Cristiano Ronaldo mudou. E não é de hoje, nem deste Euro. Os seus críticos dizem que mudou para pior, que o que ganhou em músculo perdeu em velocidade e técnica, que se “endeusou” e vive mais da equipa do que para ela, mas vão ainda mais longe: dizem que se Ronaldo não tivesse marcado os golos todos que marcou, nunca teria vencido três vezes a Bola de Ouro.

Os que o admiram dizem que está melhor do que nunca, mais refinado na técnica de receção, passe ou remate, que é cada vez menos de driblar só para inglês ver, e garantem que Ronaldo é hoje mais inteligente (daí os tantos golos que marca) no posicionamento em campo e na leitura dos vários momentos que uma partida tem, não se desgastando em vão com sprints e mais sprints sem aproveitamento prático — ou seja, golos seus e assistências para golos dos outros.

Uns e outros, críticos e admiradores, têm argumentos que são verdadeiros. E argumentos que não são. Mas não é isso que importa aqui discutir. Antes, discutamos a transformação de Ronaldo; a física e, sobretudo, a mental. É por causa dela que Ronaldo não é mais (para o bem e para o mal) o futebolista que era no Euro 2004, aos 19 anos; é por causa dela que tão criticado tem sido em França, quer por adversários (como o selecionador islandês, Lars Lagerback) que o acusam de falta de fair-play, quer pela imprensa estrangeira que o apelida de prima donna na seleção. Num artigo de opinião publicado no Guardian, o jornalista Paul Doyle, ainda a propósito das críticas de Ronaldo à seleção da Islândia (Ronaldo acusou-a de defender em excesso e de festejar o empate “como se tivesse vencido o Euro”) foi devastador: “Cristiano Ronaldo é que tem uma mentalidade pequena, não os jogadores da Islândia.”

É tudo? Não. Em Espanha, o El País, igualmente num artigo de opinião, foi crítico do capitão português. “Nunca ninguém na história do futebol combinou tanta grandeza como jogador com tanta tontice como pessoa”, afirmou o jornalista John Carlin sobre Cristiano Ronaldo.

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Ronaldo vs. Payet (ou o “melhor do mundo” vs. o melhor do Euro 2016)

Agora, falemos deste Euro. É que Cristiano Ronaldo ainda continua a zeros quanto a golos em França. E quando ele não molha a sopa, e não sendo já um futebolista que “entretém” as bancadas com dribles e sprints, é criticado. Severamente. Mas Ronaldo tenta. Até agora, em apenas duas partidas e 180 minutos jogados, fez 20 remates à baliza. Acha pouco? São mais remates do que nove seleções fizeram até aqui: Itália, País de Gales, Áustria, Turquia, Albânia, Irlanda do Norte, República Checa, Islândia e Suécia. E o penálti que falhou diante dos austríacos nem contra como “remate à baliza”.

Sim, os livres não lhe andam a correr bem. Aliás, Ronaldo tem o pior aproveitamento de sempre em Europeus e Mundiais (leva já sete competições internacionais disputadas desde 2004) neste capítulo. Em 36 livres (sim, trinta-e-seis!) acertou 13 vezes na barreira, 12 vezes nem na baliza acertou, 10 oportunidades foram à baliza mas os guarda-redes defenderam, acertando ainda uma vez no poste. Golos? Zero. Estará na hora de deixar Quaresma, Nani ou Raphael Guerreiro (que até têm aproveitamento nos respetivos clubes com livres) marcarem na sua vez?

France's forward Dimitri Payet celebrates scoring France's second goal during the Euro 2016 group A football match between France and Romania at Stade de France, in Saint-Denis, north of Paris, on June 10, 2016. / AFP / KENZO TRIBOUILLARD (Photo credit should read KENZO TRIBOUILLARD/AFP/Getty Images)

O francês Dimitri Payet é o melhor do Euro 2016 segundo a UEFA. Até agora, o extremo do West Ham marcou dois golos, fez uma assistência e encantou tudo e todos (Crédtiso: KENZO TRIBOUILLARD/AFP/Getty Images)

Mas as estatísticas de Cristiano Ronaldo no Euro 2016 não se resumem só aos livres que marcou diante da Islândia e da Áustria. Nem tão pouco aos incontáveis remates que fez. O melhor é comparar os seus números com os de outro futebolista que, apesar de diferente de Ronaldo, também atua em pedaços de relvado que são os do português: o ataque. Dimitri Payet é, até aqui, o melhor jogador do Euro 2016 — quem o diz é a própria UEFA, que o considerou por duas vezes (contra a Roménia e a Albânia) o melhor em campo. Os segundo e terceiro melhores são, respetivamente, Gareth Bale e Toni Kroos, ambos colegas de Cristiano Ronaldo no Real Madrid.

Mas terá Payet sido tão superior assim a Ronaldo? Golos, tem dois e Ronaldo nenhum. Ok. Mas observemo-los ao pormenor…

Ambos têm dois jogos disputados como titulares, mas o francês já entrou em três partidas – Payet foi suplente utilizado no terceiro jogo da França, frente à Suíça, tendo por isso 207 minutos jogados e Ronaldo apenas 180. Payet, do West Ham, já se sabe, tem dois golos marcados e Ronaldo nenhum, mas tem também uma assistência para golo neste Europeu e Ronaldo… nenhuma. Aí, está à frente, ponto. Quanto a remates à baliza durante cada jogo, Ronaldo tem uma média impressionante de 10, enquanto Payet só tem 2,7 remates – ninguém faz “2,7 remates”, mas as estatísticas têm destas coisas. Até aqui, Ronaldo ganhou um duelo aéreo e Payet, que é “rodinhas baixas”, nenhum; mas isso também não aquece nem arrefece este duelo, certo?

Ah e tal, mas o Ronaldo não passa a bola a ninguém e o Payet é um voluntarioso, dirão. Errado. Ronaldo, quando passa, acerta em 83,5% das tentativas, enquanto o francês “só” 80%. E quantos passes é que um e outro fazem em média? Ronaldo 33, Payet 41,7. Mas o francês tem dois pontas-de-lança (Griezmann e Giroud) a desgastarem-se por ele na frente, Ronaldo não. Nos cruzamentos e nos passes, digamos, “açucarados” (aqueles que dão, ou quase, em golo), Payet é esmagador: faz 3,3 cruzamentos por jogo e 4,7 passes para golo. Ronaldo faz menos de um cruzamento (0,5) por jogo e apenas 1,9 passes para golo.

Portugal's forward Cristiano Ronaldo reacts after he missed to score a penalty during the Euro 2016 group F football match between Portugal and Austria at the Parc des Princes in Paris on June 18, 2016. / AFP / MARTIN BUREAU (Photo credit should read MARTIN BUREAU/AFP/Getty Images)

Cristiano Ronaldo espera e desespera por um golo. Só um. Mas ninguém o pode acusar de não tentar… (Créditos: MARTIN BUREAU/AFP/Getty Images)

Uma coisa é certa, e isso já foi batido e rebatido: Ronaldo não dribla mais como antes. Em França fez 0,5 dribles por jogo, enquanto Payet fez 2,7. E defensivamente? Bom, defensivamente nem um nem outro são lá “grande coisa”. Mas também não é isso que se lhes pede. Ronaldo fez uma falta a defender neste Europeu e um corte em terrenos defensivos, enquanto Payet faz menos faltas (0,3) defensivas e corta menos bolas (também 0,3).

Contas feitas, Payet é melhor. E é o melhor do Euro, sim. Mas Ronaldo, o tão criticado Ronaldo, não lhe é tão inferior assim. É só o “ketchup” começar a sair.

As apostas com Ferguson que transformaram o driblador… num goleador

Mas voltemos ao começo da conversa, e falemos da tal “mudança”. Esta começou ainda no Manchester United e teve Alex Ferguson por mentor. Quando Cristiano Ronaldo chegou a Old Trafford vindo do Sporting, no verão de 2003, era um rapaz franzino, de apenas 18 anos, com a puberdade ainda a “enfeitar-lhe” o rosto de acne, mas veloz, velocíssimo, esguio, com uma técnica “ziguezagueante”, imprevisível e um manancial de fintas capaz de deixar qualquer defesa com a cabeça à roda. E não precisou de muito tempo para mostrar na Premier League aquilo que mostrou a Alex Ferguson na inauguração do estádio José Alvalade, a 6 de agosto de 2003, uma noite “endiabrada” (John O’Shea que o diga…) que levou o escocês a pagar prontamente 15 milhões de euros pela sua contratação ao Sporting.

Manchester United's new signing Cristiano Ronaldo makes his debut in front of the home fans during the game against Bolton Wanderers in the first Premiership match of the season at Old Trafford in Manchester 16 August 2003. Ronaldo came on in the second half and immediately made an impact by winning a penalty. Manchester United won the game 4-0. AFP PHOTO Adrian DENNIS (Photo credit should read ADRIAN DENNIS/AFP/Getty Images)

Cristiano Ronaldo chegou ao Manchester United no verão de 2003. E mudou com Alex Ferguson. Mudou muito. Fisicamente e no estilo de jogo: tornou-se um goleador (Créditos: ADRIAN DENNIS/AFP/Getty Images)

Apenas 10 dias mais tarde, a 16 de agosto, Cristiano Ronaldo entrou para o lugar de Nicky Butt aos 61′ do jogo contra o Bolton, na primeira jornada do campeonato inglês. Nas costas trazia o mítico sete, que antes dele foi de Best, Cantona ou Beckham. Não lhe pesou o misticismo do número e logo naquela tarde fez por honrá-lo. O Manchester United vencia por 1-0 quando entrou, mas com ele em jogo acabaria por marcar mais três golos (Ronaldo “ganhou” uma grande penalidade) e continuar sem sofrer nenhum. 4-0 no final. Ainda hoje, 13 anos depois, os laterais Nicky Hunt e Bruno N’Gotty (já retirados das andanças do futebol inglês) têm pesadelos com Ronaldo à noite. Destroçou-os, pobres coitados.

https://www.youtube.com/watch?v=-IyXxoyyFr8

Foi assim durante a temporada de 2003/2004 e a seguinte. Era titular de caras no Manchester United, um extremo à esquerda ou à direita, driblador como poucos, mas nem duas mãos-cheias de golos conseguia marcar numa temporada inteira. Aí, Alex Ferguson resolveu provocá-lo. Ou melhor, provocaram-se de parte a parte, apostando que Cristiano Ronaldo conseguiria ultrapassar a dezena de golos na época seguinte, a de 2005/2006. Aposta ganha. E voltaram a apostar na seguinte: o madeirense teria que marcar mais de vinte em 2006/2007. E marcou. Cristiano Ronaldo gostava de ser desafiado. E vencer os desafios a Ferguson. Mas o seguinte era tremendo: como poderia Ronaldo marcar 30 golos numa temporada só? A verdade é que “poderia”; marcou 42 (!) golos em 2007/2008. Estava consumada a mudança.

Apesar de ser extremo desde sempre, deixou a ala e começou a ver-se mais próximo do centro, atrás do ponta-de-lança. Nascia então um avançado que tinha fome de área e saciava-a com golos. Acabaram-se para ele, pouco a pouco, os dribles de um-contra-um, todo o corpo de Ronaldo se transformou, ficou mais potente para suportar o contacto físico com os defesas centrais e médios defensivos (mais corpulentos do que os laterais que o marcavam no começo), perdendo com isso elasticidade e até alguma velocidade de ponta – o que é diferente de dizer que se tornou “lento”. Cristiano Ronaldo era um goleador.

https://www.youtube.com/watch?v=Gqs7dDG77S8

Foi transferido para o Real Madrid no verão de 2009 por 94 milhões de euros. Nunca, à época, um clube tinha desembolsado tanto dinheiro por um futebolista. Mas Ronaldo, chegado ao Santiago Bernabéu com 25 anos e até hoje, aos 31, pagou a fatura em golos: tem uma média superior a 50 (!) golos por época, sendo que só Leonel Messi tem uma média de golos assim no futebol moderno. Coisa pouca.