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Uma estrela da música instala-se em Lisboa

Desde que, no Verão de 2017, uma estrela de primeira grandeza da música mundial, escolheu Lisboa como local de residência, a opinião pública e os media portugueses viveram num estado de permanente frisson: ela colocara imagens da cidade na sua conta de Instagram, ela elogiara o peixe de Lisboa no Twitter, ela jurava que “a energia de Portugal é tão inspiradora. Aqui, sinto-me muito criativa e viva”, ela fizera-se fotografar para a Vogue italiana em cenários lisboetas, ela cantara com Celeste Rodrigues, o seu filho estava inscrito na formação de futebol do Benfica, ela achava “extraordinária a quantidade de óptimos músicos que escuto em Portugal”, ela declarava-se em pulgas por mostrar ao mundo quão inspiradora Lisboa estava a ser para ela e garantia que o seu próximo álbum estaria impregnado de fado.

Quem esteja a par do trajecto de Madonna Louise Ciccone e do cuidado que ela põe na encenação desse misto de instalação multimédia e empreendimento comercial que é a sua vida (veja-se a sua fase de “aristocrata rural inglesa”, quando viveu numa sumptuosa mansão georgiana no Wiltshire) e saiba que ela possui numerosas casas de luxo espalhadas pelo mundo (nomeadamente em Londres, Nova Iorque e Beverly Hills), não terá ficado surpreendido quando, no início de 2019, começaram a circular rumores de que se teria enfadado de Portugal e estaria na iminência de rumar a outras paragens – apesar das facilidades de parqueamento que lhe foram concedidas pela edilidade! Entretanto, uma recusa de autorização camarária para introduzir um cavalo no salão de um palacete em Belas, na rodagem de um videoclip (ver Madonna acusa Portugal de ingratidão), parece ter estilhaçado irremediavelmente o idílio lusitano de Madonna, com a entertainer a declarar “Já dei tanto a este país e quando peço um favor simples, de facto para mostrar Portugal ao mundo, a resposta que obtenho é negativa” e a culpar o agente pela peregrina ideia de se instalar nestas paragens.

Se dermos crédito a Vincenzo Bichi, núncio papal em Lisboa, a chegada de Domenico Scarlatti, há 300 anos, terá também causado palpitações e terá sido aguardada com impaciência, embora sem causar comoção comparável à suscitada pela “rainha da pop”, uma vez que se tratava de homem de natureza assaz discreta e não possuía conta de Instagram, Twitter ou Facebook.

Domenico Scarlatti por Domingo Antonio Velasco, 1738

Na verdade, talvez apenas D. João V estivesse ansioso por ter junto de si o homem que iria contribuir (julgava ele) para o seu sonho de fazer a capital portuguesa rivalizar em esplendor com Roma e, em particular com a Santa Sé: entre tanto compositor de prestígio então em actividade em Itália, o rei português conseguira aliciar o director musical da Cappella Giulia, ou seja, o coro da Basílica de São Pedro – o equivalente musical setecentista à contratação de Messi pelo Real Madrid.

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Interior da basílica de São Pedro, por Giovanni Paolo Panini, c.1756

Scarlatti assinara os documentos de renúncia ao prestigiado cargo de direcção da Cappella Giulia a 7 de Setembro de 1719 e era aguardado em Lisboa em Outubro. Porém, não é certo que Scarlatti se tenha encaminhado directamente para Lisboa e consta que terá programado ir a Londres apresentar a sua ópera Amor d’un ombra e gelosia d’un’aura (também conhecida como Narciso), no King’s Theatre, evento de que não há vestígio – quem esteve em Londres em 1719 foi o seu tio (e também compositor) Francesco Scarlatti, o que pode fazer supor que Domenico poderia ter planeado juntar-se ao tio (que, aliás, acabaria por estabelecer-se nas Ilhas Britânicas). Mesmo que Domenico Scarlatti não tenha ido a Londres, a verdade é que só chegou a Lisboa, por via terrestre, vindo de Madrid, a 29 de Novembro de 1719 (conforme relata o núncio Bichi).

Ficaria por cá até 1729, e o motivo da sua partida não se prendeu com a recusa de autorização para fazer entrar cavalos em palacetes nem gerou recriminações azedas e acusações de ingratidão. Na verdade, a relevância da estadia lisboeta de Scarlatti, que não tinha caprichos de pop star e cultivava um perfil discreto, talvez não tenha sido inteiramente apreendida na época. Porém, a três séculos de distância, pode afirmar-se: foi a única ocasião da história em que Portugal acolheu como residente um músico de primeira grandeza – por muito que isto custe a admitir aos fãs de Madonna, Cliff Richard e Noah Lennox.

Um cento de diabos

Atendendo ao lugar de relevo que ocupa na história da música, é pouco o que se sabe sobre Domenico Scarlatti (1685-1757) para lá da música que nos legou. Uma das mais vividas impressões que dele nos foi transmitida provém de Thomas Roseingrave (c.1690-1766), um compositor, cravista e organista irlandês que, em 1710, foi enviado para Itália com uma bolsa da Catedral de St. Patrick, de Dublin, a fim de “aperfeiçoar a sua formação na arte musical”. Conta Roseingrave que durante a sua estadia em Itália foi convidado, na qualidade de virtuoso estrangeiro, para uma tertúlia na casa de um nobre, onde lhe foi solicitado que demonstrasse os seus dotes no cravo. Roseingrave confessa que “sentindo o meu ânimo e os meus dedos em melhor forma do que usual, dei largas à minha inspiração e fiquei convencido, pelo aplauso recebido, de que produzira favorável impressão entre os circunstantes”.

Após a apresentação de uma cantata, alguém solicitou a um jovem de aspecto grave, todo vestido de negro, que, num canto, acompanhara, discreta e atentamente, o desempenho de Roseingrave, que também se sentasse ao cravo. E Roseingrave conta que foi como se “um cento de diabos” tomasse conta do instrumento. A invenção musical e execução do jovem de negro extravasava de tal modo tudo o que Roseingrave ouvira até então e apequenava de tal forma a sua prestação, que o irlandês confessou que “se tivesse à mão um instrumento adequado, teria decepado os meus próprios dedos”. Não tomou tão drástica medida mas consta que esteve um mês sem tocar num teclado. Não tardou a travar amizade com o jovem de negro, tendo voltado a cruzar-se com ele em Nápoles e Roma.

[Um cento de diabos à solta: Sonata K.517 (Prestissimo) de Domenico Scarlatti, por Andreas Staier (Deutsche Harmonia Mundi/Sony Classical)]

Itália: 1685-1719

1685 foi ano de colheita excepcional no que a compositores diz respeito, já que viu nascer Johann Sebastian Bach, Georg Friedrich Händel e Domenico Scarlatti. Este último veio ao mundo a 26 de Outubro, em Nápoles, sendo o sexto dos dez filhos de Antonio Anzalone e de Alessandro Scarlatti (1660-1725).

Baía de Nápoles, com o Vesúvio fumegando em fundo, por Caspar van Wittel, c.1700

Alessandro nascera em Palermo, na Sicília e, após ter estado em Roma ao serviço da (voluntariamente exilada) rainha Cristina da Suécia, assumira no ano anterior o posto de mestre de capela do vice-rei de Nápoles – que pertencia então à coroa espanhola. O cargo de mestre de Capela fora obtido, dizem as más-línguas, através de cunha de sua irmã, que era cantora de ópera e amante de um poderoso nobre napolitano.

O tio de Domenico, Francesco Scarlatti (1666-c.1741), também era compositor, embora tenha sido completamente ofuscado pelo irmão, que foi uma das mais influentes e prolíficas personalidades da sua geração: é considerado o “pai” da ópera napolitana (e responsável pela deslocação do centro de gravidade da ópera italiana de Veneza para Nápoles) e foi autor de uma centena de óperas, de seis centenas de cantatas de câmara e de apreciável quantidade de música sacra – 35 oratórias, uma dezena de missas, cerca de 70 motetos. Também Domenico teve um irmão compositor, Pietro Filipo (1679-1750), e também o nome deste está hoje esquecido, obliterado pelo renome alcançado pelo primeiro.

Alessandro Scarlatti, por autor anónimo

Não é claro quem terão sido os professores de música de Domenico, embora seja provável que tenha recebido ensinamentos do pai e do mestre napolitano Gaetano Greco (c.1657-1728). Seja como for, Domenico teve um desenvolvimento musical precoce e aos 15 anos foi nomeado organista e compositor da capela do vice-rei, para a qual compôs, em 1703-04 (com 18-19 anos) as óperas Ottavia ristituita al trono e Giustino e adaptou Irene, de Carlo Francesco Pollarolo.

[“Se l’alma non t’adora”, de Ottavia ristituita al trono, a primeira ópera de Domenico Scarlatti, por Patrizia Ciofi (soprano), Anna Bonitatibus (mezzo-soprano) e Il Complesso Barocco, com direcção de Alan Curtis, do álbum Lettere amorose (Virgin Veritas)]

A Guerra da Sucessão de Espanha, que estalou em 1701, repercutiu-se nas finanças do reino de Nápoles e na remuneração dos músicos da corte, levando Alessandro a mudar-se para Roma e a compor óperas para Ferdinando III de’ Medici, Grão-Duque da Toscânia e eminente patrono da música. Foi para a corte florentina de Ferdinando III que Alessandro tentou remeter o filho, em 1705, acompanhado por uma carta de recomendação para Grão-Duque que rezava assim: “Afastei-o à força de Nápoles, pois embora haja aqui lugar para o seu talento, este não é adequado a este lugar. Também não o quero em Roma, onde a música não tem tecto e vive de mendigar. Este meu filho é uma águia cujas asas se desenvolveram. Não deve ficar a mandriar no ninho e eu não devo atrapalhar o seu voo”.

Ferdinando de’ Medici e os seus músicos, por Anton Domenico Gabbiani, c.1685-90

Domenico não conseguiu um cargo em Florença e foi até Veneza (quiçá na companhia do pai), onde terá tido aulas com Francesco Gasparini. Em 1707 estava de regresso a Roma, onde o pai se tornara mestre de capela do poderoso (e melómano) cardeal Pietro Ottoboni (sobrinho do papa Alexandre VIII, que tinha o mesmo nome). Pouco depois, Alessandro seria nomeado mestre de capela em Santa Maria Maggiore, uma das mais importantes igrejas de Roma, tendo Domenico trabalhado como seu assistente, até que, em 1709, se tornou mestre de capela da rainha Maria Casimira da Polónia, que, após a morte do esposo, Jan III Sobieski, em 1696, se instalara em Roma, com uma pequena corte, primeiro no Palazzo Chigi-Odescalchi e, a partir de 1702, no Palazzetto Zuccari

Maria Casimira, por Jan Tricius, década de 1670

Vale a pena realçar a coincidência de, como Alessandro, Domenico ter estado ao serviço de uma rainha exilada em Roma, como se estivesse fadado a seguir as pisadas do pai. Tal como Cristina da Suécia, Maria Casimira foi uma mecenas das artes e manteve relações próximas com o Vaticano – embora dela nenhum papa tenha dito o que um disse de Cristina: “uma rainha sem reino, uma cristã sem fé e uma mulher sem vergonha”.

O Palazzetto Zuccari

Em 1704, Maria Casimira providenciara a construção de um pequeno teatro de ópera no Palazzetto Zuccari e foi para representações privadas neste que Domenico Scarlatti compôs sete óperas, entre as quais Orlando (1711), Tolomeo ed Alessandro ovvero La corona disprezzata (1711), Tetide in Sciro (1712), Ifigenia in Aulide (1713) e Ifigenia in Tauride (1713), ao que consta num estilo convencional, seguindo os moldes da opera seria definidos nas décadas anteriores por Alessandro.

[“È un grave martire”, da ópera Tolomeo ed Alessandro, de Domenico Scarlatti, por Klara Ek (soprano, no papel de Seleuce) e Il Complesso Barocco, com direcção de Alan Curtis (Archiv)]

Entretanto, Domenico Scarlatti travou conhecimento com o alemão Georg Friederich Händel, que, entre 1706 e o final de 1709, teve profícua estadia em Itália, sob o nome italianizado de Giorgio Federico Hendel – ou “il caro sassone”, como lhe chamavam os fãs italianos (ver Handel: o aluno que em Itália se fez mestre). Um dos mecenas romanos de Händel, o já mencionado cardeal Pietro Ottoboni, terá promovido, no seu palácio, um “duelo” musical entre os dois “jovens leões” do teclado, que resultou em empate, tendo Händel sido considerado vencedor no órgão e Scarlatti levando a melhor no cravo.

O cardeal Pietro Ottoboni (1667-1740), por Francesco Trevisani, c.1689

Em 1714, Maria Casimira trocou Roma por França e Domenico entrou ao serviço de Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses, o 3.º Marquês de Fontes, embaixador de Portugal junto da Santa Sé entre 1712 e 1718 e responsável pela sumptuosa embaixada que D. João V enviou em 1716 ao papa Clemente XI. A primeira obra que Domenico Scarlatti compôs para o Marquês de Fontes (e futuro Marquês de Abrantes) foi a serenata Applauso genetliaco, comemorando o nascimento “del signor infante di Portogallo” (o futuro rei D. José), não adivinhando Scarlatti que acabaria por conhecer de perto este príncipe de um país distante.

O 3.º Marquês de Fontes, por autor anónimo

Em 1715, Domenico, que já desempenhava funções de vice-mestre da Cappella Giulia, na Basílica de São Pedro, foi promovido a mestre, após a morte, no final de 1714, do anterior detentor do cargo, Tommaso Bai. Embora a sua produção neste período tenha sido essencialmente na vertente sacra – nomeadamente um notável Stabat Mater a 10 vozes –, continuou a compor óperas, como Narciso (1714) e Amleto (1715) e um intermezzo (ópera cómica) La Dirindina (1715), que foi retirado de cena por o texto ser demasiado licencioso. A sua derradeira obra no domínio da opera seria foi Berenice, regina d’Egitto (1718).

[I parte do Stabat Mater a 10 vozes de Domenico Scarlatti, pelo Macadam Ensemble, ao vivo na Chapelle de l’Immaculée, Nantes, 2013]

Terá sido o Marquês de Fontes a servir de elo na contratação de Domenico Scarlatti para a corte de D. João V, nomeadamente ao dar a ouvir à corte portuguesa as serenatas que encomendara a Domenico e cujas partituras trouxera no regresso a Lisboa, em 1718. A verdade é que entre Lisboa e Roma havia então um intenso fluxo cultural, com pintores, escultores, arquitectos e compositores activos em Roma a serem chamados a contribuir para enriquecer o meio cultural e artístico português ou a promover a imagem da coroa portuguesa em Roma.

D. João V por Domenico Duprà, em 1717, num quadro que celebra a vitória de uma coligação de nações católicas sobre os otomanos, na batalha naval do cabo Matapan

De qualquer modo, é intrigante que Domenico Scarlatti tenha aceitado trocar um dos mais prestigiados postos no centro do mundo católico por uma corte de um país que, embora vivendo na abundância do “ouro do Brasil”, não deixava de ser periférico. Mas a relação entre Domenico e o pai parece ter sido tensa e embora Alessandro tivesse escrito na carta a Ferdinando de’ Medici que não pretendia atrapalhar o voo da sua “águia”, terá mantido apertado controle sobre a carreira do seu talentoso rebento – é sintomático que só em 1717, aos 32 anos, Domenico tenha obtido a emancipação formal da autoridade paterna. É possível que Scarlatti tenha aceitado a proposta de se mudar para a capital de um país distante para se libertar do pai, que, em 1707, reassumira a direcção da capela do vice-rei de Nápoles, mas que, a partir de 1717, passara a alternar a carreira entre Nápoles e Roma. Em Lisboa, Domenico não só não estaria sujeito ao controlo paternal, como deixaria de ver as suas obras confrontadas, a cada momento, com as do seu famosíssimo progenitor.

Uma vista de Roma na primeira metade do século XVIII, com a Basílica de São Pedro ao fundo, ao centro, e o castelo Sant’Angelo à esquerda, por Antonio Joli (1700-1777)

Portugal: 1719-1729

Na corte portuguesa, Domenico Scarlatti – ou Domingos Escarlate, como se tornou conhecido por cá – parece ter assumido funções de “compositor régio”, mas não (como por vezes se afirma) de mestre de capela, lugar que estava formalmente atribuído ao padre Francisco Carvalho, quando da chegada do italiano a Lisboa e assim continuou nos anos seguintes. Scarlatti foi também encarregado da educação musical – e em particular da instrução no cravo – de D. António de Portugal (1695-1757), irmão mais novo do D. João V, e da princesa Maria Bárbara de Bragança (1711-1758), filha de D. João V e Maria Ana da Áustria.

Maria Bárbara de Bragança, por Domenico Duprà, 1725

D. António tocava cravo e pianoforte, instrumento então ainda pouco difundido, e parece ter sido um executante suficientemente distinto para que o compositor Lodovico Giustini (1685-1743) lhe dedicasse a primeira colecção de peças destinadas especificamente ao pianoforte de que há conhecimento: as 12 Sonate da cimbalo di piano e forte detto volgarmente di martelletti, publicadas em Florença em 1732.

D. António de Bragança, c.1740

Nas suas novas funções, Scarlatti deixou de vez a ópera e compôs sobretudo serenatas para a corte e música sacra para a Patriarcal de Lisboa,. Entre as obras associadas à Patriarcal estão dois Te Deum, um a oito vozes e outro a 16 vozes (repartidas por quatro coros), que se sabe ter sido apresentado a 31 de Dezembro de 1721 na Igreja de São Roque, dando cumprimento à tradição setecentista de fazer cantar um Te Deum em acção de graças pelo que de bom acontecera ao longo do ano (que foi retomada no século XXI pelo Coro Gulbenkian). O repertório da Patriarcal era de pendor conservador, mesclando compositores romanos do final do Renascimento (Gregorio Allegri, Giovanni Pierluigi da Palestrina), repertório seiscentista ibérico (Frei Manuel Cardoso, Mateo Romero) e compositores italianos do início do período barroco (Pietro Paolo Bencini, Orazio Benevoli, Giacomo Carissimi, Alessandro Grandi) e as obras que Scarlatti compôs para a Patriarcal acomodam-se a este relativo conservadorismo, não diferindo no estilo das obras que compusera para a (musicalmente conservadora) Cappella Giulia, pelo que não é de excluir que Scarlatti tenha reciclado para a Patriarcal alguma da sua produção romana.

[Laetatus sum, um dos motetos de Domenico Scarlatti cantados na Patriarcal de Lisboa, numa interpretação do ensemble Key2Singing (Aliud Records)]

As serenatas eram um híbrido entre cantata e ópera, com as vozes solistas encarnando personagens mas sem acção cénica, destinado a abrilhantar cerimónias da corte, nomeadamente noivados, nascimentos e aniversários. Há registo da estreia no Paço da Ribeira de pelo menos 11 serenatas de Scarlatti entre 1720 e 1728, algumas das quais se perderam – a mais antiga que sobreviveu foi La contesa delle stagioni (A contenda das estações), estreada a 7 de Setembro de 1720.

[Recitativo “Ei vuol che le stagioni” e ária “Sotto rozze e fiere spoglie” (Inverno), recitativo “Non t’avanzar cotanto” e ária “Alle brine del tuo crine” (Primavera), da serenata de La contesa delle stagioni, por Vera Marenco (contralto, Inverno) e Silvia Piccollo (soprano, Primavera) e Il Concerto Ecclesiastico, com direcção de Luca Franco Ferrari (Bongiovanni)]

Scarlatti terá iniciado em Lisboa – quanto mais não fosse por inerência do seu mister de professor de cravo – a composição de sonatas para cravo, que viriam a tornar-se na faceta mais substancial, inovadora e duradoura da sua obra.

Quer na corte quer na Patriarcal, Scarlatti trabalhou ao lado de Carlos Seixas (1704-1742), um coimbrão que se mudara para Lisboa pouco depois da chegada do italiano e que, apesar da sua juventude, desempenhava o cargo de organista em ambas as instituições e era também exímio cravista. Pouco ou nada se sabe da relação entre os dois músicos, embora tenham sido aventadas algumas hipóteses especulativas, como a de Seixas ter sido o responsável por dar a conhecer ao italiano a música popular portuguesa.

Carlos Seixas, num retrato póstumo de 1742

Em Janeiro de 1723, Maria Bárbara, que tinha então 12 anos de idade, foi formalmente prometida em casamento a Fernando, Príncipe das Astúrias (1713-1759) e filho de Filipe V de Espanha e Maria Luísa de Sabóia, que tinha então nove anos. Foi para celebrar o acordo pré-nupcial entre os príncipes, firmado a 11 de Janeiro de 1728, que Scarlatti compôs a serenata Festeggio armonico, a sua derradeira obra no género de que há conhecimento.

Fernando, Príncipe das Astúrias (futuro Fernando VI de Espanha), por Jean Ranc, c.1725

Porém, quando a serenata foi executada, Scarlatti não estava em Portugal mas em Roma, onde, em Maio desse ano, casou com Maria Caterina Gentili. Terá sido a terceira e última visita de Scarlatti ao país natal, onde estivera em 1724 – em Roma – e em 1725 – em Nápoles, onde terá estado pela última vez com o pai (que faleceria a 22 de Outubro desse ano). Algumas fontes indicam que terá também visitado Paris e Londres em 1724 e/ou 1725, mas paira a incerteza sobre as datas, trajectos e motivações da maior parte das viagens de Scarlatti. O casamento de Fernando e Maria Bárbara teve lugar, a 19 de Janeiro de 1729 – na verdade, um duplo casamento, já que na mesma ocasião (que ficou conhecida como “A troca das princesas” e teve lugar sobre o Rio Caia, entre Elvas e Badajoz) se casaram também a infanta espanhola Mariana Victoria e o Príncipe do Brasil (o futuro rei D. José I). Por altura deste momentoso evento, Scarlatti ainda se encontrava ausente do país, tendo regressado a Lisboa apenas a 27 de Setembro.

Maria Bárbara de Bragança, por Jean Ranc, c.1729

Pouco depois, estava de partida para Sevilha, acompanhando a sua discípula Maria Bárbara, pelo que, pelas contas de João Pedro Alvarenga no artigo Domenico Scarlatti, 1719-1729: O período português (publicado em 1998 na Revista Portuguesa de Musicologia), a estadia efectiva do compositor em Portugal se ficou, descontadas as viagens ao estrangeiro, por quatro anos e meio a cinco.

Os anos entre 1719 e 1729 parecem ter marcado uma alteração decisiva na orientação de Scarlatti: apesar de cedo ter demonstrado dotes excepcionais como cravista, enquanto viveu em Itália não se conhecem obras suas para cravo, género que parece só ter começado a desabrochar na Península Ibérica.

[Sonata K.386 de Domenico Scarlatti, por Cristiano Holtz (Hortus)]

Em O memorial do convento (1982), José Saramago insere Domenico Scarlatti na trama ficcional, tomando a liberdade de fazer dele amigo e cúmplice do padre aeronauta Bartolomeu de Gusmão (1685-1724) e das personagens ficcionais Baltasar e Blimunda.

Bartolomeu de Gusmão apresenta o seu engenho voador à corte portuguesa. Quadro de Bernardino de Souza Pereira, 1940

A dada altura, Saramago proporciona-nos uma visão (necessariamente fantasiosa) da demanda criativa de Scarlatti: tendo sido concluída a lição de cravo a Maria Bárbara e tendo os reais progenitores ido aos seus afazeres, seguidos pelos respectivos séquitos, o compositor ficou a só com Bartolomeu de Gusmão: “O italiano dedilhou o cravo, primeiro sem destino, depois como se estivesse à procura de um tema ou quisesse emendar os ecos, e de repente pareceu fechado dentro da música que tocava, corriam-lhe as mãos sobre o teclado como uma barca florida na corrente, demorada aqui e além pelos ramos que na margem se inclinam, logo velocíssima, depois pairando nas águas dilatadas de um lago profundo, baía luminosa de Nápoles, secretos e sonoros canais de Veneza, luz refulgente e nova do Tejo”.

D. João V, por Jean Ranc, c.1729

Espanha: 1729-1757

Em 1733, após quatro anos em Sevilha, Maria Bárbara e Fernando instalaram-se em Madrid, uma mudança que foi acompanhada por um intensificar das tensões na família real espanhola: à medida que se agravava a enfermidade de Filipe V (que era dado a crises de depressão), a sua segunda esposa, Isabel Farnese, que era, desde 1714, quem governava Espanha na prática, impôs ao enteado e à sua esposa severas medidas restritivas da liberdade e negou-lhes o contacto com Filipe V e qualquer influência na condução dos destinos do país. É de imaginar que nesta espécie de prisão domiciliária as aulas de cravo com mestre Scarlatti tenham sido um escape para Maria Bárbara. Pelo seu lado, Scarlatti parece não ter exibido os seus talentos em público, actuando apenas na corte ou para um círculo restrito de conhecedores.

Scarlatti, ao centro, segurando uma partitura, dá uma aula de cravo a Maria Bárbara, enquanto Fernando (à direita) escuta. Quadro de Gaspare Traversi, meados do século XVIII

Em 1737, a corte foi enriquecida com mais uma estrela musical de primeira grandeza: a fim de tentar amenizar as crises de “melancolia” de Filipe V, a rainha contratou o famoso castrato Farinelli (Carlo Broschi de seu nome de baptismo), cuja função seria cantar para distrair o rei das suas mórbidas ruminações (ver Divas e castrati: Estas estrelas pop têm 300 anos). É possível que Scarlatti, que talvez conhecesse já Farinelli do meio operático italiano, tenha composto para o eminente castrato algumas das suas cantatas profanas (chegaram aos nossos dias 18, a maior parte de datação incerta).

A família de Filipe V de Espanha, por Louis-Michel van Loo, 1743

Em 1738, longe do ambiente opressivo e mórbido da corte madrilena, Londres foi o palco para a publicação da primeira – e única – colecção impressa de sonatas para cravo que teve lugar durante a vida do compositor, graças ao empenho do seu amigo irlandês, Thomas Roseingrave, que se estabelecera, entretanto, na capital britânica.

[Sonata K.1 de Domenico Scarlatti, a peça de abertura dos Essercizi de 1738, por Scott Ross (Erato/Warner)]

As 30 sonatas, a que Scarlatti deu o título de Essercizi per gravicembalo, tiveram por dedicatário D. João V, que, nesse mesmo ano, fizera o compositor cavaleiro da Ordem de Santiago, e incluíam um prefácio, de tom irónico e auto-derisório, da autoria do compositor: “Não esperes, sejas tu um mestre ou um diletante, encontrar nestas composições uma profunda erudição, mas antes um engenhoso divertimento destinado a exercitar-te no domínio da arte do cravo. Não fui movido pelo meu próprio interesse nem pela ambição ao publicá-las, apenas pela obediência! Talvez sejam agradáveis também a ti, o que me faria obedecer mais prontamente a outras ordens para providenciar novas e mais singelas peças. Se a tua humanidade se sobrepuser ao teu julgamento crítico, será maior o teu prazer. No que à posição das mãos concerne, digo-te que o D se refere à direita e M à esquerda. Sê feliz”.

Maria Bárbara de Bragança, por Louis-Michel van Loo, c.1740

Apesar do tom ligeiro do prefácio e do título despretensioso, os Essercizi conheceram apreciável difusão pela Europa fora entre os conhecedores, mas é provável que esse prestígio acrescido nada tenha alterado na rotina de Scarlatti em Madrid. A primeira esposa do compositor, a italiana Maria Caterina, faleceu em 1739, e Scarlatti voltou a casar-se em 1742, com a espanhola Anastasia Maxart Ximenes, de quem teve cinco filhos – de um total de nove filhos tidos por Scarlatti, apenas quatro chegaram à idade adulta e nenhum seguiu carreira musical.

Em 1746, Filipe V faleceu, pondo termo ao mais longo reinado (45 anos e 21 dias) da monarquia espanhola – reinado que teve consequências na vida de Domenico Scarlatti, já que a sua subida ao trono em 1700, dera início à Guerra da Sucessão Espanhola que forçara os Scarlatti a trocar Nápoles por Roma, e a sua morte elevou Fernando e Maria Bárbara ao trono.

Segundo alguns rumores, replicando a atitude do pai, Fernando VI terá deixado os assuntos de Estado ao cuidado da esposa (e do Marquês de Ensenada), o que teria levado o embaixador francês a comentar que “não foi Fernando que sucedeu a Filipe, mas Maria Bárbara que sucedeu a Isabel”. Isabel Farnese não aceitou de bom grado ser afastada do poder, pelo que acabou por ser remetida para o desterro no palácio da Granja de San Ildefonso, em Segóvia. A melómana Maria Bárbara e o castrato Farinelli, que se tornara numa figura influente na corte espanhola (não na política, na qual evitou imiscuir-se, mas no domínio cultural e artístico), tentaram instalar em Madrid a voga da ópera italiana, mas Scarlatti, apesar da sua experiência no género, não voltou a compor para o palco. As sonatas para cravo tinham-se tornado no seu veículo de expressão quase exclusivo e a elas se devotou até à morte, em 1757, em Madrid.

[Sonata K.141 de Domenico Scarlatti, por Jean Rondeau, em 2012]

A sua produção neste domínio soma 555 peças, das quais não existe um único manuscrito autógrafo – elas chegaram-nos, maioritariamente, através de duas monumentais colecções de 15 volumes manuscritos (cada um com cerca de 30 sonatas), copiados entre 1742 e 1757, provavelmente em simultâneo e por iniciativa de Maria Bárbara. A rainha, que faleceu em 1758, legou os dois volumes a Farinelli, que regressou a Itália em 1759, pouco depois da morte de Fernando VI (que ficara inconsolável com a morte da esposa). O regresso a Itália de Farinelli resultou provavelmente de o trono de Espanha ter passado (uma vez que Fernando VI não deixara descendência) para o meio-irmão Carlos III, filho de Isabel Farnese, que regressou do desterro em Segóvia com energias redobradas e não perdoou ao castrato a cumplicidade com Maria Bárbara.

[Sonata K.481 de Domenico Scarlatti, por Jean Rondeau]

As duas colecções de sonatas que Farinelli levou consigo para Itália acabaram na Biblioteca Marciana, em Veneza, e na Biblioteca Palatina, em Parma. Outra fonte importante foi preservada em Münster: é um manuscrito de cinco volumes, contendo 349 sonatas (a maior parte delas repetidas com os volumes de Veneza e Parma) e que tem por (pouco credível) título “Últimas sonatas para cravo de Domenico Scarlatti, compostas entre 1756 e 1757, ano da sua morte”.

Maria Bárbara de Bragança, por Jacopo Amigoni, 1758

A crer nas datas dos manuscritos de Veneza e Parma, a produção de sonatas de Scarlatti concentrou-se nos anos de 1752 a 1757 (400 em seis anos!), o que leva a questionar se terão efectivamente sido compostas nesse breve período ou se Scarlatti viera a trabalhar nelas desde que chegara à Península Ibérica e apenas nos últimos anos de vida se dera ao trabalho de as verter em papel. A segunda hipótese encaixa nos rumores de que Scarlatti seria dado a jogos de azar e que, tendo acumulado uma soma apreciável em dívidas de jogo, se dirigira a Maria Bárbara para que ela ajudasse a saldá-las. A rainha terá então imposto como condição que Scarlatti fixasse em partitura as muito variadas improvisações com que animava a corte.

Jogadores de cartas, por Johann Heinrich Tischbein (1722-1789)

Para que mãos? Para que teclas?

Duas questões têm suscitado o debate de músicos, musicólogos e historiadores em torno das sonatas de Scarlatti: uma é se foram compostas para instrução e recreação da sua real pupila, a outra é se foram concebidas para o cravo ou pianoforte, e nenhuma tem resposta cabal.

“A lição de cravo”, por Giuseppe Bonito, c.1742

Se Maria Bárbara as tocou, significa que possuía capacidades técnicas excepcionais, pois muitas das sonatas são de um virtuosismo estonteante. Mas a infanta iniciou-se no cravo muito nova, teve durante muitos anos a fio um dos melhores mestres que possa imaginar-se (e que, para mais, não tinha de repartir a atenção por outros discípulos) e, até 1746 (quando subiu ao trono espanhol, com 35 anos), teve todo o tempo do mundo para praticar.

[A Sonata K.427 de Domenico Scarlatti, que comporta a indicação Presto quanto sia possible (“tão rápido quanto possível”), por Andreas Staier (Teldec/Warner)]

É verdade que na época, eram raras as mulheres que tivessem demonstrado excepcional talento num instrumento – uma excepção foi Élisabeth Jacquet de la Guerre (1665-1729 prodigiosa cravista e improvisadora, segundo testemunho de conhecedores contemporâneos – mas essa situação resultava apenas de uma sociedade patriarcal e rigidamente organizada (era bem visto as princesas e aristocratas aprenderem cravo, para preencher os momentos de ócio e animar reuniões sociais, mas seria impensável que uma “senhora” quisesse fazer disso uma profissão).

Élisabeth Jacquet de la Guerre, por François de Troy

Quanto ao debate cravo/pianoforte, embora nada se saiba sobre os instrumentos que Scarlatti possuiu, sabe-se que a colecção de instrumentos de Maria Bárbara incluía sete cravos de diversas origens e cinco pianofortes de factura florentina, dois dos quais foram convertidos em cravos (ao arrepio da tendência evolutiva, que fez o pianoforte suplantar em popularidade o cravo!). Nenhum dos pianofortes da colecção tinha a extensão de teclado necessária para tocar muitas das sonatas de Scarlatti (cinco oitavas) e apenas três dos cravos possuíam essa extensão.

Pianoforte construído em 1720 por Bartolomeo Cristofori, o mais antigo exemplar do instrumento que chegou aos nossos dias

É uma “prova circunstancial” e que de forma alguma encerra o debate, que, diga-se, tem um ponto de partida estéril: no século XVIII as partituras não tinham o carácter “sagrado” e “definitivo” com que depois passaram a ser encaradas e eram executadas consoante os meios disponíveis e as circunstâncias, cabendo ao(s) intérpretes(s) fazer as adaptações ditadas pelo uso e pelo bom senso. Scarlatti, ou qualquer dos seus contemporâneos, ficariam perplexos se a questão fosse formulada em termos disjuntivos.

Se acaso viessem a lume provas de que Scarlatti tocou as suas sonatas num pianoforte não invalidaria a execução em cravo e vice-versa – de qualquer modo, convirá ter presente que os pianos de meados do século XVIII eram muito diferentes dos pianos de concerto do nosso tempo: eram instrumentos bem menos robustos e com uma sonoridade delicada e seca, mais próxima de um cravo do que de um moderno Steinway – o que, de qualquer modo, não impede que se toque Scarlatti num Steinway. Porém, a maior parte dos especialistas em música barroca está de acordo que é no cravo que as sonatas de Scarlatti desabrocham plenamente.

[Sonata K.4 (dos Essercizi de 1738) de Domenico Scarlatti, por Scott Ross (Erato/Warner)]

O legado de Scarlatti

É opinião corrente que as obras compostas por Domenico Scarlatti no seu “período italiano” – sobretudo óperas e música sacra – raramente revelam um compositor original, limitando-se quase sempre a reproduzir, sem grande rasgo, os modelos que tinham conferido celebridade ao pai. Pierre Hantaï, um dos grandes cravistas do nosso tempo e um renomado intérprete de Scarlatti, define assim as obras desse período de Scarlatti: “não faz mais do que seguir caminhos já muito trilhados. Um pouco de Alessandro Scarlatti, um pouco de Vivaldi, o seu estilo não tem nada de pessoal ou particular”.

Talvez esta perspectiva seja enviesada pela ideia de que a maior parte da opera seria setecentista é rotineira, rígida e estereotipada, preconceito que resulta parcialmente do muito que há ainda a descobrir neste domínio, já que apenas uma pequena fracção da vasta produção de opere serie foi resgatada ao olvido e gravada segundo preceitos “historicamente informados” e com elencos vocais adequados. Apesar da reputação de Alessandro Scarlatti como compositor de ópera, muito poucas das suas óperas mereceram tal tratamento até agora, e passar-se-á muito tempo até que se limpe o pó a todas as óperas sobreviventes de Domenico Scarlatti.

[“Non lo dirò col labbro”, da ópera Tolomeo ed Alessandro, de Domenico Scarlatti, por Raffaela Milanesi (mezzo-soprano, no papel de Alessandro) e Il Complesso Barocco, com direcção de Alan Curtis (Archiv)]

De qualquer modo, as sonatas para cravo de Domenico evidenciam, claramente, uma originalidade bem superior ao resto da sua produção. Dir-se-ia que foi necessária a experiência do exílio para que Domenico se libertasse dos fios que o prendiam ao passado e “encontrasse o seu registo, feito de fantasia, de invenções bizarras e harmonias surpreendentes, uma música plena de tensão e brio, de ritmo e virtuosismo demoníacos” (Hantaï). A musicóloga Adelaïde de Place complementa esta visão da revolução trazida por Scarlatti: “Na época em que Bach compõe os seus prelúdios e fugas, ou as suas Partitas para cravo, seguindo o esquema da suíte de danças, na época em que [François] Couperin compõe as Les folies françaises e [Jean-Philippe] Rameau compõe L’entretien des muses, Scarlatti rejeita a tradição, inventa uma linguagem pessoal, não respeita nem o quadro da suíte de danças nem os retratos musicais e as cenas de género à francesa”.

[Sonata K.394 de Domenico Scarlatti, por Andreas Staier (Teldec/Warner)]

É uma música “experimental e aventurosa” (Adelaïde de Place), fértil em inovações técnicas e desafios ao executante e que faz permanentemente uso de toda a extensão do teclado – uma exuberância e uma espectacularidade paradoxais num cravista de quem não há registo de uma única actuação pública – e que está impregnada pela música popular ibérica: tanto reproduz o “rasgueado” das guitarra espanhola como o dobrar dos sinos e os rufos da percussão, evoca o flamenco andaluz e a euforia dos bailes populares, imita “o canto dos carreteiros, dos muleteiros e de outras gentes do povo” (Charles Burney).

[Sonata K.260 de Domenico Scarlatti, por Pierre Hantaï]

A Europa musical teve reacções diversas à música de Scarlatti. Parece ter gozado de grande estima na corte de D. João V, como sugerem as referências à execução das suas sonatas, enviadas regularmente a partir de Madrid (“têm-nos vindo bastantes sonatas novas de Scarlatti, e muitas bem saborosas”, congratula-se em 1747 o secretário real Alexandre de Gusmão), e a existência de um volume com 60 sonatas intitulado Libro di tocate per cembalo e conhecido como “Manuscrito de Lisboa”.

[Sonata K.525 de Domenico Scarlatti, por Pierre Hantaï]

Porém, no já mencionado artigo Domenico Scarlatti, 1719-1729: O período português, João Pedro Alvarenga minimiza a suposta influência de Scarlatti sobre Carlos Seixas e sobre os compositores portugueses em geral: “Nenhum português se reclamou depois seu discípulo e o suposto ascendente de Domenico sobre o estilo e a técnica cravística de Carlos Seixas foi há muito convincentemente refutado”. Alvarenga aponta “as escassas sobrevivências das sonatas de Scarlatti nas fontes portuguesas setecentistas de música para instrumentos de tecla, contrastando com o apreço em que visivelmente eram tidas nos círculos mais próximos da corte”. Entende também Alvarenga que Scarlatti não imprimiu marca distintiva no domínio da música sacra, pelo que conclui que a “a contratação de Domenico revestiu significado simbólico no conjunto das reformas joaninas” mas não produziu de uma “súbita e revolucionária italianização da vida musical portuguesa”.

Já em Espanha, Scarlatti deixou forte marca na música para tecla, sobretudo na obra do padre catalão Antonio Soler (1729-1783), que foi seu aluno e cuja produção inicial se concentrou nas sonatas para cravo (num único andamento, como as do seu mestre). Soler legou-nos 120 destas sonatas e também música de câmara, de cena e para ofícios religiosos (em 1757 foi nomeado mestre de capela no mosteiro El Escorial).

[Fandango, de Antonio Soler, por Andreas Staier (Teldec/Warner)]

Algo inesperadamente, em meados do século XVIII, Londres albergou um fan club de Scarlatti (o historiador Charles Burney designa-o como “The Scarlatti sect”), muito graças a Thomas Roseingrave, que, após o regresso a Inglaterra, em 1717, se tornou organista na igreja de St. George, em Hanover Square, e entusiástico divulgador do seu amigo italiano. Foi Roseingrave quem levou à cena, em 1720, no Haymarket Theatre, de Londres, uma versão, revista por si, da ópera Narciso – naquela que foi a última vez que uma ópera de Scarlatti subiu a um palco, até ao século XX) – e fez publicar a partitura com a abertura e as árias – que foi a única edição de música vocal de Scarlatti durante a sua vida.

[“Caro dardo”, da ópera Narciso, por Xavier Sabata (contratenor, no papel de Eco) e La Tempestad, do álbum Sopranos y castrati en el Londres de Farinelli (Musica Antigua Aranjuez)]

https://youtu.be/Bx6N0dxOysc

Foi também Roseingrave quem promoveu e supervisionou a edição londrina dos Essercizi, em 1738, bem como, no ano seguinte, a colecção LXII suites de pièces pour le clavecin, que somou 12 sonatas às 30 da edição de 1738 e que foi subscrita pela elite dos compositores britânicos de então: Thomas Arne, Charles Avison, William Boyce, Maurice Greene e John Stanley, bem como Francesco Geminiani, um italiano radicado nas Ilhas Britânicas. Fascinado por esta música caprichosa e de cores garridas vinda da Península Ibérica, Charles Avison (1709-70) publicou, em 1744, uma colecção de 12 concertos para cordas (Concerti grossi) arranjados a partir de sonatas de Scarlatti com o título Concertos in Seven parts done from the lessons of Domenico Scarlatti.

[I andamento (Largo) do Concerto n.º 5 de Charles Avison, segundo uma sonata (não-identificada) de Scarlatti, pelo Concerto Zimmermann (Alpha)]

Em Amesterdão foi publicada em 1742 uma edição dos Essercizi e algumas sonatas avulsas foram publicadas em Paris em 1741 e 1746. Por volta de 1810, Muzio Clementi, pianista, compositor, pedagogo, editor de música e construtor de pianos italiano radicado em Londres e influenciado por Scarlatti, fez publicar naquela cidade uma colecção de sonatas com o título Scarlatti’s chef d’oeuvre for the harpsichord or pianoforte. Ignaz Moscheles, um dos grandes mestres do piano da geração seguinte à de Clementi, atribuiu a Domenico Scarlatti o encerramento da “velha escola” de técnica do teclado e a Clementi a fundação da “nova escola”.

A publicação em 1839, pelo compositor, pianista e pedagogo Carl Czerny, de cerca de duas centenas de sonatas de Scarlatti, suscitou em Robert Schumann, este juízo severo: “ainda que tenha um lugar importante na história da música de tecla, muitas das suas composições não nos agradam […] Como poderiam estas peças comparar-se às dos nossos melhores compositores quando a sua forma é ainda grosseira, a melodia irrisória e as modulações pobres?”.

[Sonata K.455 de Domenico Scarlatti, por Andreas Staier (Deutsche Harmonia Mundi/Sony Classical)]

O interesse pela música de Scarlatti foi esmorecendo ao longo do século XIX – embora Chopin e Liszt tenham, por vezes, tocado as suas sonatas – e a recuperação do legado de Scarlatti só começou em 1906, quando o musicólogo italiano Alessandro Longo publicou a primeira edição completa das sonatas. Esta edição, com um total de 544 sonatas, catalogadas por ordem cronológica arbitrária, constituiu-se como referência até ao surgimento, em 1953, de um detalhado estudo sobre Scarlatti elaborado pelo cravista e musicólogo norte-americano Ralph Kirkpatrick, que incluía um catálogo de sonatas mais completo (555) e em que a numeração seguia, genericamente, a cronologia (assumindo Kirkpatrick que a ordem em que as sonatas foram copiadas para os 15 volumes das colecções de Veneza e Parma corresponde aproximadamente à ordem da sua composição). O catálogo Kirkpatrick, identificado pela letra K, acabou por prevalecer sobre o catálogo Longo, identificado pela letra L.

[Sonata K.248 de Domenico Scarlatti, por Ralph Kirkpatrick (Archiv)]

Scarlatti regressa à vida

Em meados do século XX, as sonatas de Scarlatti ganharam difusão graças, sobretudo, a pianistas como Dinu Lipatti (1917-1950), Arturo Benedetti Michelangeli (1920-1995) e Vladimir Horowitz (1903-1989), já que as primeiras gravações em cravo, realizadas entre 1934 e 1940 por Wanda Landowska (1879-1959), pioneira da reabilitação do desprezado instrumento, empregaram um cravo Pleyel de sonoridade muito pouco refinada (a arte de construir cravos tinha ainda um longo caminho a fazer), que acaba por dar razão aos seus muitos detractores. Acresce que o registo mono e opaco soa, oito décadas passadas, pouco agradável ao ouvido.

[Sonata L.49 de Domenico Scarlatti, por Wanda Landowska]

Foram precisos grandes progressos na arte do restauro de cravos históricos e da construção de cópias modernas e na “interpretação historicamente informada” (HIP) para que as sonatas de Scarlatti recuperassem vivacidade e colorido. As gravações de Ralph Kirkpatrick para a Archiv, em 1970, de Gustav Leonhardt para a Deutsche Harmonia Mundi, em 1970, e de Trevor Pinnock para a CRD, em 1980, bem como os vários volumes de Gilbert Rowland para a KGR na década de 70, deram passos no bom sentido, mas as gravações dos pioneiros da HIP acabaram por ser ofuscados pelo épico empreendimento levado a cabo em França pelo cravista americano Scott Ross, que, em Junho de 1984, deu início a uma maratona de gravações – 98 sessões em 18 meses – visando a gravação integral das 555 sonatas.

[Sonata K.209 de Domenico Scarlatti, por Scott Ross, ao vivo no Château de Maisons-Laffitte, 1988]

A meio do processo, Ross foi diagnosticado com uma doença então ainda de contornos nebulosos – a SIDA – mas conseguiu levar o projecto a bom termo (faleceu em 1989, com 38 anos) e a caixa de 34 CDs editada pela Erato ainda hoje é uma referência.

A integral de Ross é uma proeza admirável mas, na década de 1990, dois cravistas injectaram na interpretação de Scarlatti um “duende” e um brio inauditos: foram eles o alemão Andreas Staier – na Deutsche Harmonia Mundi e depois na Teldec – e o francês Pierre Hantaï – na Auvidis/Astrée e depois em quatro volumes para a Mirare. Há quem entenda que a abordagem enérgica, percussiva e muito lesta (por vezes vertiginosa) de Staier e Hantaï quebra o decoro associado à música “erudita” e é mais próprio do thrash metal, mas quem se afeiçoe a estas interpretações tenderá a achar as outras brandas e deslavadas.

[Sonata K.215 de Domenico Scarlatti, por Andreas Staier (Teldec/Warner)]

Claro que estas diferentes abordagens não são mutuamente exclusivas e há motivos de interesse em todas elas. E os “completistas” podem hoje escolher entre a leitura de Ross (Erato), a de Pieter-Jan Belder (na Brilliant Classics), que é de qualidade comparável e também se comercializa a preço reduzido, e a de Richard Lester (na Nimbus).

[Sonata K.491 de Domenico Scarlatti, por Pieter-Jan Belder (Brilliant Classics)]

Para quem pretenda uma colecção integral das sonatas mas seja alérgico à sonoridade do cravo – uma patologia tão frequente quanto a intolerância ao glúten – a Naxos tem andado a promover a gravação das 555 sonatas em piano, repartida por vários intérpretes, mas esta progride lentamente – iniciou-se em 1999 e o volume mais recente, o n.º 21, data de 2017, o que significa que, a manter-se a cadência, requererá pelo menos mais uma dúzia de anos para ser completada.

“Sonatas Scarlatti”, por Jean Rondeau (Erato)

Entre os lançamentos mais recentes é de destacar o CD pelo cravista francês Jean Rondeau, na Erato. Apesar da sua juventude – nasceu em 1991 – Rondeau tem vindo a afirmar-se como uma das vozes mais notáveis da música para tecla barroca e os seus três discos (todos na Erato), dedicados a Johann Sebastian Bach (Imagine), aos concertos de Bach e dos seus talentosos filhos Wilhelm Friedemann, Carl Phillip Emanuel e Johann Christian (Dinastie Bach) e aos compositores franceses Jean-Philippe Rameau e Pancrace Royer (Vertigo), receberam aplauso unânime.

Rondeau exibe igual frescura e clareza de articulação nestas 15 sonatas de Scarlatti (mais uma breve improvisação como interlúdio), quer elas sejam de natureza efervescente e azougada (Sonatas K.6, K.141, K.175) ou melancólica e meditativa (Sonatas K.69, K.132, K.162, K.208, K.213). Cravistas com uma técnica prodigiosa podem sentir-se tentados a explorar o lado mais exuberante e espalha-brasas de Scarlatti, mas a selecção de sonatas realizada por Rondeau coloca antes em relevo a expressividade e amplitude de registos emocionais do compositor italo-ibérico.

O cravo usado nesta exemplar gravação realizada na Salle de Musique de La Chaux-de-Fonds, na Suíça, foi construído em 2006 por Jonte Knif & Arno Pelto, segundo modelos históricos alemães, pelo que poderá não corresponder à dos instrumentos utilizados por Scarlatti. Porém, a sua sonoridade é tão cristalina – e, ao mesmo tempo, calorosa e macia – que deixará sem argumentos os cravofóbicos e ajuda a fazer deste disco uma porta de entrada privilegiada para o fabuloso mundo das sonatas de Scarlatti.

[Sonata K.213 de Domenico Scarlatti, por Jean Rondeau]