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The Roosevelts

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Bob Dylan está do lado certo da história

Telmo Rodrigues, autor das teses "Bob Dylan: Música com Poesia" e "For a Lark: The Poetry of Songs", escreve sobre o novo Nobel da Literatura, "um dos escritores mais importantes das últimas décadas".

Bob Dylan acaba de ganhar o Nobel da Literatura e os livros que escreveu não o qualificariam para o prémio, com certeza: a qualidade de Tarântula é, na melhor das hipóteses, dúbia e as Crónicas, excelentes como são, não constituem matéria suficiente para explicar o prémio literário. Seguir-se-ão nas próximas semanas, portanto, um conjunto de invectivas contra a Academia Sueca premiar um “não-escritor”, em detrimento de outros que realmente escrevem livros e que mereciam mais (um nome desconhecido da maioria das pessoas seria certamente menos polémico e deixaria muitos felizes). Contudo, se há uma virtude na atribuição deste prémio, que seja o facto de algumas pessoas se poderem hoje escandalizar com um assunto literário.

Há muitos anos, num artigo de opinião de um crítico de música português, publicado em vésperas da atribuição do Nobel, argumentava-se que se Bob Dylan era candidato ao prémio, teríamos de abrir a possibilidade a outros cantores, muito mais próximos daquilo a que chamaríamos “poetas”; se era para dar o Nobel a um cantor, certamente que Leonard Cohen, com obra poética publicada, seria mais consensual. Nesse texto ecoavam os rumores de que Dylan seria um candidato forte ao Nobel desse ano, uma pretensão que tinha vindo a ganhar força desde a década de 90, quando o professor Gordon Ball começou a sua demanda por aquilo que achava ser o necessário reconhecimento do génio de Dylan (uma demanda a que se juntaram muitos mais nomes durante os anos seguintes, em particular o do eminente Christopher Ricks). Duas décadas depois a Academia reconhece que Dylan é um nome incontornável: mas será mesmo um escritor?

crónicas

“Crónicas”, de Bob Dylan (Ulisseia)

Uma defesa rápida, mas desajeitada, de Dylan escritor seria incluí-lo numa história muito antiga de tradição oral, onde textos que circulavam apenas oralmente são hoje tratados por especialistas, que recolhem e conservam as várias versões de um mesmo poema. Esta tradição não esquece, obviamente, a relação de dependência que a poesia e a música mantiveram até pelo menos à altura do Renascimento, altura em que começaram a tornar-se independentes uma da outra. Defender Dylan como apenas mais um nome nesta linhagem é válido, como antologias poéticas têm feito nos últimos anos, incluindo-o ao lado do de Pete Seeger, por exemplo, em secções com títulos tão vagos quanto “Cultura Folk” (curiosamente, há uns anos, ignoravam-se estas distinções e na secção de poesia contemporânea apareciam textos de Dylan e de John Lennon e Paul McCartney). Mas pô-lo nessa lista parece pôr de lado a originalidade e alguma da produção lírica mais inventiva que se viu nas últimas décadas, seja no seu período áureo nos anos sessenta (Bringing it All Back Home, 1965; Highway 61 Revisited, 1965; Blonde on Blonde, 1966), seja com a obra-prima dos anos setenta (Blood on the Tracks, 1974), seja com as obras-primas posteriores, como, por exemplo, Oh Mercy (1989) e Time Out of Mind (1997).

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Uma segunda defesa de Dylan escritor, mais técnica, seria notar que as canções estão cheias de referências literárias e que isso denota preocupações típicas de escritores; mas preocupações literárias não originam necessariamente textos literários, maus ou bons, e não é por isso que Dylan é mais interessante. Esta defesa não coloca questões sobre a natureza dos textos, considerando simplesmente que letras de canções têm validade enquanto poemas; muitos dos fãs mais acérrimos de Dylan acham que é assim que se deve tratar a obra do autor, na busca incessante de segundos sentidos e referências autobiográficas — criou-se até uma “ciência” dedicada ao estudo de tudo o que diz respeito à vida do cantor: a Dylanologia.

Para quem gosta apenas de ouvir Dylan, em sentido inverso, falar do cantor enquanto poeta não passa de heresia e pôr uma canção de Dylan no papel e tentar decifrá-la é diminuir toda a sua magia. Provavelmente estarão certos, como provam os milhares de versões de Dylan que circulam: por muito bom compositor que Dylan seja, e muitos ficaram famosos a cantar canções suas, uma canção de Dylan requer a voz de Dylan, as modelações vocais únicas que este lhes introduz (e que fazem da sua voz, ao contrário do que muitos detractores consideram, um portento de técnica). Para estas pessoas, poesia é uma coisa que fica apenas no papel e não pode capturar uma essência particular de Dylan que só pode ser apreendida pela audição; só num sentido muito abrangente de poesia, em que toda a arte sublime é um acto poético, é que Dylan poderia ser considerado poeta.

A relação de Dylan com a literatura torna claramente infundados os receios de que agora qualquer pessoa esteja apta a vencer um Nobel da Literatura; aliás, a relação entre música e poesia é demasiado evidente para aceitarmos esse tipo de cinismo.

Em 1983, Dylan escreve “Blind Willie McTell”, uma canção que só seria editada em 1991 (The Bootleg Series Volumes 1–3, 1991) — provavelmente um dos momentos maiores da carreira. Aí, reproduzindo uma estrutura clássica de canção folk, Dylan cantava sobre um conjunto de lugares comuns nas canções da folk americana, coisas que está a ver e a ouvir e que incluem a toponímia e o ambiente que esperaríamos encontrar nesse tipo de canções. Depois, na última estrofe, Dylan menciona que vê e ouve estas coisas da janela do hotel St. James, numa referência à canção popular “St. James Infirmary”. Nesse movimento de se pôr à janela de um hotel que era simultaneamente uma referência a outra canção, Dylan inclui-se a ele próprio entre todas as coisas que fazem parte daquilo que é a tradição americana. Ora, esse movimento parece ganhar hoje, mais do que nunca, relevância, uma vez que com este prémio Dylan vê reconhecido o seu lugar numa tradição literária americana à qual, independentemente de o considerarmos escritor ou não, pertence indelevelmente.

Aquilo que este Nobel representa não pode ser visto, assim, como mais do que o reconhecimento de uma carreira que tem estado sempre ligada à literatura, quer pela relação que manteve desde cedo com a poesia Beat, quer pela relação que foi mantendo, e ampliando ao longo dos anos, com uma tradição popular americana que reproduziu nos vários discos que foi (e vai) editando. Essa relação de Dylan com a literatura torna claramente infundados os receios de que agora qualquer pessoa esteja apta a vencer um Nobel da Literatura; aliás, a relação entre música e poesia é demasiado evidente para aceitarmos esse tipo de cinismo.

O que se segue, então, a Dylan ter ganhado este prémio? Em primeiro lugar, justiça seja feita: se algum cantor merecia o prémio, Dylan era certamente o mais merecedor. Mas para quem gosta de Dylan, e acha que o prémio é justo, este não significa nada mais do que umas semanas de incómodo: pessoas que não gostam de Dylan farão piadas sobre o Nobel da Literatura não escrever livros ou sobre outros possíveis candidatos (e, conforme a qualidade humorística de quem se pronunciar, seguir-se-ão um conjunto de nomes distintos) que nos farão encolher os ombros e franzir o sobrolho. Depois regressará tudo ao normal: continuaremos a ouvir Dylan com a reverência que sabemos que merece e conservaremos a mágoa por não conseguirmos convencer mais pessoas de que este é um dos escritores mais importantes das últimas décadas.

Telmo Rodrigues é doutorado em Teoria da Literatura pelo Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa. Autor da tese de mestrado “Bob Dylan: Música com Poesia” e da tese de doutoramento “For a Lark: The Poetry of Songs”.

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