Enviado especial do Observador em Doha, Qatar

– Se não podes ir a um Campeonato do Mundo com uma cerveja, talvez tenhas um problema.

Stephen King não é propriamente o adepto mais conhecido de futebol do mundo mas também ele, através da conta oficial do Twitter (ainda com o certinho azul de autenticação), mostrou-se quase solidário com aquela que foi uma das últimas polémicas em torno deste Mundial. Ou melhor, não é propriamente uma “polémica” pela ação em si mas mais por aquilo que representa: no mesmo dia em que Gianni Infantino, presidente da FIFA, veio fazer uma declaração quase a rasgar as vestes para defender o Qatar e a organização desta prova, também o Qatar decidiu rasgar algo mas a parte do contrato em que era permitido vender álcool no estádio. É por isso que não vai haver Campeonato do Mundo? Não, longe disso. Mas é um pouco como dizia o escritor e argumentista, pode haver mas não é propriamente a mesma coisa sobretudo para quem torna mais real um mundo cheio de artificialidades como aquele que está montado em Doha e arredores: os adeptos.

Foi à boleia desta ideia que no dia 1 do Mundial decidimos interpretar esse papel quase como a fazer um guião de Stephen King, a começar logo pela forma de chegar ao longínquo Estádio Al Bayt (isto na ótica da realidade do Qatar porque nunca uma prova destas teve um recinto tão longe mas tão perto ao mesmo tempo). Sim, os jornalistas têm autocarros que vão do Media Centre para os palcos dos jogos. Sim, o Uber além de barato é muito rápido podendo depois apanhar algum trânsito nas artérias mais concorridas. Não, não fomos por aí e juntámo-nos aos milhares de adeptos que foram em regime de festa. E daí saíram os mandamentos para ser adepto num encontro no primeiro país do Médio Oriente a receber o evento.

Visitar as zonas mais concorridas dos adeptos é a melhor forma de conhecer pessoas

A diferença entre clubes e seleções é por si só grande na maneira com que se encara um adversário, mas no Mundial a facilidade para estabelecer contacto como se fosse tudo uma grande família aumenta de forma exponencial. Foi assim que, entre a zona de Corniche e West Bay cinco horas antes do início do jogo havia um pouco de tudo: galeses a colocarem creme porque o sol começava a escaldar, marroquinos que faziam uma roda para um amigo ficar em tronco nu para trocar de camisola, dois canadianos a andarem de patins em linha numa espécie de passadiço na área, um grupo de libaneses com uma coluna de música que passeava como se a sua equipa também estivesse ali para o Mundial, dois ganeses que andavam sobretudo perdidos naquela zona. Depois, os telefones trocam de mão para as habituais fotos numa zona preparada quase para o efeito que, do outro lado da estrada, mostrava arranha-céus ainda em construção mas com panos gigantes que faziam alusão ao Campeonato do Mundo e às suas principais figuras em 2022.

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Quem chega mostra ao que vem e porque vem, da cabeça aos pés (literalmente)

As estações de Corniche e West Bay começaram a receber alguns adeptos, as restantes que se seguiam foram recolhendo mais e mais pessoas com especial destaque para os equatorianos que estariam no encontro de abertura (de quando em vez surgiam pessoas com camisolas e chapéus alusivos ao Qatar mas sempre numa postura mais discreta). E não é preciso muito para se perceber que, neste caso em específico, são adeptos que não aparentam propriamente ter problemas ligados a dinheiro perante aquilo que ostentam, entre ténis da BMW e da Dior brancos. De Quito para Doha, uma viagem pode passar os 2.000 euros, sendo que, por uma questão de facilidade de vistos, um dos grupos que seguia para o estádio de metro preferiu passar primeiro pela Turquia. É logo ali que começam os primeiros cânticos que seriam habituais em qualquer jogo como “Equador, esta noite tens de ganhar”, alguns para irem colocando nas suas redes sociais.

Ir com tempo é a melhor estratégia – afinal, este estádio não é assim tão perto

Se o jogo inaugural fosse no Estádio Internacional Lusail, tudo ótimo: ainda antes do percurso até à última estação da linha vermelha, com o mesmo nome do recinto que vai receber a final e onde Portugal defronta o Uruguai no dia 28, é possível ver aquela que é a obra mais imponente de todas neste Mundial. Para o Al Bayt, além destas viagens de metro, é ainda necessário apanhar um autocarro, um táxi ou um Uber para cumprir uma viagem de mais de meia hora, com passagem por uma zona que tem o circuito de Fórmula 1, um campo de tiro ou um majestoso pavilhão que mais parece um estádio entre um completo deserto que envolve o cenário da partida de abertura. “Amigo, isto parece a 95”, diz Luis, fazendo alusão a uma estrada longa e sempre em frente que tem no país. É quase como se aquela tenda gigante tivesse sido colocada ali vinda de cima, tudo o resto à sua volta tivesse sido preparado de forma impecável para haver espaços verdes, locais para tirar fotografias e espaços para crianças mas a partir daí fosse deserto sem nada nem ninguém à volta.

A questão dos direitos humanos faz uma pausa quando começa a rolar a bola

“Críticas pela organização do Mundial aqui? Não temos problemas com isso, para nós o importante é que viemos para a festa. Vamos Equador!”, comenta Luis enquanto segue de pé no autocarro por ser mais fácil para continuar os seus lives no Instagram (aquelas notícias de que seria necessário ter cuidado com todas as fotografias e filmagens em Doha eram manifestamente exageradas). No caso deste equatoriano a questão nem se chega bem a colocar porque não tem como ponto de partida a questão da violação de direitos neste país. No entanto, e num aspeto transversal a adeptos de todos os país, aquilo que se percebe é que, pelo menos em dia de jogo, tudo o que é questão social é secundarizada perante a realidade de um jogo, algo que foi sempre a principal ideia transmitida não só pela organização mas como pela própria FIFA.

O cenário mais europeízado de todos: os arredores de um estádio de futebol

Havia quase uma aliança americana neste primeiro encontro do Mundial, com o Equador a receber o “apoio” de adeptos argentinos, mexicanos ou brasileiros para a estreia no Qatar. Também havia naquela zona que circunda o estádio muitos polacos e um grupo de portugueses, mas era da América Central e do Sul que vinha o maior “calor” entre a zona que, além da exclusão da cerveja, tinha de tudo um pouco: um palco com alguns DJ a passarem música, várias ativações de marca de carros, bancos ou operadoras telefónicas com jogos de acertar com a bola na baliza ou tentar reagir o mais depressa possível perante as luzes que iam aparecendo, espaços reservados para fumadores, muitas bancas que vendem snacks ou bebidas não alcoólicas. Ali, se alguém não soubesse não diria que estávamos no Qatar a não ser pela chegada de vários qataris com as habituais vestes e ténis ou sandálias nos pés que se viam melhor pelo vento que se começava a levantar.

O que é proibido entrar além do habitual? Isqueiros (mas há lá dentro)

Logo à chegada aos arredores do Estádio Al Bayt, vários voluntários vão distribuindo águas da marca que patrocina este Mundial (se não for dessa, para entrar no Media Centre por exemplo, o rótulo tem de ser retirado). No entanto, as mesmas são apenas para consumir cá fora perante o calor e as voltas habituais em busca do melhor ponto para tirar fotografias. Quando se entra, não há água, não há garrafas, não há aquelas coisas habituais como um qualquer controlo num detetor de metais num aeroporto, não há isqueiro – mas com essa explicação de que, no interior, os pontos para fumadores têm isqueiros pendurados para quem necessitar. Outra particularidade: quem leva para o estádio bandeiras ou tarjas de tamanhos acima do que é normal, como aconteceu com um grupo de equatorianos, entra por uma porta específica de acesso.

A diferença entre um adepto comum e um qatari a ver um jogo de futebol

A zona onde se concentrava a maioria dos adeptos do Equador começou a encher mais cedo do que todas as restantes, com as camisolas amarelas do equipamento dos sul-americanos a darem nas vistas também por esse efeito visual. E o espectáculo de luzes que acompanhou a atuação do DJ Grayson Repp, quase como se fosse uma discoteca sem pista onde só se pode dançar na zona das galerias, mostrou bem a forma diferente de viver todo o espectáculo que é um jogo de futebol: enquanto os visitantes, fossem eles do Equador ou de qualquer outra seleção, aproveitavam para cantar e dançar nos momentos que antecediam o jogo (neste caso até a cerimónia de abertura), os qataris continuavam sentados a abanar de quando em vez as pequenas bandeiras que tinham. Ovações só mesmo na chegada do atual e do antigo emir do país.

Pode uma claque de futebol ser “comprada”? Ai pode, pode… (ou puede, puede)

Havia uma grande dúvida em relação a uma zona grande bancada no primeiro piso atrás da baliza para onde atacava o Equador na primeira parte. Em todos os outros locais do Al Bayt os adeptos chegavam e pintavam as bancadas, ali pura e simplesmente não havia nem uma pessoa. E foi assim, com esse cenário, que as luzes se apagaram para a cerimónia de abertura, a tentar fazer a diferença pela recuperação de muito do que foram os Mundiais anteriores entre a mensagem de união, inclusão e tolerância entre todos e um espectáculo de luzes e fogo de artifício fora do normal. Após esse momento, num ápice, essa mesma bancada, que contaria com 2.000 a 3.000 pessoas, encheu por completo. Todos com a camisola do Qatar, algo também raro até então (à exceção das crianças, a maioria tinha cachecóis). Tinha chegado a claque dos anfitriões que, como percebemos depois, tinha pessoas de outros países que foram “convidadas” a juntarem-se para dar outro colorido e animação. Até alguns dos cânticos pareciam tirados de um qualquer estádio da Argentina…

O respeito de culturas, feito entre muita curiosidade e uma ou outra fotografia

A certa altura ainda antes do início do jogo, no meio da grande azáfama nos corredores que davam acesso às bancadas, algumas artérias começaram a ficar com mais pessoas mas com uma explicação: em alguns desses espaços, adeptos qataris estavam a fazer a sua oração, com o calçado colocado de parte. Daquilo que nos foi possível ver, entre a muita curiosidade que essa manifestação de fé criou entre quem não está habituado a essa realidade e uma ou outra imagem para documentar o momento, esse espaço e momento foram respeitados a 100% não só com a não passagem de pessoas mas também por um maior silêncio em respeito do momento. Quando a oração acabou, todos começaram a circular e a ir para os seus lugares.

Segurança é coisa que não falta, o problema são mesmo os números megalómanos

Ao contrário do que aconteceu sobretudo num dos espaços de Fan Festival onde era possível ver o jogo entre o Qatar e o Equador, com a lotação esgotada e muitas pessoas a tentarem forçar a entrada no recinto que levou a que a polícia local tivesse tomar medidas mais apertadas (gerando pânico em determinadas fases pela confusão que se gerou, como foi sendo relatado nas redes sociais por alguns dos presentes), nos estádios a segurança é apertada e aglomerados só mesmo aqueles que são permitidos na festa à volta do recinto antes do jogo. No final, milhares de polícias esperavam pelos autocarros de regresso a Doha, sendo que nesse momento, num parque de estacionamento, com tudo organizado em grupos que estavam sentados no chão, foi possível perceber o real número de efetivos destacado. Já a nível de números, as coisas não correram assim tão bem. Num estádio com capacidade para 60.000, foram anunciados mais de 67.000 presentes. Pior: no segundo tempo, quando a assistência foi dita nos altifalantes, milhares já tinham ido embora…