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Ben Fine, marxista convicto, economista cauteloso. "O setor financeiro é o elefante sobre a economia"

Ben Fine, economista da Universidade de Londres, admite que não tem havido bons exemplos do que chamam de socialismo, mas também que não é justo compará-lo com o melhor capitalismo.

Marxista convicto, economista cauteloso, acredita que o sistema pode ser mudado e que o socialismo ainda não viu os seus melhores dias. Ben Fine, economista da School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres, esteve em Portugal para participar no 1.º Encontro Anual de Economia Política que se realizou no ISCTE, na semana passada, e em conversa com o Observador esmiuçou O Capital de Marx, a sua especialidade nas últimas três décadas.

Numa conversa bem disposta e aberta, Fine explicou como as ideias de Marx podem ser úteis aos decisores políticos atualmente, argumentou que o grande problema é o peso que o setor financeiro tem hoje na nossa vida e disse ser possível mudar o sistema para um baseado nas ideias que tem estudado toda a sua vida. Mas, para isso, será necessário fazê-lo devagar.

Ben Fine é autor, juntamente com Alfredo Saad-Filho, desta introdução a O Capital de Karl Marx

Com todas as mudanças a que temos assistido no mundo, O Capital ainda é relevante?
As ideias de Marx são, e continuam a ser, relevantes. Mais ainda no seguimento da crise. Sempre que há uma crise, Marx torna-se mais popular, porque Marx ensina que o capitalismo é suscetível a crises, como o é a períodos de crescimento, e tenta contextualizá-lo a um nível sistémico. Há coisas que podemos aprender com Marx que são particularmente relevantes no período em que vivemos, como a concentração da propriedade da produção. Outra, que é um paradoxo, é que à medida que o capitalismo se torna cada vez mais rico, e Marx admirava muito a capacidade de produção do capitalismo, quando há uma crise as pessoas ficam cada vez mais pobres. Algo que tem atraído muita atenção, mas que tem origens mais profundas nos últimos 30 anos, é o agravamento da desigualdade e os níveis muito elevados de desemprego. Isto é consequência, e é algo em que Marx colocou muito ênfase, da capacidade do sistema financeiro não apenas de criar e estimular crises, mas de as tornar consideravelmente piores, algo que é particularmente relevante nos dias em que vivemos.

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E como se reduz esse poder do setor financeiro sobre a economia?
A margem de manobra para as decisões políticas tornou-se particularmente curta devido ao papel desempenhado pelo setor financeiro. Ficou provado nos últimos dez anos que tentar usar o setor financeiro como instrumento para sair da crise não teve sucesso. De várias formas, a evolução não podia ter sido mais favorável ao capitalismo. A guerra fria foi ganha, o neoliberalismo ganhou, os sindicatos e o equilíbrio de forças é altamente favorável ao capital, houve uma sequência extraordinária de inovações tecnológicas que deviam ter criado enormes aumentos na produtividade e no bem-estar, os níveis de emprego aumentaram significativamente, nem que seja pela entrada da China nos mercados. Por isso, podemos perguntar aos capitalistas ‘O que é que querem? O que é que não vos demos para vocês fazerem com que o sistema resulte?’. Apesar de tudo isto, não conseguiram. Nos últimos 30 anos, o rácio de ativos financeiros relativamente ao PIB triplicou. Porque precisamos do triplo do setor financeiro? O setor financeiro pode desempenhar um papel muito importante para promover o investimento, mas também pode ter um papel muito destrutivo.

Podemos perguntar aos capitalistas ‘o que é que querem? O que é que não vos demos para vocês fazerem com que o sistema resulte?’. Apesar de tudo isto, não conseguiram.

Mas não faz parte do capitalismo ter crises cíclicas?
Sim. Parte da teoria de Marx é que a forma como o capitalismo organiza a vida económica, e a vida social de forma mais geral, pode promover o desenvolvimento de forma progressiva, mas vai embater numa barreira, que depois vai criar uma crise e maior disfuncionalidade do que o necessário.

Falava do progresso tecnológico, mas esse também deixou uma parte da população de fora, especialmente os trabalhadores menos qualificados. Isto não deveria favorecer as teorias de Marx?
Parece uma questão simples, mas não é. A margem para adotar políticas diferentes é muito reduzida devido ao peso do setor financeiro. Sou contra generalizações, porque acho que são necessárias respostas diferentes para a economia globalmente e para os países individualmente, mas um dos principais problemas é a visão de curto prazo. Uma das consequências da influência cada vez maior do sistema financeiro nas nossas vidas — seja quanto à nossa habitação, às nossas pensões ou nos nossos investimentos — é que há muito mais pressão para se conseguirem resultados no imediato. E a forma de conseguir resultados no imediato é ter lucros através de estratégias de curto prazo, seja vendendo ativos, cortando salários ou pensões ou recompensando aqueles que conseguem implementar este tipo de medidas. A alternativa seriam estratégias de longo prazo, focadas na produtividade, no investimento em qualificações, no uso destas tecnologias para beneficiar todos.

É como ter um grande elefante num barco. Se o elefante se mantiver quieto e ninguém lhe tocar, o barco mantém-se estável. Se tentamos fazer alguma coisa ao elefante porque queremos mudar de direção, o barco vira. O setor financeiro é o elefante sobre a economia.

Mas como é que o setor financeiro prejudica essa tomada de decisões?
O papel do setor financeiro está tão integrado na nossa vida económica e social que, para adotar alternativas há o risco, a probabilidade ou mesmo a possibilidade de se criar uma crise. É como ter um grande elefante num barco. Se o elefante se mantiver quieto e ninguém lhe tocar, o barco mantém-se estável. Se tentamos fazer alguma coisa ao elefante porque queremos mudar de direção, o barco vira. O setor financeiro é o elefante sobre a economia. Assistimos a isso com as mudanças feitas na União Europeia ou em políticas como o quantitative easing. Quem é que tem prioridade? O que quiseram assegurar primeiro foi a estabilidade e a segurança do sistema financeiro, a banca podia pedir emprestado a qualquer taxa na esperança de que viessem a estimular a economia, mas não o fizeram. Outra questão, que é um grande problema para os governos de esquerda como aconteceu em Portugal e na Grécia de forma mais profunda, é que as instituições que podiam apresentar alternativas foram enfraquecidas. Comparando com o pós-guerra, as instituições, como os sindicatos, perderam força. A margem de manobra para mudar é limitada enquanto não lidarem com o setor financeiro.

Mas os próprios governos tendem a tomar decisões para satisfazer o seu eleitorado. Não será essa visão de curto prazo antes uma característica dos ciclos políticos?
Há muita verdade nisso, mas é necessário pensar em outros dois aspetos. O primeiro é que o que deu estabilidade a projetos de longo prazo foi a natureza das instituições que existiam para os fazer. Investimentos de longo prazo, emprego mais seguro, sistemas de saúde e investimentos. O outro é até que ponto existe uma grande volatilidade precisamente devido ao papel do setor financeiro, que se expressa em movimentos políticos como o Brexit, a eleição de Trump, ou mesmo com o surgimento de Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. Por as pessoas não estarem envolvidas com as instituições que procuram políticas progressivas, acabam por ir à procura de vítimas e de culpados, e as posições que podem tomar podem ser mais voláteis. Antes era o centro que importava. Agora ninguém é de confiança, nem Angela Merkel.

Se é assim, porque crescem mais os movimentos de direita que os de esquerda? Ainda agora em Davos víamos o FMI a alertar para o problema da crescente desigualdade na Europa. Não deveria ser um sinal de viragem à esquerda?
Em instituições como o FMI e o Banco Mundial há muito que defendo que é preciso distinguir de forma muito clara o que é a ideologia, a formação e a prática. Podem dizer todas estas coisas maravilhosas, ter estas ideias maravilhosas, mas vamos ver o que fazem. Não há necessariamente muita consistência entre as três. O FMI tem uma missão muito específica: evitar crises financeiras. Há uns anos defendia políticas muito austeras para evitar crises. Depois, defendia políticas relativamente austeras para poderem lidar com a crise. Agora, o FMI não está só a tentar prevenir ou lidar com crises, estão muito preocupados é com o contágio. Seja qual for a razão, seja o aumento do desemprego, o descontentamento dos jovens, ou o crescimento de partidos radicais de direita, ou mesmo de esquerda, isto é algo que pode criar instabilidade, e essa instabilidade pode levar a instabilidade nos mercados financeiros e assim criar uma nova crise. Deve ser por isso que se lembraram agora, mas o que gostaria era – e tomemos o exemplo do desemprego jovem em Portugal ou na Grécia – de perguntar então o que é que estão realmente a fazer para resolver o problema?

E o que deveríamos nós fazer para resolver esse problema?
Em vez de usar o dinheiro para emprestar aos bancos, porque não usá-lo diretamente para construir habitação, para investir na educação? Do pouco que sei de Portugal, o dinheiro da União Europeia não foi usado para o desenvolver a indústria ou para criar empregos, mas sim em infraestruturas. Tiveram, mais uma vez, uma visão de curto prazo que gerou bons retornos para o sistema financeiro, mas que não teve em conta as perspetivas de longo prazo da economia. O problema é a baixa produtividade, o baixo emprego, os baixos salários e o baixo investimento. É preciso lidar com estas quatro coisas ao mesmo tempo. Não penso que se possa resolver o problema fazendo mudanças pontuais. Seria necessário analisar habitação, transportes, indústria, agricultura e por aí fora, e ver onde pode ser criado mais emprego.

Acha que é possível mudar o sistema para um baseado nos valores que defende?
Alguns marxistas diriam que esse é um exercício fútil, que estamos numa economia global e que tudo o que poderíamos fazer seria boicotado por forças globais. Não penso dessa forma. Essas forças têm de ser tidas em conta, sim, mas de um ponto de vista marxista esse movimento pela mudança pode vir de políticas reformistas que beneficiem todos, e de organizações. Outra forma que Marx teria para ver a questão é em termos de classe. Temos de ver quem está a beneficiar das políticas adotadas, como estão a beneficiar, porque estão a ser adotadas e que alternativas podem ser adotadas. Sei que há uma grande desigualdade em Portugal e isso é algo que tem de ter resposta. No mundo do pós-guerra o grande debate era se o reformismo social, a criação de empregos, educação, o Estado social, se isso poderia continuar a existir num sistema capitalista ou se teria de haver uma revolução. Ambos provaram estar errados e a razão é que o que acabou por tomar conta foi o setor financeiro. A ideia de reforma versus revolução não está na agenda. O caminho que vejo é criar políticas progressistas que gradualmente desafiem o poder do setor financeiro, como novas formas de criar empregos, em contraste com o que aconteceu nos últimos anos.

Ou seja, o sistema tem de ser mudado lentamente?
Sim. Talvez algumas mudanças possam chegar mais rapidamente, mas uma mudança completa e súbita não é uma opção.

Mas seria possível mudar o sistema completamente ou apenas de forma parcial?
Eu diria que o sistema tem de ser mudado por completo, mas isso não está em cima da mesa. O que está na agenda é se continuamos a permitir o contínuo domínio do setor financeiro sobre a forma como as políticas são adotadas e sobre que políticas são adotadas, ou se vamos desafiar este domínio e encontrar formas de o contornar e fazer algo diferente.

Como poderia funcionar um sistema completamente novo sem parte do antigo?
Eu não sou contra o setor financeiro. Vejamos o caso da economia chinesa, que usa o setor financeiro mais do que qualquer outra economia para financiar o seu investimento, mas esse investimento é direcionado pelo Estado ou por empresas estatais. A questão não é se o setor financeiro está presente ou não, a questão é quem o controla e para que fins. Também é verdade que muito do que possamos considerar uma alternativa já está implementado. Um exemplo disso é o sistema de saúde ou de educação no Reino Unido.

Acha que a China é um bom exemplo?
A China é um bom exemplo dos resultados que o Estado pode obter. A China está a conseguir uma transição muito bem-sucedida para o capitalismo. Não acho que seja uma transição para o socialismo com caracteres chineses. O que é muito claro é que têm o poder sobre o rumo da economia. Podem decidir ‘investimos muito em habitação, agora vamos aumentar o consumo, agora vamos investir na educação, agora vamos investir na segurança’. Pensam na melhor forma de o fazer e fazem-no.

Mas a mão-de-ferro sobre a economia também se aplica à sociedade. Há forma de existir sem esse controlo sobre a sociedade?
Está a arrastar-me por todos os argumentos contra o marxismo e o socialismo. A primeira era se uma economia socialista podia funcionar, mas temos exemplos onde funciona. Depois é ‘OK, é possível, mas é indesejável porque temos de oprimir o povo’.

Há algum país no mundo que seja um exemplo onde esse controlo sobre a economia exista sem controlo sobre a sociedade?
Concordo consigo. A experiência do que as pessoas chamam socialismo não tem sido um bom exemplo.

E porque não?
A Escandinávia é um bom exemplo de ideais socialistas. É uma grande generalização, mas o que aconteceu nos países que tiveram uma espécie de transição para o socialismo é que as organizações políticas levaram ao controlo do partido central, que por sua vez levou ao controlo do partido pela sua elite, e da elite por um individuo. Penso que são os constrangimentos externos que acabam por criar estes problemas. Na África do Sul, um país que acompanho apesar de não ser socialista, isto tem sido muito claro, porque em apenas 20 anos temos uma elite muito corrupta que tomou o controlo da economia. Também aconteceu no Zimbabué. De certa forma, é a tragédia da União Soviética. Mas não é justo comparar o melhor do capitalismo com o pior do socialismo e, possivelmente, ainda não vimos o melhor do socialismo, com exceção da Escandinávia. Tenho esperança que o socialismo ainda não tenha vivido os seus melhores dias. Podemos aprender com estas lições. O socialismo está consciente dos perigos de uma distorção extraordinária de dentro do partido, através da liderança do partido e por aí fora. O problema é que para continuar fiel aos princípios de uma democracia liberal é preciso garantir apoio eleitoral, e implementar medidas que podem ser desestabilizadoras para conseguir atingir objetivos de longo prazo pode ser a receita para perder o poder.

O que aconteceu nos países que tiveram uma espécie de transição para o socialismo é que as organizações políticas levaram ao controlo do partido central, que por sua vez levou ao controlo do partido pela sua elite, e da elite por um indivíduo. Penso que são os constrangimentos externos que acabam por criar estes problemas. 

Nesta altura talvez mais…
Penso que sim, especialmente dado o poder da comunicação social.

Se a Escandinávia é um exemplo tão bom, porque não houve mais países a segui-lo?
Em vários aspetos no pós-guerra, a Escandinávia era vista como o exemplo a que devíamos aspirar. Agora só é parcialmente. Estamos a assistir ao crescimento de um modelo que é contra a intervenção estatal, que defende mais o papel do privado como prestador de serviços, com financiamento desse setor privado. Estranhamente, o modelo escandinavo já não é tão popular como era e acho que isso reflete o crescimento do setor financeiro e das instituições mais pró-mercado, que têm maior influência no desenho e na implementação das políticas.

Na sua opinião, o que é que os nossos líderes poderiam aprender com Marx?
Colocando o que Marx tem a dizer num contexto mais contemporâneo, em primeiro lugar é que a vida económica e social está altamente condicionada, se não determinada, pelo poder do setor financeiro sobre a economia e muito do problema do surge daí. É preciso entender a relação entre o setor financeiro e a economia, e a sociedade de forma mais geral, quais quais são as suas dinâmicas e como podemos lidar com esta questão. Em segundo lugar, que não podemos pensar na política económica como sendo independente da sociedade em que está inserida, e ter consciência que tem um impacto profundo na sociedade. Em terceiro lugar, dizer que não tenham medo do povo. Tentem encorajar o povo a formar organizações, a defenderem o que querem e a liderar no que necessitam, criando novas instituições, novas formas de participar, tendo mais conhecimento do processo de decisão das políticas económicas, sobretudo participando.

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