O primeiro voo espacial da empresa privada SpaceX, rumo à Estação Espacial Internacional, leva a bordo dois experientes astronautas da NASA, Robert L. Behnken e Douglas G. Hurley, colegas e amigos há vinte anos. Ou simplesmente Bob e Doug – como todos os funcionários da NASA e da SpaceX os tratam.
“Fiz questão que todos na SpaceX conhecessem Bob e Doug como astronautas, como pilotos de teste, mas também como pais e maridos”, disse Gwynne Shotwell, presidente da empresa que construiu a nave Crew Dragon ao New Yor Times. E foi o que aconteceu. Os media não resistiram à história dos dois amigos de longa data, ex-pilotos militares, casados com duas colegas astronautas – que conheceram na turma de 2000 da NASA – ambos pais de um rapaz, com histórias de vida semelhantes mas personalidades distintas. Hurley é mais organizado, Behnken é o extrovertido.
Afinal, quem são os dois astronautas, de quarentena há duas semanas por causa da pandemia de Covid-19, que estão a bordo da cápsula Crew Dragon, lançada pela SpaceX?
Countdown Dress Rehearsal ➡️Complete
Today, @NASA astronauts @Astro_Doug and @AstroBehnken participated in a dress rehearsal of the launch day events.@45thSpaceWing predicts a 40% chance of favorable weather conditions for the #LaunchAmerica mission. https://t.co/2lbhYX9Ae2 pic.twitter.com/y225wOSUXf
— NASA Commercial Crew (@Commercial_Crew) May 23, 2020
Ex-pilotos militares que se tornam amigos na NASA
Os dois astronautas têm percursos bastante semelhantes – mas foi só em 2000 que os caminhos deles se cruzaram. Ambos são ex-pilotos militares que chegaram ao posto de coronel – Behnken na Força Aérea dos Estados Unidos, Hurley nos Marines. Os dois entraram para a NASA em 2000, e foram dois dos 17 astronautas selecionados pela agência espacial naquele ano.
Bob Behnken, 49 anos, é natural de Saint Ann, um subúrbio de St Louis, Missouri. Em 2010, ele descreveu o lugar como “uma espécie de bairro de trabalhadores”, acrescentando: “Acho que, em termos de personalidade… sou uma pessoa da classe trabalhadora”. E chegou mesmo a trabalhar na construção civil, até descobrir que executar uma obra, ao ar livre e no calor do verão, não era para ele.
Formou-se em física, em 1988, e uma bolsa militar (tal e qual como Hurley) deu-lhe a oportunidade de estudar engenharia mecânica na Universidade de Washington, em 1992. Seguiu-se o mestrado na mesma área e, anos mais tarde, um doutoramento concluído no Instituto de Tecnologia da Califórnia, em 1997 – também conhecido como Caltech, uma universidade de elite que ganhou fama com a série de televisão, A Teoria do Big Bang.
Depois dos estudos, Behnken passou à prática e foi para a Escola de Pilotos de Teste da Força Aérea na Base de Edwards, na Califórnia, ao mesmo tempo que trabalhava no Corpo de Treino de Oficiais da Reserva da Força Aérea como engenheiro de testes. Nesse período fez mais de 1 500 horas de voo, acumulando experiência em mais de 25 tipos diferentes de aviões.
Já Douglas Hurley, de 53 anos, cresceu em Apalachin, Nova Iorque. “Era uma cidade pequena…só tivemos um semáforo quando eu já estava na faculdade”, contou Hurley em 2009.
Formou-se em Engenharia Civil na Universidade de Tulane em 1988. Nesse ano, cumpriu uma comissão como segundo tenente no Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, antes de seguir para a Escola de Treino de Voo na Virgínia. Em 1991, Hurley serviu em três locais no Pacífico Ocidental e, em 1997, foi escolhido para frequentar a Escola de Pilotos de Teste Navais dos Estados Unidos, em Maryland.
Já na NASA, trabalhou na equipa de apoio aos astronautas para as missões de transporte STS-107 e STS-121.Em 2009, foi ao espaço pela primeira vez no Endeavor. E em 2011 voou na missão final do vaivém espacial.
Curiosamente, foi na agência norte-americana, durante a recruta, que Bob e Doug conheceriam as duas astronautas com quem, mais tarde, se viriam a casar – e que também faziam parte da classe de 2000 da NASA. Os casais estiveram presentes nos casamentos uns dos outros.
Família: “Porta-te bem, não dês problemas à mãe”
A mulher de Bob Behnken é Megan McArthur, uma oceanógrafa que integrou a missão do vaivém espacial que fez uma última viagem, em 2009, para reparar e atualizar o Telescópio Espacial Hubble. Como membro ativo do corpo de astronautas, está na corrida ao lugar de primeira mulher a pisar na Lua em 2024, segundo o cronograma da NASA. Os dois são pais de Theodore, de seis anos.
Na última conferência de imprensa, Behnken não escondeu o orgulho de partilhar com a família esta missão: “No meu primeiro voo (para o espaço) eu ainda não tinha um filho, então estou realmente empolgado por tê-lo aqui comigo, a acompanhar de perto esta aventura”.
Doug Hurley é casado com Karen Nyberg, uma astronauta que passou seis meses na Estação Espacial Internacional, em 2013. O treino para a missão arrancou alguns meses depois do nascimento do filho Jack, atualmente com 10 anos. Essa altura, coincidiu também com o facto de Doug se estar a preparar para o seu primeiro voo – o que obrigava a mãe a levar a criança para a Rússia, onde decorriam os testes, mas outras vezes ficava em casa com os avós, no Texas. Os dois revelaram que os primeiros anos de vida de Jack tiveram de ser intercalados com as missões espaciais dos pais.
“Literalmente, desde que Jack tinha idade suficiente para compreender as coisas, já estava a caminho da Rússia ou a falar através do Skype com a mãe”, contou Hurley ao jornal Houston Chronicle em 2013.
Esta tarde de sábado, minutos antes da chegada ao foguetão, Doug Hurley, já equipado com o fato espacial preparado pela SpaceX para os astronautas da NASA, despediu-se da família e deixou um recado ao filho: “Porta-te bem, não dês problemas à mãe”, o que arrancou risos à equipa da NASA.
Amigos de longa data: “Terminamos as frases um do outro”
Se para os Estados Unidos esta missão é especial porque marca o regresso do país aos voos tripulados, a partir de solo americano – a última missão do programa Space Shuttle foi a 21 de Julho de 2011, dia em que a Atlantis aterrou no Kennedy Space Center – também para Bob e Doug é um momento emotivo.
Cada um deles voou para o espaço duas vezes em missões de vaivéns espaciais, embora nunca o tenham feito juntos. “Ter a sorte de voar com seu melhor amigo… acho que muitas pessoas gostariam disso. É como ter um segundo par de mãos”, assumiu Hurley, numa conferência de imprensa, este mês. Acrescentando, ainda, que sabe instantaneamente quando faz algo errado, porque o amigo “não sabe esconder bem”.
Essa cumplicidade é uma das vantagens da missão, segundo Behnken: “O que é útil para nós, enquanto equipa, é o longo relacionamento que Doug e eu temos”. “Estamos naquele momento da relação em que, além de terminarmos as frases um do outro, podemos quase prever, pela linguagem corporal, qual é a opinião da pessoa que está ao nosso lado ou o que ela fará, qual será sua próxima ação.”
Behnken admitiu, ainda, que Hurley é o mais organizado dos dois.
Também o bom humor entre os astronautas ficou claro num vídeo divulgado NASA. Behnken disse que estava ansioso pela queda, na água, no final da missão, tendo acrescentado: “Espero que haja um pouco de vómito nesse momento final. Quando atingirmos essa oportunidade de fazer isso juntos na água, é estranho de se dizer, mas estou ansioso por esse tipo de comemoração.” Hurley, mais sério, lá acabaria por concordar com o amigo e reconhecer que o vómito comemorativo no final da missão “será excelente”.
Treino: dos botões arcaicos ao ecrã sensível ao toque
Em agosto de 2018, Hurley e Behnken foram anunciados como a tripulação principal do Demo-2, o primeiro voo da SpaceX com tripulação a bordo.”Bob e eu, nos últimos dois anos, fazemos quase toda a nossa vida na Califórnia, trabalhando lado a lado com o pessoal da SpaceX. Só assim foi possível chegarmos a este ponto”, relatou Doug Hurley recentemente. Foi toda uma aprendizagem, dos elementos técnicos mais complexos à utilização do ecrã sensível ao toque, disponível na Crew Dragon – e bem diferente dos botões arcaicos e gorduchos dos painéis de instrumentos das antigas naves espaciais.
Apesar do avanço da tecnologia, Hurley reconheceu que a sua experiência como piloto de teste nas aeronaves militares se mostrou crucial no trabalho com a SpaceX. “Isso, por si só, ajudou-nos muito, porque durante os treinos para as missões das forças armadas, também há atrasos, desafios técnicos, imprevistos com os quais não estamos à espera de ter de trabalhar, mas temos de o fazer”.
E o que não faltaram foram contratempos — incluindo duas explosões que destruíram uma das cápsulas do Crew Dragon, num teste de solo, ou problemas com os paraquedas. Apesar dos revés, a equipa não perdeu a motivação. “Estávamos bem preparados para isso, acho que o não cumprimento das datas de lançamento originais não causou frustração na NASA”, explicou Hurley.
Este sábado, tal como Neil Armstrong e os seus colegas da missão Apollo 11, os dois norte-americanos partiram da plataforma 39A do Centro Espacial Kennedy, na Florida, para uma segunda tentativa. Desta vez, bem sucedida. “É uma honra ser parte deste grande esforço para colocar os Estados Unidos de volta no negócio de lançamentos. Falamos com vocês em órbita”, afirmou o astronauta Doug Hurley, minutos antes do lançamento.