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“The Harder They Fall” era o título original. Em português, ficou: “A Queda de um Corpo”, dando-lhe um travo a sequela de “A Queda de um Anjo”, de Camilo, mas agora com um cadáver. Na verdade, era um filme sobre boxe – ou sobre as histórias de podridão e sobrevivência em torno dele. Humphrey Bogart era Eddie Willis, um antigo jornalista desportivo desempregado a quem Nick Benko (Rod Steiger) dá uma segunda oportunidade como relações públicas de Toro Moreno (Mike Lane), o novo pugilista que quer trazer para a ribalta. Mas, rapidamente, Eddie começará a perceber a farsa: os combates encenados, os adversários pagos ou decadentes, o fabrico de um mito que desafie o campeão do mundo para um combate que distribua dinheiro por todos.

Não sendo um dos títulos essenciais da carreira de Bogart, é um filme muito decente, livremente baseado no escândalo que envolveu, nos anos 30, o campeão Max Baer e o challenger Primo Carnera. Dirigido pelo canadiano Mark Robson e escrito por Philip Yordan (que assinara, dois anos antes, o argumento do obrigatório-em-toda-a-lista-de-melhores-filmes-que-se-preze “Johnny Guitar”).

10 frases de Bogart que nos ensinam a ser uns homens

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  • “O problema do mundo é que está sempre uma bebida atrasado”
  • “Não posso dizer que amava a minha mãe. Admirava-a”
  • “Um cachorro no estádio é melhor do que um bife no Ritz”
  • “A única boa razão para ter dinheiro é esta: poder mandar qualquer FDP do mundo para o inferno”
  • “Se toda a gente no mundo bebesse três copos, acabavam-se os problemas”
  • “Representar é como fazer sexo: ou se faz ou se fala sobre ele. É por isso que desconfio sempre de pessoas que falam muito de qualquer dos dois assuntos”
  • “Detesto funerais. Os funerais não são para o gajo que está morto; são para os gajos que estão vivos e gostam de chorar”
  • “Não és uma estrela até saberem soletrar o teu nome em Carachi”
  • “Eu não sou bonito. Fui; já não sou. O que tenho na cara é personalidade. E foram precisas muitas noitadas e muita bebida para a pôr lá”
  • (E as suas mitológicas últimas palavras:) “Nunca devia ter passado dos scotchs para os martinis”

Bogart não gostou de contracenar com Rod Steiger. Nada de pessoal – não gostou de muita gente. Mas Steiger, que mais tarde ganharia o Óscar por “No Calor da Noite”, foi um daqueles casos especiais que mereceu comentário público: “Estes tipos do Actor’s Studio resmungam as deixas… Não consigo ouvir as falas, deixo passar a minha deixa… Não me agrada esta escola do coça-o-rabo-e-resmunga.” Mas a razão por que “The Harder They Fall” ficaria na História seria outra: era a última vez que veríamos Bogie no grande ecrã.

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Pouco depois da estreia, e ao cabo de muitos anos de carreira como grande fumador e bebedor, o cancro veio buscá-lo. Mas Bogie, é claro, deu-lhe luta. Durante um ano. Retiraram-lhe o esófago e dois gânglios, emagreceu até não pesar mais do que 36 esqueléticos quilos. Resistiu até completar 57 anos e morreu, dias depois, quando já todos os outros gigantes, de Sinatra a John Wayne, o tinham ido visitar e preparado para um mundo sem ele.

Reposições à parte, há, portanto, 60 anos que o grande ecrã não tem Bogart. James Dean tinha morrido pouco antes. Aliás, pode-se dizer que nascera e morrera no fulgurante ano de ‘55. Marlon Brando estava a começar – e Bogie via nele o futuro: “Vai ser grande assim que tirar aquela batata da boca”. Quando visitou a rodagem de “Um Eléctrico Chamado Desejo”, o tubérculo parecia já ter mudado de dono: “Este tipo vai estar a fazer Hamlet quando o resto de nós já andar a vender batatas.”

Houve Brando, houve Newman, ainda veio Redford. Mesmo assim, Bogie permaneceu a maior lenda do cinema mundial, diz a Entertainment Weekly. O maior ator de sempre, garante o American Film Institute. Mas e hoje? Quem são os grandes galãs? Apareceu alguém capaz de levar o título ou Bogart ainda é o homem?

60 anos depois, o “último homem do século XIX” enfrenta seis representantes do século XXI. Que vença o mais duro – ou o mais cool.

Contra Ashton Kutcher

BEIJING, CHINA - AUGUST 25: (CHINA OUT) Actor Ashton Kutcher attends "Jobs" press conference at National Convention Center on August 25, 2013 in Beijing, China. (Photo by VCG/VCG via Getty Images)

Quem diz Ashton Kutcher podia dizer Ryan Reynolds. Aliás, podem vir os dois. E trazer os amigos. Falamos de Kutcher e Reynolds como arquétipos de um tempo de tipos engomadinhos com uma rebeldia que não vai além do cabelo milimetricamente despenteado. Um tempo de hipsters, de imberbes, de cremes – por amor de Deus! Cremes! De cada vez que Kutcher põe um hidratante e Reynolds um esfoliante, Bogie dá três voltas na tumba. Kutcher e Reynolds são os meninos bonitos que ganharam o passaporte para o estrelato por serem, respetivamente, os companheiros de Demi Moore e Sandra Bullock. Quanto a Bogart, dificilmente terá usado produto mais perfumado do que o seu scotch. Apesar de ser um filho de boas famílias, escolheu caminhar sozinho. Foi expulso da escola por mau comportamento, andou a conduzir camiões, esteve 20 anos a fazer teatro e a receber papéis secundários em filmes menores. Subiu a pulso, fazendo teatro e filmes menores e papéis secundários. Para chegar aos 300 mil dólares que lhe pagaram por “Sabrina”, em 1954, teve de começar pelos 400 por semana de “Up the River”, em 1930. E, quando finalmente, lhe deram uma oportunidade como protagonista num filme com visibilidade, já tinha mais de 40 anos. Relativamente ao poder que pudesse exercer sobre as atrizes… Foi casado com quatro. E morreu novo.

Contra Channing Tatum

LONDON, UNITED KINGDOM - MARCH 18: Channing Tatum attends the UK Premiere of G.I. Joe: Retaliation at Empire Leicester Square on March 18, 2013 in London, England. (Photo by Stuart Wilson/Getty Images)

Bogart media um metro e 73 – ainda assim, mais três épicos centímetros do que Tom Cruise. Os enquadramentos e disposição dos atores no plateau tinham de ser cuidadosamente estudados para que parecesse maior. E, em “Casablanca”, precisou de umas gloriosas plataformas de 12 centímetros que lhe permitissem superar a fórmula “um metro e 75 suecos centímetros de Ingrid Bergman + saltos”. Channing Tatum tem um metro e 85, e grandes abdominais e peitorais fabricados no ginásio. Bíceps, tríceps e quejandos (que também dava um bom nome para um músculo) tonificados com algum ferro e muitos batidos. Ganharia a contenda a Bogie? O tanas (desculpem a expressão medieval, mas ainda é a coisa mais parecida que temos com um “My ass!” que se possa usar em público). Bogart combateu na Primeira Grande Guerra. Alistou-se na marinha e o barco em que seguia foi atacado por submarinos alemães. Reza, aliás, a lenda que foi na Guerra, numa luta com um prisioneiro, que arranjou o rasgo no lábio que lhe daria aquele ciciar inconfundível. Mandou passear o senador McCarthy quando os americanos andavam loucos na caça às bruxas por comunistas em Hollywood. E, acima de tudo, jamais apareceria em tronco nu num filme. Bogart em tronco nu? Por amor da santa. No tempo de Bogie, o charme de um homem não residia na forma como se despia, mas na forma como se vestia. Não estava no six-pack; estava no chapéu, na gabardine. E nunca mais ninguém usará um chapéu e uma gabardine como Bogart.

Contra Bradley Cooper

HOLLYWOOD, CA - FEBRUARY 22: Actor Bradley Cooper attends the 87th Annual Academy Awards at Hollywood & Highland Center on February 22, 2015 in Hollywood, California. (Photo by Jason Merritt/Getty Images)

Bradley não é mau tipo. Não é só o rapazinho giro que gamou a Irina ao Cristiano Ronaldo. É um ator bem decente, que está a tentar construir uma carreira sólida, com boas opções, trabalhando com excelentes realizadores e colegas e até já contando com algumas nomeações a prémios importantes. Parece esforçar-se bastante… e o problema é mesmo esse. Voltem a pôr os olhos em Bogart: parece-vos em esforço? Embora de um bom ator se espere, evidentemente, uma panóplia de personagens diversificada, não é menos verdade que queremos que aporte, a cada uma delas, o seu cunho, a sua personalidade, aquela assinatura que se mantém, atravessa todos os papéis e faz com que dois grandes atores nunca pudessem fazer o mesmo papel da mesma forma (De Niro fará à De Niro e Pacino à Pacino, por exemplo – e Deus sabe como gostamos desses bocadinhos de De Niro e de Pacino em todas as personagens que fazem). No caso de Bogart, o que dava a cada persona era a gravitas, um certo negrume, o sarcasmo, aquele ar de quem já viu e fez tudo. Bradley Cooper tem ar de tipo porreiro; Bogie não era porreiro – Bogie era duro. Bradley Cooper está sempre a dar tudo; Bogie limitava-se a dar aquele bocadinho mínimo do cool. Grave, low tune, sério, cínico, noir. Se, por absurdo, pudessem hoje entrar os dois no mesmo filme, o resultado seria óbvio: Cooper haveria de ser o empregado esforçado cujos olhos brilhariam a cada luminosa tirada do grande chefe Bogart.

Contra Brad Pitt

LONDON, ENGLAND - FEBRUARY 16: Actor Brad Pitt attends the EE British Academy Film Awards 2014 at The Royal Opera House on February 16, 2014 in London, England. (Photo by Chris Jackson/Getty Images)

Passados os três primeiros rounds e arrasada a atual geração de galãs, recuemos à anterior (que ainda permanece, supomos, muito válida). Deixemos de fora Tom Cruise, o cientologista, e Johnny Depp, a marionete travesti – seria demasiado fácil – e passemos a Brad Pitt. Pitt, o homem que até os homens acham bonito. Brad Pitt, o leading man que nos deu impagáveis momentos de cinema, por exemplo em “Seven”, “Clube de Combate”, “Snatch”, “Sacanas sem Lei” ou “12 Macacos” e… OK, a quem também tivemos de suportar “Conhece Joe Black?” e “Lendas de Paixão”. Brad Pitt, o homem que sacou Angelina Jolie e o homem que tem de aturar Angelina Jolie. Será ele quem vai, finalmente, derrubar Bogart? Bem, primeiro é preciso dizer que foi provavelmente Pitt o maior responsável pela moda de os filmes terem de dar pelo menos um plano do protagonista em tronco nu – e, portanto, de só poder ser protagonista quem tiver abdominais esculpidos por Miguel Ângelo. Bogie nunca nos obrigou a isso. Bogie era, acima de tudo, o estilo: a forma como fumava, como segurava o copo de whisky, até um guarda-chuva. Nunca seguraremos um guarda-chuva com o mesmo estilo de Bogie, mas não nos sentimos seres inferiores na evolução da espécie por causa disso. Depois, porque justa ou injustamente, Pitt fica, acima de tudo, como o sex symbol. Isto é, ninguém lhe põe em causa o talento, mas, vamos ver: também ninguém imagina que seja mais inteligente do que bonito. Já Bogart era um exímio jogador de xadrez a quem desafiavam amiúde para se tornar profissional (o vício era tal que, durante a guerra, jogava por correspondência). Entre os amigos, muitos deles argumentistas, era conhecida a compulsão que tinha pela leitura, bem como a capacidade de debitar citações a propósito de qualquer assunto, incluindo umas boas centenas de frases de Shakespeare. E a densidade dessa vida interior era levada para as personagens, invariavelmente homens inteligentes e de olhares e silêncios difíceis de decifrar. Há quem diga, aliás, que mais do que o Rick Blaine de “Casablanca” ou o Charlie Alnutt de “A Rainha Africana” que lhe valeria, finalmente, o Óscar, foi o Dixon Steele de “In a Lonely Place” o papel que, verdadeiramente, se lhe ajustava como uma luva. O escritor misantropo, complexo, solitário, egoísta, alcoólico, sacudido por rasgos de violência.

Contra Clooney

WASHINGTON - OCTOBER 12: Oscar-nominated actor, screen-writer and director George Clooney answers reporters' questions after meeting with U.S. President Barack Obama at the White House October 12, 2010 in Washington, DC. Clooney and human rights activist and co-founder of the Enough Project John Prendergast met with Obama to discuss their recent trip to Sudan and the threat there of a war ahead of a referendum election. (Photo by Chip Somodevilla/Getty Images)

Outra opção ali um pouco ao lado de Brad Pitt seria George Clooney. Mas vejamos… Sim, tem cabelos brancos para se bater na mesa dos grandes. Foi construindo, ao lado da carreira de galã, a reputação de tipo respeitado, que também realiza, produz e que até se interessa pela vida que possa existir fora do planeta do showbiz. Mas aquela esfrega dos anúncios de café… Aquela coisa de andar ali a passear numa mansão no Lago Como e que, se não é mesmo dele, há de ser parecida com a que ele lá tem… Enfim, lembra-nos aquela outra tirada de Bogart, quando questionado acerca dos convites para fazer publicidade: “Desde que consigas pronunciar o teu nome e não estejas acusado de consumo de droga nem de violação, serves”.

Bogart foi também um dos primeiros actores a criar a sua própria produtora: a Santana Productions. E, já que Clooney, Pitt, Matt Damon e outros, andaram a brincar, na série “Ocean”, aos rat packs, vale a pena esclarecer que o rat pack original não foi sequer o de Sinatra, Dean Martin e afins, mas o que Lauren Bacall disse a Bogart e aos amigos quando lhe apareceram em casa depois de uma noitada de copos: “You look like a God-damned rat pack”. Por fim, não tenhamos ilusões. Se tirássemos Clooney da mansão do Lago Como e o puséssemos num ringue com Bogie… Bem, apostaríamos que Bogie “would beat the shit out of him” (mais uma sem grande tradução… Chegava-lhe a roupa ao pelo, vá.)

Bogart, afinal, foi aquele tipo que, depois da operação de nove horas e meia em que lhe removeram o esófago, não deixou de fumar; mudou para cigarros com filtro.

Contra DiCaprio

HOLLYWOOD, CA - MARCH 02: Actor Leonardo DiCaprio arrives at the 86th Annual Academy Awards at Hollywood & Highland Center on March 2, 2014 in Hollywood, California. (Photo by Axelle/Bauer-Griffin/FilmMagic)

Um combate renhido, reconheçamos. Aqui há uns anos, DiCaprio levaria uma tareia – como se viu em “Gangues de Nova Iorque”, diante de Daniel Day-Lewis – mas hoje… Hoje já não seria bem assim. DiCaprio já foi tudo: menino bonito e sujo vigarista de rua; polícia infiltrado e poderoso esclavagista; aviador milionário, louco, pedrado, mártir massacrado por ursos selvagens e homens sem escrúpulos. Tornou-se o ator-fétiche de um dos maiores cineastas de sempre – Scorsese – e um dos principais porta-vozes da questão ambiental. Pelo meio, andou com a Gisele Bündchen… Bom, no limite poder-se-á dar a coisa por um empate técnico, mas joguemos os argumentos de Bogart… “O último homem do século” (epíteto que recebeu por ter nascido nos últimos dias de 1899 – no dia de Natal, para ser mais preciso) não trabalhou com um dos maiores cineastas de sempre; trabalhou com quase todos: Ford, Houston, Ray, Billy Wilder… Tem três filmes na lista dos 100 mais inspiradores de sempre para o American Film Institute: “Dark Victory”, “A Rainha Africana” e “Casablanca” – e mais três no ranking das melhores personagens de todos os tempos: o Sam Spade de “A Relíquia Macabra”, o Fred C. Dobbs de “O Tesouro de Sierra Madre” e, claro, o Rick de “Casablanca”.

Bogart fez e foi, enfim, muitas coisas, mas, para desempatar esta contenda, fiquemos por uma última história…

Durante a rodagem de “Casablanca”, Bogart e Ingrid Bergman quase não se falavam em público. Mayo Methot, então mulher de Bogart (a terceira), acusou-o de ter um caso com a deslumbrante sueca e contratou mesmo um detetive privado para o seguir. Mas Bogie não só nunca se envolveu com Bergman – a razão de não lhe falar era, justamente, não dar azo a qualquer comentário que alimentasse ainda mais os ciúmes de Mayo – como topou o detetive “secreto”. Descobriu a agência onde trabalhava, conseguiu o contacto e ligou: “Vocês têm um tipo a seguir-me. Será que lhe podem telefonar e perguntar onde estou, por favor?”

Alguns anos depois, Ingrid Bergman diria esta célebre frase sobre o tempo em que trabalhou com Bogie: “Eu beijei-o, mas nunca o conheci.” Quando se encontraram mais tarde, era ela já casada com Roberto Rossellini e mãe, Bogie, mais uma vez, não foi suave: “Eras uma grande estrela”, disse, “O que és tu agora?” E Ingrid, a esfíngica Ingrid, respondeu: “Uma mulher feliz.”

O próprio Bogart haveria de ser feliz. Deixou a ciumenta Mayo e casou com Lauren Bacall – o último e mais longo casamento da sua vida: 12 anos, até que a morte os separasse. E também ele teve filhos, finalmente, levava já 49 anos. Primeiro, Stephen; depois, Leslie. Um dia, questionado acerca desses dias em que formou com Bergman o casal mais célebre do cinema, deixou por fim cair qualquer coisa parecida com um sentimento: “Não fiz nada que nunca tivesse feito, mas, quando a câmara avança para aquela cara de Bergman e ela está a dizer que te ama… ninguém consegue não ser romântico”.

Desculpa, DiCaprio. Bogie vence de novo. Que patrão.