2012. Em dezembro desse ano receberam o Corvo de Ouro da Time Out pelo “Espaço Noturno do Ano”, já que a licença do Primeiro Andar vai madrugada dentro, até às 2h00.
Ali há concertos todas as semanas, exposições, slam poetry, aulas de lindy hop e outros eventos culturais. Teresa garante que a intenção é dinamizar o Ateneu: “Não pensámos como um negócio só para nós. A ideia é que, sendo o espaço que é, servisse muita gente. Por isso é que escrevemos uma carta de intenções apelando a que houvesse descontos nas atividades do Ateneu, incluindo no restaurante, para incentivar a que mais pessoas se fizessem sócias”, recorda. Nunca receberam resposta.
O Muro
Teresa e Liliana ficaram. E continuaram a ter casa cheia, semana após semana. Até que chegou o verão de 2015 e um novo muro se ergueu. Desta vez, um real, de tijolo e cimento.
Não era um dia normal de trabalho. Teresa e Liliana tinham decidido voltar mais cedo das férias para remodelarem o espaço que reabria uma semana depois. Depois de subirem a pequena rampa ao lado do Coliseu, frente ao Politeama, entraram pelas escadas de serviço no Palácio de Povolide, onde se encaixa o Ateneu. A acompanhá-las, o mesmo ruído que ouvem há três anos, desde que alugaram o restaurante. Agora, só um pouco mais abafado: os gemidos roucos e cansados dos degraus de madeira, sintoma de anos sem restauro. Mas daquela vez, contam, havia um novo som ao fundo, martelos e pedras, obras, talvez. Pouco se surpreenderam. Não era a primeira vez que não eram informadas de eventos na antiga casa dos Condes de Povolide.
Subiram pelas escadas de serviço que desembocam na cozinha do restaurante. Lá dentro, as salas de jantar estavam tal e qual as tinham deixado antes de irem de férias. Mas quando, a partir do interior do restaurante, abriram a outra porta, por onde entram os clientes, Teresa e Liliana não queriam acreditar: em frente à entrada tinha crescido uma parede que limitava o acesso dos fregueses e os separava dos outros espaços do Ateneu, como o campo de basquetebol e os bares que existem nesse pavilhão desportivo. “Os muros servem para segregar. Foi a gota de água”, atira uma uma das proprietárias.
A parede ainda estava por terminar e o rapaz que a estava a construir explicou-lhes que os clientes do restaurante passariam a entrar por uma nova porta a partir das escadas de serviço. O Primeiro Andar também teria outras casas de banho, mesmo ao lado da entrada, onde um dia funcionaram os balneários do ginásio.
Na cabeça das arrendatárias rodavam várias perguntas, mas a que se impôs a sair-lhes boca fora, incrédulas, foi só uma: “Onde é que isso está no contrato?” Não estava.
O documento, assinado entre a então direção do Ateneu e as inquilinas, prevê que a entrada dos clientes seja feita pelo pavilhão gimnodesportivo, como, aliás, fazem os clientes do bar ao lado do Primeiro Andar. Mas não só: essa entrada dos clientes é também a saída de emergência, pelo que o novo plano põe em causa a segurança dos comensais. “E é obrigatório haver uma entrada para os visitantes e outra para o pessoal. Qual o sentido de passar com sacos e caixotes de compras pela entrada dos clientes?”, questiona Teresa.
Além do mais, o Palácio de Povolide está encaixado na Lisboa Pombalina, área classificada como Conjunto de Interesse Público (CIP) e, por causa disso, não pode sofrer intervenções sem as autorizações da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e da Direção Geral do Património Cultural (DGPC).
Chamaram a Polícia Municipal.
O muro não durou dois dias. No primeiro, a Polícia Municipal (PM) só tirou fotografias porque antes das autoridades chegarem ao local, o pedreiro que lhes explicara o projecto foi embora. No segundo dia, com as obras a seguirem o seu rumo, as donas do Primeiro Andar recorrem novamente à PM, já que a administração não lhes atendia o telemóvel. Assustados, os homens que estavam a trabalhar no muro fugiram, deixando para trás o almoço, as mochilas, a planta do imóvel e desenhos técnicos. A polícia só conseguiu fotografar-lhes a matrícula da carrinha, mas, com as provas, já podia questionar os responsáveis pela instituição.
Passaram três semanas, entre vários telefonemas e emails, até conseguirmos conversar com Joaquim Faustino, administrador de insolvência atualmente encarregado pela gestão do Ateneu. É então que o advogado explica: “A pessoa que pus lá responsável pela gestão do Ateneu não sabia que tinha de pedir autorização [para construir o muro]. Vamos pedi-la primeiro.”
No final do segundo dia a parede apareceu desfeita. E não mais voltou a ser colocado um único tijolo.
O incêndio e os dispensadores arrancados
Quando alguma coisa acontece no edifício, é quem aluga os espaços que tem de resolver a situação. Como quando um curto circuito provocou um incêndio no bar. “Começou a arder e houve um incêndio. Conseguimos apagar e tentámos ligar para os responsáveis pelo Ateneu, mas ninguém nos atendeu. Chamámos a polícia e os bombeiros, que disseram que estava tudo em curto-circuito”. Eram 23h00 e telefonaram para um piquete de eletricista, mas como não tinham acesso ao resto do edifício [as portas ficam fechadas durante a noite] ele teve de voltar no dia seguinte e andar a passar de uma sala para a outra saltando e entrando por janelas. Todos os gastos ficaram ao nosso encargo”, conta Liliana.
Mas há outras histórias. Os novos dispensadores de papel, que as responsáveis pelo Primeiro Andar deixaram nas casas de banho (comuns a ambos os bares), desapareceram da noite para o dia: “Há meses que pedimos papel nas casas de banho. Como nunca chegou, decidimos colocar uns dispensadores de papel, comprados por nós, mas para bem de todos – dos nossos clientes e os do bar ao lado. No dia seguinte, foram arrancados. A gestão disse-nos que devíamos ter pedido autorização. Somos marginalizadas desde que aqui chegamos”, desabafa Teresa Ferreira. Joaquim Faustino argumenta: “Não sei se foram arrancados ou não. Mas elas não podem pôr bens em espaços que não lhes pertencem. As casas de banho são geridas pelo Ateneu e não por elas”.
E ainda houve a questão dos recibos. Quando começaram a pagar o aluguer, Teresa e Liliana recebiam um documento que referia que o dinheiro que entregavam ao Ateneu era a título de donativo e não um recibo de pagamento de renda. Mais uma queixa, e lá conseguiram obter os documentos legais.
“Querem construir um hotel, vão vender isto tudo”
Pelos corredores do Ateneu e nas ruas vizinhas, a conversa é sempre a mesma: “Querem construir aqui um hotel, vão vender isto tudo”, diz uma pessoa com quem falámos no espaço e que pede para não ser identificada.
No Plano de Recuperação apresentado em tribunal, anexado ao processo de insolvência do Ateneu a que o Observador teve acesso, a administração apresenta “um projeto imobiliário” para o local. Sobre este assunto, Joaquim Faustino diz-nos: “Não era viável e ficou sem efeito”. Por isso, explica o administrador de insolvência, a gestão seguiu outro caminho: “Um mecenas”.
O Ateneu Comercial de Lisboa tem uma dívida que se aproxima dos 400 mil euros. Entre os credores, à data em que ficou insolvente, encontravam-se o Estado, empresas públicas e privadas ou singulares que prestaram serviços à associação. E eis que surge o tal mecenas.
Em janeiro deste ano, as dívidas começam a ser compradas por um sócio do Ateneu, Adriano Roberto Lourenço, que, em contrapartida, fica com os direitos que tinham esses credores. Só que, à excepção das empresas públicas, os credores aceitam vender a sua dívida por um valor mais baixo.
António Morais, um ex-segurança do Ateneu, aceitou receber 14 mil euros em vez dos 21.480 euros que lhe eram devidos: “Pelo presente contrato o primeiro outorgante e cedente, cede a totalidade do seu crédito acima referenciado ao segundo outorgante e cessionário pelo preço já recebido de €14.000,00 (quatorze mil euros) de que dá plena quitação”, lê-se no documento assinado pela duas partes. E foi também, por exemplo, o caso de Maria Vale, outra prestadora de serviços a quem o Ateneu Comercial devia 20.343 euros. Assinou o contrato de cessão de créditos, com Adriano Roberto Lourenço, por 16 mil euros.
“É uma situação que não é pouco usual em processos de insolvência. Alguém vai ter com o devedor e compra-lhe as dívidas, ficando sub-rogado aos seus direitos: o direito de crédito e acessórios”, explica-nos Nuno Líbano Monteiro, coordenador da área de contencioso da empresa de advogados PLMJ. Ou seja, ou recebe a dívida em dinheiro ou tem direito ao património. O património do Ateneu Comercial de Lisboa é o Palácio dos Condes de Povolide e todo o seu recheio: com um valor estimado em mais de 10 milhões de euros.
É então a partir deste ano que a Segurança Social, a EPAL, empresas privadas e outros prestadores de serviços, deixam de ter qualquer ligação ao Ateneu: recebem a sua dívida e saem de cena. A mandatária do Banif, credor de peso neste processo, preferiu não responder sobre a eventual venda do seu crédito: “A insolvência ainda está a correr e não posso adiantar nada por agora”, explica Marina Silveira. Mas, até ao momento em que o Observador consultou o processo, o Banif não tinha vendido a sua dívida. Da documentação, constava apenas a proposta de pagamento escrita e assinada por Joaquim Pereira Faustino e enviada para a entidade bancária e para o Tribunal do Comércio de Lisboa: “(…) regularizar o Contrato de Locação Financeira Imobiliária nº 901617 através de um Contrato de Cessão de Créditos com sub-rogação dos direitos com o associado da Insolvente”. Ou seja, terminar o contrato de leasing entre o Banif e o Ateneu através de um novo credor, que compra a dívida. Como a dívida resulta deste contrato específico, o banco não é obrigado a aceitar a proposta, explica o advogado Nuno Líbano Monteiro.
Afinal, há projeto imobiliário e o Ateneu vai sair dali
Enquanto o processo aguarda resolução em tribunal, Joaquim Faustino garante: “Todas as partes querem homologação (acordo). Até ao final deste ano acredito que o processo estará resolvido”.
Por agora, explica o administrador de insolvência, resta aguardar que o Tribunal do Comércio de Lisboa “convoque uma assembleia de credores”. Só depois do tal acordo em tribunal, e da dívida paga por “alguns mecenas que, claro, têm os seus interesses garantidos”, é que a proposta para o espaço onde atualmente vive o Ateneu Comercial de Lisboa se torna pública. “O passivo fica totalmente regularizado e é eleita uma direção. Com a garantia de que terá novas instalações, chave na mão, e continuando e mantendo os seus estatutos. Também com todos os bens mobiliários. Para já, prefiro não adiantar mais nada”, reitera o advogado.
Mas acaba por revelar mais tarde: “Há um projeto imobiliário e o Ateneu fica com a garantia de novas instalações. Há espaços que não vão ficar inseridos no novo projeto imobiliário, que vai ter mais metros do que atualmente.”
Não querendo fazer mais declarações sobre o tal novo projeto, o administrador esclarece apenas que, por enquanto, o Ateneu é gerido por Ricardo Roncon, “coordenador do espaço e a única pessoa a ser remunerada.” Perguntamos, ainda, para onde vai o dinheiro recebido dos alugueres: “Pagamos o Roncon e mantemos a higiene e limpeza. Também fizemos uma nova instalação de canos. E estamos a pagar mensalmente as rendas de leasing do Banif”.
No Ateneu Comercial de Lisboa, além do Primeiro Andar, há mais salas arrendadas. Não só para bares, mas para aulas de dança, ginástica, ou desporto. Anualmente, acontece ali o Vodafone Mexefest, o Festival Imigrarte ou eventos da Red Bull, mas o administrador de insolvência não quis esclarecer que valores estão envolvidos nem que tipo de contratos são celebrados. Perguntamos, por isso, à Música no Coração, produtora do Vodafone Mexefest, mas também ainda esperamos resposta, apesar da insistência.
Liliana, agora com 32 anos, e Teresa, com 31, dizem já ter outra experiência a lidar com o negócio e com os representantes legais do Ateneu. Por causa disso, e acreditando que está em causa a sobrevivência de uma instituição com 135 anos, criaram recentemente uma petição online, onde pedem que o Ateneu “mantenha e recupere todas as atividades culturais, recreativas e desportivas” a que se dedicou nos últimos anos e que “recupere os fins a que foi destinado pelos seus fundadores”.
Tudo tem vindo a morrer no Ateneu: não existe Universidade Sénior, Escola de Medicina Chinesa, campeonatos e aulas de yoga ou de natação. O xadrez e o jogo do pau são os únicos recentemente recuperados, a pedido dos sócios, depois de meses sem atividade. Passados três anos de ser declarado insolvente, o Palácio dos Condes de Povolide continua moribundo: “E em vez de recuperarem, querem acabar com as atividades que ainda existem. Se há algumas entradas de dinheiro, por que razão nenhuma dívida foi paga? Porque aparece um mecenas que quer comprar toda essa dívida e ficar com os direitos dos antigos credores?”, pergunta Teresa. A resposta certa não conseguimos saber, mas, diz Joaquim Faustino, “até ao final do ano tudo estará resolvido”. Resta saber como.