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"Esta casa nunca foi muito arrumada, porque quem compra livros antigos também encontra o que não procura. Aprende-se sempre, fala-se da vida e de livros", diz-nos Bernardo Trindade
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"Esta casa nunca foi muito arrumada, porque quem compra livros antigos também encontra o que não procura. Aprende-se sempre, fala-se da vida e de livros", diz-nos Bernardo Trindade

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

"Esta casa nunca foi muito arrumada, porque quem compra livros antigos também encontra o que não procura. Aprende-se sempre, fala-se da vida e de livros", diz-nos Bernardo Trindade

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Bernardo Trindade: "Este é um trabalho contínuo, até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo"

Vai sair da Rua Alecrim, morada da livraria Campos Trindade. Em conversa com o Observador, recordou o pai, que abriu o negócio, as raridades que pagaram casamentos e colocou os olhos no futuro.

Livros arrumados, muitos nem por isso, álcool gel, um computador, marcas de antiguidade. E silêncio. As grades na janela ajudam a explicar: é hora de sair. Nos últimos dias as homenagens têm sido muitas à livraria Campos Trindade, um local que, ao fim de 44 anos, vai abandonar o número 36 da Rua do Alecrim, em Lisboa. Esse carinho deixa Bernardo Trindade, o responsável pela livraria, quase sem palavras. E sem tempo para responder. Está ofegante, com a voz tremida, porque, apesar da emoção que tem sentido, é um homem pouco expansivo, tal como o pai, Tarcísio Trindade, o primeiro responsável pela livraria. Nesta conversa com o Observador, o filho, o herdeiro, um apaixonado pelos livros, abre a porta deste quase meio século de história, com alguma dor e uma garantia: para onde for, os clientes também vão.

Mas isso é o futuro. O passado de Bernardo Trindade é o que permite perceber o porquê deste local ser tão acarinhado. Para o livreiro, falar do pai é abrir o coração e recordar histórias que contam mais tempo do que uma vida. Em família, lembra-se de quando lhe deu “o primeiro abraço a sério”, mas também recorda os pormenores de negócios marcantes, de como graças ao “Tratado de Confissom”, primeiro livro impresso em português, foi possível aos pais pagar o próprio casamento.

Esta é uma história que acontece sobretudo entre Alcobaça e Lisboa, mas tudo começa e termina na livraria, onde chegou com apenas 3 anos de idade. Aprendeu tudo o que tinha a aprender com o seu “mais próximo e distante amigo”, desde o catalogar, organizar, explorar ou adquirir bibliotecas. Até a emoção de ver o brilho nos olhos de um colecionador quando lhe cai nas mãos uma raridade. E talvez os cheiros que saem de páginas fechadas há demasiado tempo. “Comprei a biblioteca do Ernesto Sampaio, escritor casado com a atriz Fernanda Alves. Abri e cheirava a tabaco, misturado com o papel. Era a poesia completa de Herberto Hélder”, diz.

O orgulho que sente em ter seguido as pisadas do pai atravessa a máscara que usa durante a entrevista. Mesmo sabendo dos defeitos, compreende-se. Tarcísio Trindade foi alguém tão ou mais complexo do que aquilo que contam estas estantes. Chegou a ser o presidente de câmara mais novo “durante o Estado Novo”, um liberal ao lado de Marcello Caetano que fez amigos até no PCP, sendo preso político após a revolução 25 de abril. “Ainda tenho o mandado de captura do Otelo de Saraiva para o meu pai, por ‘associação de malfeitores’ “, confessa.

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A pandemia obrigou-o a decidir aquilo que foi adiando: não conseguir pagar a renda. Agora, vai para outro sítio qualquer, como um escritório ou uma loja aberta. Tem a certeza disso, mas tem de parar. 2020 foi demasiado cansativo. É preciso descansar o corpo, a cabeça e voltar para junto da família. E se um dia for preciso colocar um ponto final, que seja. Tudo o que está na livraria foi feito “com amor e o melhor que se conseguia”. E deixa a nota: é uma profissão com futuro, ainda que o presente a queira rasgar da história.

"Não houve um decréscimo, foi mesmo uma mudança. Muita gente deixou de vir por causa do medo"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Como tem sido gerir estes últimos dias, com muitas homenagens, até com visitas presidenciais, sabendo que no fim do mês tem de sair daqui?
Tem sido mais emocionante para as pessoas. Foi uma decisão que tinha de ser tomada, as coisas mudaram muito nos últimos tempos, por causa da pandemia. Há uns anos, com a nova lei do arrendamento, por uma questão de educação e de estar na vida, mantendo uma boa relação com os senhorios, não quis entrar nas lojas com história. Chegaram a vir cá e tudo. Pode ter sido uma má decisão, mas, em consciência, não era capaz de fazer isso. Sempre tive uma boa relação com os senhorios. Mas esta loja sempre teve vida e esteve cheia de gente. Preferi entrar em acordo, mesmo pagando uma renda bastante mais alta. Como primamos a relação com a maior correção e educação, lá chegámos ao acordo possível. Estava a andar muito bem, com o turismo, mas agora é complicado suportar esses valores.

Portanto, foi mesmo a pandemia que ditou o que está a acontecer agora?
Não houve um decréscimo, foi mesmo uma mudança. Muita gente deixou de vir por causa do medo. Quem compra livros antigos tem uma idade mais avançada. Claro que tenho clientes muito jovens e, como o meu pai fazia, tenho o cuidado de ter livros a preços muito acessíveis. Até temos a secção da “Vala Comum”, de um euro, que são acessíveis aos estudantes. São bons textos, não é lixo nem nada. Também vieram cá muitos livreiros, do Porto, de Lisboa e do estrangeiro, comprar livros para revender e vender a preços mais altos. Essa é a nossa maneira de negociar. Tenho pessoas para livros muito raros, primeiras edições do séc XVIII ou XVII, que são mais caros. Não é para todas os bolsos, mas quem os compra, sabe o que quer e o que procura e eu também. E sei que vão estimá-los, tendo a certeza que vão perdurar por mais gerações.

Essa relação de confiança entre quem compra e quem vende demora muito tempo a conseguir?
Sim. Claro que muitos clientes vieram do tempo do meu pai, também fui criando outros. Fiz alguns catálogos importantes que me deram muito trabalho e satisfação. A diferença nesta livraria é tentar ser o mais honesto possível, não especulando os preços. Nunca enganar um cliente, de que uma obra está completa e, afinal, não está. Por exemplo, um livro do século XVI tem de ser colecionado folha a folha, ver-se os defeitos. Quando compramos as bibliotecas, é preciso ver o que é ou não para restaurar. Só fazendo isso é que os livros conseguem perdurar no tempo.

"Não sou o livreiro mais velho de Lisboa, mas sou dos que têm mais anos de profissão porque comecei muito novo. Acompanhei o meu pai, sempre. Passaram-me pelas mãos as coisas mais incríveis e preciosas que estiveram nesta casa. Ensinou-me a utilizar a bibliografia como se fosse a extensão do nosso cérebro, como lhe dar bom uso. É essencial saber onde ir buscar a informação para qualquer livreiro."

Apesar do carinho que tem recebido, esta mudança não deixa de ser sintoma dos tempos: algumas livrarias estão a fechar portas. Porque é que não é possível criar condições para que continue a sua atividade aqui?
Um parêntesis: vou sair daqui sem um empréstimo, um imposto por pagar, sem nada. Prefiro sair assim, do que estar em falta com as minhas obrigações. Entendo que o último ano exigiu de mim um esforço enorme. Trabalhar o triplo para honrar os compromissos todos. Nunca faltou nada, nem aos empregados. Não tirei de lá o meu ordenado uma única vez. Está difícil para todos porque muita gente fica em casa, há livreiros que se mudaram mais para o online. Só que a alma desta loja nunca foi o online. Meter todos os livros online é tudo aquilo que esta profissão não é. Vive e sente-se no dia-a-dia, com a relação de amizade que vamos criando com as pessoas. Não é só amizade, é cumplicidade, feita de pequenos gestos.

Sei que um determinado cliente gosta disto ou daquilo, entra pela porta, sabe que tenho algo guardado, nem precisa de dizer. Ou quando procura algo há muito tempo e coloco o livro à frente dos olhos, nem imagina a emoção que é para mim e para as pessoas. Até as ofereço porque me dá mais gozo. Essa cumplicidade refletiu-se nestes últimos dias. Nunca fui de muitas palavras, tal com o meu pai, mas houve pessoas que despejaram tudo o que sentiam no último dia. Choraram, pediram abraços. Tudo de pessoas que não estava à espera.

Foi apanhado de surpresa por essa onda de carinho?
Houve sempre reconhecimento, não era preciso expressá-lo. Quando se cria essa relação, eles sentem esta casa como um porto seguro. Sabem que não vão ser enganados. Esta casa nunca foi muito arrumada, porque quem compra livros antigos também encontra o que não procura. Aprende-se sempre, fala-se da vida e de livros.

Como é que olha para o futuro? Disse que ia procurar outro local, para já. Não é um fim, portanto.
Vim para aqui com três anos. Não sou o livreiro mais velho de Lisboa, mas sou dos que têm mais anos de profissão porque comecei muito novo. Acompanhei o meu pai, sempre. Passaram-me pelas mãos as coisas mais incríveis e preciosas que estiveram nesta casa. Ensinou-me a utilizar a bibliografia como se fosse a extensão do nosso cérebro, como lhe dar bom uso. É essencial saber onde ir buscar a informação para qualquer livreiro.

"Muitas livrarias acabaram quando o livreiro morreu. Poucas tiveram a sorte de terem um filho que seguisse as pisadas do pai"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Esse é o passado, de que também vamos conversar. Mas e o futuro?
Este ano foi muito cansativo. A minha ideia é parar uns meses para respirar, cuidar de mim e depois abrir. Há várias hipóteses: pode ser uma loja de rua, um escritório à porta fechada por agendamento, por exemplo. Como tive muita clientela, trabalhei muitas vezes à noite, o que me agrada. Mas para alguém que tem filhos e família, é um pouco injusto. É puxado porque as pessoas têm a ideia de que vender livros é estar aqui sentado. Eu e o meu pai sempre fomos homens de ação. Comprávamos e compro bibliotecas e andámos pelo país inteiro. Nem todos o fazem, porque é preciso alguma experiência. E é um risco, por vezes, o investimento é muito grande.

Mas este não é um negócio onde se olha só para o lucro.
É preciso assegurar o mínimo, mas felizmente nunca tive prejuízo. Enriquecer nunca foi o objetivo principal. Por vezes os livros nem têm de ser muito antigos, o importante é saber que são entregues a quem os vá estudar, a quem os utilize no seu trabalho.

Que histórias é que guarda dessas raridades?
O meu pai foi o único livreiro que teve cá a primeira edição do Dom Quixote, os dois volumes. Um exemplar lindo. Tive-o na mão. Mais tarde, quando ele já não conseguia trabalhar bem, comprei o segundo volume dessa edição, mais raro do que o primeiro. Só existem sete ou oito no mundo. Comprei-o no norte, foi parar a boas mãos. Depois, há a história do meu pai ter negociado o primeiro livro impresso em português, o Tratado de Confissom (1489), nos anos 60. Deu um grande brado na imprensa e tudo. Foi por causa desse livro que o meu pai arranjou dinheiro para se casar. E é por causa dele que existo. Um dia essa história será desenvolvida. Ainda há coisas a contar. Mas não já, não me leve a mal.

Não levo nada. Fico à espera.
Também passou por cá uma carta do Sá de Miranda, que penso que terá ido para a coleção do Pina Martins. Tive um pergaminho grande do Damião de Góis.

"Nas bibliotecas antigas, entramos no mundo do escritores, nos manuscritos, nas dedicatórias, nas anotações. É uma aprendizagem diária. Quem ama os livros como eu, sabe que está aí toda a beleza da profissão. Além das emoções que proporcionamos às pessoas, essa busca, é aí que está o segredo."

Dá-lhe orgulho?
Não é isso. Há coisas menos valiosas que também me dão imenso gozo encontrar. A revista Orpheu só teve dois números, uma vez apareceram num leilão as provas de um terceiro número, com folhas impressas, mas soltas. Tive a sorte de comprar esse lote. É quase impossível. Não sendo tão antigas, são do século XX. Vendi a alguém que tinha os outros dois. Vão ficar bem guardadas e estimadas.

Portanto a sua cabeça nunca pára. Sai daqui para ir em busca de relíquias?
Não tenho anúncios. Estas coisas vão passando de boca em boca. Claro que as pessoas sabem que é necessário uma margem de lucro, por mais pequena que seja. Mas como compramos em bruto, sem ser em leilão ou algo semelhante, há sempre custos associados, dos transportes, de catalogação, etc. Muitas vezes os livros estão fechados em casa durante muito tempo, há custos inerentes ao restauro. O aliciante é que estamos sempre a encontrar qualquer coisa. Nunca se sabe tudo.

O amanhã é sempre diferente.
É, é. Entramos em várias casas, com uma história distinta. Cada biblioteca é um mundo, uma história e um cheiro.

Um cheiro?
É verdade. Comprei a biblioteca do Ernesto Sampaio, escritor casado com a atriz Fernanda Alves. Abri o livro e veio o cheiro de onde estavam os livros. Era a poesia completa do Herberto Hélder, com a sua dedicatória. Fumava muito, por isso, veio um certo cheiro a tabaco, misturado com o papel. Ainda está lá. E olhe que comprei aí há uns 18 anos. Nessas bibliotecas antigas, entramos no mundo do escritores, nos manuscritos, nas dedicatórias, nas anotações. É uma aprendizagem diária. Quem ama os livros como eu, sabe que está aí toda a beleza da profissão. Além das emoções que proporcionamos às pessoas, essa busca, é aí que está o segredo.

2020 veio distanciar-nos muito uns dos outros. Para um negócio que se faz do contacto, como é que contornou essa restrição?
Ainda comprei algumas bibliotecas importantes este ano. Já eram de partilhas em que os donos tinham falecido ou já não estavam em casa. Fez-se tudo com segurança. Alguns clientes mais velhos adiaram as entregas, pelo medo. O que é normal, já sabia que ia ser assim.

"Entramos em várias casas, com uma história distinta. Cada biblioteca é um mundo, uma história e um cheiro"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Teve perdas muito significativas?
Tive de estar fechado uns meses. Como não tenho muito material online, claro que senti as perdas. Melhorou agora no fim do ano, também fui metendo no Facebook os livros da semana. Não era muito caro, mas vendia-se tudo. Mas, lá está, não gosto de negociar assim, não me leve a mal.

Não levo nada.
Não é a minha maneira de estar. Fiz porque teve de ser. Até ganhei novos clientes.

Desculpe insistir, mas fica chateado que não haja outra opção que não sair? Até Marcelo Rebelo de Sousa esteve aqui.
Esteve cá, como os outros presidentes. Jorge Sampaio, Mário Soares…

… Cavaco Silva?
Não, não. É uma pessoa mais de economias. Normalmente essas pessoas não têm queda para a bibliofilia e para o livro antigo. São bons técnicos, claro. Vou parar… Não fico chateado, mas estou muito cansado. Preciso mesmo dessa pausa. Mexeu bastante comigo, já sabia que ia acontecer. Só tenho de ter orgulho do trabalho feito até aqui. Por vezes é preciso largar o passado para se seguir. Sempre pus o meu cunho pessoal, fiz as vendas especiais quando ninguém fazia, como núcleos de arquitetura ou grande parte da biblioteca do Miguel Esteves Cardoso, em que fizemos aqui a venda. Saiu um artigo até no Observador. Estava cheio, nunca vi tanta gente numa livraria. Os preços eram muito acessíveis, só se via pessoas com molhos de livros. Pessoas jovens, foi muito interessante. Alguns ficaram clientes. Foi uma inovação que nunca tinha visto. Funcionou bem. Sabendo que isto tem uma carga emocional grande, sei que os meus clientes vão para onde eu for. Isso atenua um pouco, faz ter força para continuar. Só têm de perceber que tenho de parar uns meses para cuidar de mim.

Os meus problemas são os livros do MEC

Recuando até à sua infância. Veio para aqui muito novo. Percebeu muito rápido que isto ia ser a sua vida?
O meu pai foi presidente em Alcobaça até 1975. Depois foi preso em Caxias com um grande amigo dele. Foram momentos muito difíceis para a família. Reconhecem que foi o melhor presidente da câmara, fez uma obra notável, construiu infraestruturas, trabalhou muito com o ministro Veiga Simão, conseguiu lá meter escolas e liceus, não havia nada. Trabalhou com muita gente de esquerda, como o escultor José Aurélio, comunista, onde se fez a Feira de São Bernardo, que ficou feriado de Alcobaça.

O meu pai era da ala mais liberal do Marcello Caetano, quando via que as pessoas tinham valor, ajudava. Quando foi o funeral, muita gente veio de fora, até do estrangeiro, vieram ter comigo a chorar, a dizer que se não fosse ele, a sua vida estaria muito pior. Tinha muitos contactos em Lisboa, conseguia arranjar passaportes, era muito arriscado. Foi o presidente de câmara mais novo do Estado Novo e deputado mais novo da Câmara Cooperativa. Havia a ideia de fazer uma transição para a democracia de outra forma, depois com a revolução e com algumas injustiças… ainda tenho o mandado de captura do Otelo de Saraiva para o meu pai, por “associação de malfeitores”… Há um documentário onde se vê o povo que invadiu a câmara a perguntar por ele, porque foi preso e não lhe tinham dito. A partir daí, o meu pai fechou-se um pouco. Sofreu muito. Viemos para Lisboa. Dormíamos nos corredores, os meus pais lá atrás. Contado hoje pouca gente acredita, mas é a realidade.

"Há quem deixe obras à biblioteca X ou Y e, muitas vezes, deixam as caixas fechadas, acaba por se estragar tudo. Não querem trabalhar com a arrumação e catalogação, meter aquilo a funcionar de maneira que seja fácil para os estudiosos irem lá."

Foi fácil arranjar este local?
Foi através do meu tio, que tinha um antiquário à frente, alugámos aqui. Depois de tudo, o meu pai ganhava dois contos na câmara, nunca teve reforma, sempre trabalhou para a terra. Até ao fim, foi provedor da Misericórdia, sem nunca pedir despesas nem nada. Conseguiu realizar o sonho de fazer um lar de referência nacional em Alcobaça. Já com a doença de Parkinson a começar, íamos lá todas as semanas. Fez muito em prol dos outros.

Este sítio passou a ser a sua casa, então.
Somos quatro irmãos. Sempre senti que tinha de fazer um caminho ao lado do meu pai. E trabalhar com um pai não é nada fácil. Como era fechado, às vezes fazia coisas boas, um bom negócio por exemplo, e nós estamos numa idade em que queremos mostrar trabalho e orgulho, e, ao princípio, foi difícil. Fazia gestos pequenos, mas não era expansivo. Foi-se criando uma relação, era o meu mais próximo e distante amigo. Era um melómano excecional, muito sensível. Íamos ver livros para o Norte, sempre os dois, desde os doze anos. Tivemos momentos sem palavras, de proximidade total e absoluta. Nem era preciso dizer nada a seguir. Quando víamos os livros já havia uma empatia tal, que mal se abria, nem era preciso dizer nada. Claro que também estudei muito, fui aprendendo com as tertúlias que havia com vários autores como o Martim de Albuquerque, Ruy Cinatti ou o Alexandre O’Neill, muita gente.

Era impossível fugir desse ambiente.
Era, era. Claro que é preciso ter vocação, não é para qualquer pessoa. Tenho a sorte de trabalhar no que gosto, pouca gente pode dar-se a esse luxo, o que é pena. Vejo isso nos jovens, por causa de políticas de educação, não se incentiva para seguir outro caminho que não seja serem gestores, economistas e por aí. Nota-se que as pessoas não estão satisfeitas no estudo, nem para fazer um métier, uma carreira de encadernador, um trabalho manual. Vão ser cada vez mais precisos e quem for bom não vai estar dependente de empresas nem tem de fazer mais nada na vida. Se uma pessoa se especializar pode ter uma vida cheia e realizada, sem prestar contas a ninguém. Diz-se que não dá dinheiro nenhum… Os cursos foram acabando ou baixando a qualidade porque não houve investimento.

Esse é o seu curso não é?
Sim. Perguntaram ao Boris Johnson para que é que serve um curso de filosofia clássica, ao que ele respondeu: “para ser primeiro-ministro de Inglaterra”. Esses cursos muito especializados vão contra o conceito de universidade, que é ter uma visão geral das coisas, como o Leonardo Da Vinci, que sabia um pouco de tudo. Às vezes oiço os especialistas a falar… não era capaz de ter uma vida assim. É muito redutor. Julgam que estão certos, mas não há nada melhor do que ter mundo, perceber a história das coisas. Há quem a queira apagar agora, não pode ser. Fará sempre parte de nós e da alma de um país.

"Hoje há um certo desinteresse pela História. Nunca mais ouvi falar dos professores que marcaram imenso, como o Vergílio Ferreira no Liceu Camões"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Está a referir-se a algum revisionismo histórico até na área da cultura, como nos filmes. Também sente isso nos livros?
Separo a vida pessoal da obra. Essa é uma das chaves para ter continuado o trabalho com o meu pai. Como esteve preso, criou situações difíceis de entender. O truque foi tê-lo aceitado como pai, apesar dos ressentimentos, mas também como uma pessoa com enormes qualidades e com defeitos difíceis de suportar. Demorou anos. Como sabia da sua sensibilidade, tentei compreender, é um processo de redenção pura, dando tudo o que tenho para aqui. Intensificou-se mais quando adoeceu, tive o cuidado de o ir buscar todos os dias a casa, num terceiro andar sem elevador, porque sabia que gostava de estar aqui, mesmo já não conseguindo ver os livros. Mesmo sabendo que era muito difícil ver que já não tinha as faculdades todas. Depois tive a recompensa. Nesse processo, uma vez no corredor virou-se para mim e disse: “já não consigo vir mais, quero agradecer todos estes anos, só te peço que não falte nada à tua mãe até ao fim”. Custou-lhe fazê-lo. Quando o disse, deu-me o primeiro abraço a sério na vida. Essa é a coisa mais valiosa que tenho, não há dinheiro que o pague. Esperei anos, foram muitos. Cumpri com o pedido. Deu-me muita força para continuar.

Conseguir isso demora uma vida inteira.
Desde pequenino que sabia que ia ter uma missão ao lado dele. Sabia que ele ia precisar dessa ajuda.

Retomando a conversa da revisão histórica: deduzo que não concorde.
Há um enorme exagero, falando do politicamente correto. Muita gente exalta-se nas redes sociais, mais gente jovem. A culpa não é delas, é do sistema educativo que tem vindo a ser facilitado. Não dão bem as coisas. Os professores são mal tratados. Hoje há um certo desinteresse pela História. Nunca mais ouvi falar dos professores que marcaram imenso, como o Vergílio Ferreira no Liceu Camões. Tinham amor ao que faziam. Sabiam relacionar aspetos maus, hoje impensáveis, à luz daquela época. É importante saber-se o que se passou para vermos como evoluímos enquanto espécies e sociedades. Está-se a chegar a um termo em que não se pode dizer nada. Não consigo entender, não consigo. Podem ferir suscetibilidades, mas é preciso compreender o pensamento da época. Nem sei que lhe diga, estou cansado.

Voltando a Alcobaça. Como está o objetivo do Centro de Estudos?
O meu pai tem a maior biblioteca de Cister em Alcobaça. Sei o que falta comprar, tenho os seus apontamentos. Sempre me falou nisso, mas enquanto não estiverem reunidas as condições para o fazer, com dignidade, num local apropriado, vou continuar a completar a coleção. Agora estão a fazer obras gerais no Mosteiro. Também não há muito dinheiro para a cultura, como se sabe. Nem é por causa do dinheiro, nunca irei vender esta história de amor, de duas gerações. Não se consegue transpor num valor, não consigo. É um conjunto único. Os livros antigos vão sendo cada vez mais raros e difíceis de apanhar.

"Se um filho meu quiser seguir isto, tudo bem, mas terá de partir dele. E sei que não é fácil fazer ver que isto é uma profissão de futuro. Mas é, se for bem feito. Escrever bem os livros, compreender o passado, saber o que estamos a tratar. E tenho clientes em todo o mundo. Demora muitos anos. É um trabalho contínuo até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo."

Está lá?
Está cá. Esteve, mas regressou. Enquanto não houver as condições e vontade local para fazer algo como deve ser, porque é preciso condições para os livros estarem bem preservados, vou continuar a completar a coleção. Quero fazer tudo com calma. Tem de ficar escrito, bem clarificado, para aquilo não morrer. Há quem deixe obras à biblioteca X ou Y e, muitas vezes, deixam as caixas fechadas, acaba por se estragar tudo. Não querem trabalhar com a arrumação e catalogação, meter aquilo a funcionar de maneira que seja fácil para os estudiosos irem lá.

O seu pai passou-lhe o testemunho desta livraria. O Bernardo já ponderou essa passagem?
Já falei nisso a algumas pessoas. Muitas livrarias acabaram quando o livreiro morreu. Poucas tiveram a sorte de terem um filho que seguisse as pisadas do pai. E olhe que é difícil viver à sombra de alguém tão carismático como o meu pai. Daí ter sido importante fazer os tais catálogos, fazendo o melhor trabalho possível. Mas não vou pensar nisso, porque o meu pai nunca me forçou a ficar aqui. Também não o vou fazer à minha filha ou a outra pessoa. Se tiver de acabar, acaba. Aliás, é transversal em todo o mundo. Toda a nossa história foi pautada por tudo ter sido feito com amor e o melhor que conseguíamos. Essa é a chave para não me sentir amargurado se isto acabar um dia. Se um filho meu quiser seguir isto, tudo bem, mas terá de partir dele. E sei que não é fácil fazer ver que isto é uma profissão de futuro. Mas é, se for bem feito. Escrever bem os livros, compreender o passado, saber o que estamos a tratar. E tenho clientes em todo o mundo. Demora muitos anos. Este é um trabalho contínuo, até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo.

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