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Ilustração contida em The Graphic, volume XXVII, no 703, 19 de maio de 1883.
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Ilustração contida em The Graphic, volume XXVII, no 703, 19 de maio de 1883.

De Agostini via Getty Images

Ilustração contida em The Graphic, volume XXVII, no 703, 19 de maio de 1883.

De Agostini via Getty Images

Bom tom e civilidade: regresso aos manuais das regras em sociedade em tempo de novas etiquetas

"Virar o dorso" em caso de espirro e evitar "expelir o ar em face alheia" num ímpeto de tosse. De Erasmo a um cónego português, viajamos às origens de um best seller: os manuais de boas práticas.

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Farto do desconforto provocado pelo uso repetido da máscara? Ainda não se habituou ao cumprimento do cotovelo? Atarantado com o excesso constante de preocupação com a higiene? É muito provável que as próximas estações frias agudizem os níveis de alarme e incómodo, como também é possível que um dia alguém escreva sobre as novas restrições e hábitos — mas, para já, saiba que não está sozinho numa eventual angústia. “Juntamente com a civilidade vinha o aumento do embaraço, que se traduzia, nesse caso, em regras de higiene (..) A civilização leva sempre à restrição dos costumes, e a dificuldade está em evitar o gesto natural”.

Reprimir o espirro, não coçar a cabeça e muito menos meter os dedos no nariz, não levar a mão à boca nem roer as unhas, nunca arrotar, são apenas algumas das recomendações e espartilhos com barbas. Estamos no século XIX, quando ganha força um novo género literário, que põe a clareza e a pedagogia ao serviço das boas maneiras, facilmente acarinhadas por quem procura os lugares cimeiros no elevador social. Os manuais do bom tom, como assim se designavam, dedicavam-se à “ciência da civilização” e introduziam os seus fiéis leitores nas atividades que marcavam a vida de sociedade: tanto forneciam informação utilíssima para o desempenho num baile, reunião, sarau e jantar como aconselham a evacuação diária, banhos de quinze em quinze dias, ou a troca de roupa branca “tão logo esteja suja”.

Atitudes e gestos que passaram a ser obrigatórios na época a que se dirigiam, com a história de semelhantes cartilhas a levar-nos, por um lado, a recuar séculos, e, por outro, a arriscar comparações com a atualidade, à medida que avançam o polimento dos gestos e a progressiva higienização da sociedade, num controlo ora político ora sanitário. “Enquanto as regras que começaram por ser impostas pelas ordens monásticas passaram pouco tempo depois a serem adotadas pela sociedade e quem não as cumprisse era rejeitado por esta, as regras de sociedade atuais (distanciamento social, trazer máscara, não se beijar, etc., ) irão provocar igualmente a rejeição de quem não as cumpre, pois estão a ser assumidas pela sociedade como obrigatórias”, confia Ricardo Charters d’Azevedo, autor de Códigos de Bom-tom ou de Civilidade (Hora de Ler), onde elenca vários destes guias que foram sendo publicados ao longo dos séculos, cuja boa aplicação dita a fronteira entre a rudeza e boçalidade e uma imagem irrepreensível. “Da mesma forma que antigamente havia “mal educados”, também hoje quem não cumprir as novas regras será visto como “um mal educado”; haverá pessoas com quem não queremos dar-nos”, resume.

De tamanho reduzido, práticos de tão portáteis, perfeitos para acomodar num bolso — para as indicações andarem sempre à mão de semear — o autor ainda preserva em casa, herança de família, muitos destes guias históricos, cujas referências ora nos parecem hoje profundamente datadas como perfeitamente atualizadas, já que muitos desses conceitos de civilidade sobreviveram. “O não cuspir no chão, não palitar os dentes com o garfo…a história do guardanapo, então, é extraordinária. Não existia, existiam os cães que passavam por baixo das mesas dos reis e as pessoas limpavam os dedos ao pelo. Quando apareceram os primeiros guardanapos, os nobres menos ricos usavam-nos para os atirarem uns aos outros ou guardarem pedaços de comida que guardavam nas botas para levar para casa”, recorda. “Há cem anos ainda havia escarradores em casa. Isso acabou. Como se está a perder o deitar cigarro para o chão. Tudo evolui”. Nem de propósito, é agora mais pesada a mão para quem se atrever a atapetar o chão com beatas.

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"Se, na presença de outras pessoas, ocorre um espirro, é de bom-tom virar o dorso. Uma vez passado o acesso, há de se fazer o sinal da cruz sobre os lábios e, a seguir, tirando o barrete, fazer um cumprimento às pessoas que disseram "saúde" ou que, pelo menos, deveriam tê-lo dito. Aos farsantes apraz emitir espirros estridentes e em série para ostentar, por certo, o seu vigor físico."
Erasmo de Roterdão

Quanto ao espirro e à tosse, dois dos maiores vilões contemporâneos, não pense que passam apenas a merecer enquadramento há cerca de 200 anos. “Não nego que a civilidade seja a parte mais modesta de toda a Filosofia, mas, ela tem, hoje, o condão de captar benevolência e predispor para a aceitação alheia nossas qualidades mais prestantes. É de todo conveniente que o ser humano seja bem composto nas atitudes, nos gestos e no modo de trajar-se”, escreve Erasmo de Roterdão ((1466 – 1536) em 1530, ano em que é lançado o seu De civilitate morum puerilium, ou Civilidade Pueril, onde sublinha que “a modéstia cabe bem em criança, principalmente nos filhos dos nobres. A bem dizer, há de se reputar por nobre todo aquele que cultiva seu espírito com a prática das belas artes”.

Do comportamento na igreja ao figurino a usar, não faltam recomendações para quase todos os domínios, servindo ainda conselhos sobre o que o cidadão exemplar deve fazer quando é apanhado de surpresa por uma resposta indesejada do corpo. “Outros há que, não por necessidade e sim por mera mania, tossem enquanto estão a falar. Isso é peculiar de mentirosos e de quantos tentam por inventar o que devem falar. (…) Surpreendido por um ímpeto de tosse, cuida de não expelir o ar na face alheia. Do mesmo modo não convém tossir com mais veemência do que necessário”. Mas há mais reparos, agora ao nível do nariz. “Se na presença de outras pessoas, ocorre o espirro, é de bom tom virar o dorso. Uma vez passado o acesso, há de se fazer o sinal da cruz sobre os lábios e, a seguir, tirando o barrete, fazer um cumprimento às pessoas que disseram Saúde ou pelo menos, deveriam tê-lo dito”.

Os centros de fé como centros de limpeza. A fonte de muitas das normas

Prepare-se para recuar ainda mais no tempo, porque a história das indicações que moldam o quotidiano em definitivo precede em muito o humanismo de Erasmo, que na transição da Idade Média para a Moderna, com a educação aprimorada a chegar apenas aos nobres e príncipes, compila de forma organizada essas regras de civilidade. “As regras, e nomeadamente as boas maneiras, também faziam parte da educação dos admitidos nos mosteiros, ou nos colégios. Indicavam os comportamentos que deviam ser adotados para serem socialmente aceites, bem como chamavam a atenção para tudo aquilo que deveria ser evitado. Por exemplo, a Regra de São Bento escrita por Bento de Núrcia no século VI, é um conjunto de preceitos destinados a regular a vivência de uma comunidade monástica cristã regida por um abade”, lê-se em Bom-Tom e Códigos de Civilidade, que destaca como o asseio se encontrava já inserido dentro das regras do saber viver. “São curiosas as considerações sobre os parasitas que, naqueles tempos, pululavam o corpo de muitos indivíduos, visto que eram classificados como “habitantes” naturais do corpo humano. Os higienistas da época, por exemplo, diziam que apenas o excesso de humores corporais provocava a proliferação dessa fauna parasitária”, continua o autor.

"Outros há que, não por necessidade e sim por mera mania, tossem enquanto estão a falar. Isso é peculiar de mentirosos e de quantos tentam por inventar o que devem falar. (...) Surpreendido por um ímpeto de tosse, cuida de não expelir o ar na face alheia. Do mesmo modo não convém tossir com mais veemência do que necessário."
Erasmo de Roterdão

E se os séculos XIV e XV foram marcados pelos tratados de cortesia, no século XVI encontramos em Portugal livros como O Dialogo com dois Filhos seus sobre preceitos morais em modo de jogo, de 1563, e o Espelho de Casados, de 1540, ambos de João de Barros, que distribuem mais informação útil em matéria de higiene. “Quando te assoes, não toques a trompeta do nariz e depois não olhes para dentro do lenço; evita de te assoares como as crianças, com os dedos e a manga; É uma coisa muito indecente limpar o rosto e o suor com o guardanapo ou limpar a ele o nariz ou o prato”. Ambos seguem o Il Galateo, overo de’ costumi  de Giovanni della Casa (1503 – 1556), muito influente durante o Renascimento, explorando temas como o vestuário, as maneiras à mesa, e a conversa.

Enquanto os manuais do século XVII norteavam os hábitos da corte, na passagem do século XVII para o XVIII, são as elites, “cada vez mais ameaçada pelos círculos burgueses em ascensão económica”, as principais destinatárias destes conjuntos de normas. Na segunda metade do século XVIII, alheia a inspirações humanistas, a civilidade coopera essencialmente para a construção de uma imagem, por um lado preservando a tradição de certos modos e por outro dando eco às novas condições condições sociais, políticas e económicas. É por esta altura, recupera Charters d’Azevedo, que se encontram publicadas em Portugal referências como um manual traduzido do francês por José Vicente Rodrigues, Elementos de civilidade e da decência que se pratica entre gente de bem, por M. Prevost, publicado no Porto em 1777. De resto, a corte de Versalhes é por esta altura o epicentro do luxo, da moda, da etiqueta, palavra que entretanto se impõe, e das hierarquias, claro.

Em 1786 chega Escola de política, ou tractado pratico da civilidade portuguesa, de D. João de Nossa Senhora da Porta Siqueira, que foi cónego regrante da Ordem de Santo Agostinho, e que no final da vida se dedicou a publicar várias obras, na sua maioria traduções.

"Se visitar um doente não faça de médico a não ser que tenha estudado medicina", recomenda George Washington.

Pintura de Johann Friedrich Karl Kreul (1804–1867)

As maneiras dão a volta ao mundo ou pelo menos à Europa e a uma América ocidentalizada. Conhecido pelos modos cavalheirescos, George Washington tinha apenas 16 anos quando copiou à mão uma lista com 110 regras que haviam sido compiladas por padres jesuítas do século XVI. Rules of Civility & Decent Behaviour In Company and Conversation foi lançado em 1744 pelo futuro primeiro presidente dos EUA, um exercício que traduzia assim ensinamentos originalmente publicados em França, Bienséance de la conversation entre les hommes. Dessa lista que surge na obra Regras da Civilidade de Amor Towles, destacam-se princípios também eles dirigidos a almas resfriadas. “Se tossir, espirrar, suspirar ou bocejar, não o faça alto, mas em privado; e não fale durante o bocejo, colocando antes o seu lenço ou mão diante do rosto e virando a cara de lado”.

Os populares conselhos do cónego Roquette. Um sucesso com 175 anos

Foi publicado em Portugal em 1845 e rapidamente granjeou uma legião de leitores fiéis, não só em solo nacional como na recém-criada corte imperial brasileira, sedenta de orientações como estas. O Código do Bom-Tom é provavelmente dos mais famosos manuais de civilidade e bem viver do século XIX. Escrito pelo cónego português José Inácio Roquette, nascido em Alcabideche, concelho de Cascais, em 1801, a quantidade de reedições de quem vem a gozar testemunham a sua popularidade em ambos os lados do Atlântico, com muitos destes preceitos a serem transmitidos de forma oral.

Código do Bom Tom, pelo cónego J.L Roquette, lançado pela primeira vez em 1845

“Os meus bisavós tinham quatro livros destes de edições diferentes, herdados, significa que eram muito usados”, recorda Ricardo Charters d’Azevedo, apontando para ensinamentos tão variados como o cartão de visita — “escrito a lápis, nunca a tinta”– ou o hábito de fazer visitas a enlutados apenas oito dias depois do funeral. Lições transmitidas de geração em geração e provavelmente desde tenra idade, como ainda hoje os pais continuam a passar regras aos filhos, confiantes no esmero da sua educação. De resto, em Código do Bom Tom, J.L Roquette recorre a uma fórmula bem conhecida: a do progenitor que fornece conselhos ao seu casal de rebentos. Órfãos de mãe, haviam sido educados em França e passados dez anos voltaram a Portugal. Em 1998, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, pela editora Companhia das Letras, organizou uma reedição deste clássico no Brasil, cujas regras “eram inspiradas nos manuais de boa conduta franceses e tiveram de se readaptar ao calor dos trópicos, onde a quantidade de banhos deveria ser maior que a dos franceses”.

Este é apenas um entre muitos livros do género que marcaram o século XIX e que se repetem, com edições revistas, aumentadas, títulos afinados e inúmeras traduções do francês, do italiano, do espanhol e do inglês. “O aumento da educação na Europa, levando a que a alfabetização se estenda a cada vez mais indivíduos justificará essa procura, a que se deverá associar o aumento do número de industriais e de comerciantes que, enriquecendo, vão recebendo títulos honoríficos e consequentemente pretendem saber como proceder na franja da sociedade a que agora têm direito a pertencer”, nota Ricardo Charters d’Azevedo. De resto, o exemplo de Roquette é apenas um dos mais conhecidos, com muitos outros a saírem desta época. Em 1838, por exemplo, é publicada a tradução para português da terceira edição (1828), do livro de D. José de Urcullu, publicado em Londres, Lições de boa moral, de virtude e de urbanidade, pelo cónego da Sé Patriarcal, Francisco Freire de Carvalho, impresso na tipografia Rolandiana. A tradução da obra do escritor e matemático castelhano que se refugiara em Portugal, várias reedições, como as 1847, 1854 e 1864.

Virar o dorso e proteger o outro de "uma resposta indesejada do corpo". Um dos fundamentos que se consolida por completo no século XIX

Pintura de Oscar Bluhm

Outro manual digno de nota, com as suas 371 páginas, é o de João Pereira Botelho de Amaral e Pimentel, Deão da Sé Catedral de Leiria, cujo título é A Sciencia da Civilização. Curso elementar completo de educação superior, religiosa, individual e social e publicado em Braga em 1865, com um índice alfabético de 10 páginas.

Já no século XX, é difícil ignorar o lastro do Tratado de Civilidade e Etiqueta, assinado pelo pseudónimo Condessa de Gencé (numa tradução de Luís Cardoso), composto e divulgado pela Livraria Editora Guimarães & Companhia de Lisboa, em 1909. Bíblia de consulta permanente na primeira metade do século, em 1925 já se encontrava na 8.ª edição e em 1968 atingia a 15.ª.

Ao jantar ou no jogo, a importância do autocontrolo: “Se não se sabe comportar, não vamos convidar”

É a partir de finais do século XVIII, e em toda a força já em pleno século XIX, que as boas maneiras são matéria-prima para o género literário que sai como pães quentes. “Podiam ser considerados quase best sellers. Tinham 10, 20 edições”, não hesita na classificação Irene Vaquinhas, autora de A lei da mesa. As praxes da etiqueta e as boas maneiras na sociedade de bom‑tom: algumas fontes para o seu estudo (século XIX‑princípios do século XX).

Muito bem acolhidos, sobretudo pelos estratos superiores, que aqui encontravam a bengala certa para a consolidação do seu papel na respetiva esfera, o quadro “não mudou assim muito”, comenta a Professora Catedrática do Departamento de História, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. “A pandemia veio de certa forma reativar certas regras de contenção, de um certo autocontrolo e de um saber viver em sociedade”, acredita, evocando uma rima de ouro, tão válida para tempos idos como, diríamos nós, para os nossos dias. “Se não se sabe comportar, não vamos convidar”, resume a autora, cujo trabalho se focou nas “regras elementares à mesa de acordo com um determinado estatuto social”, por outras palavras os comportamentos à mesa de “gente de qualidade”, como assim se dizia. “Serviam para distinguir quem tinha nível e quem não pertencia às elites. Ainda hoje passamos isso aos nossos filhos”.

O choque dos cavalheiros quando uma senhora se levanta da mesa para ir tocar o sino

Chegados a 2020, não precisamos de dominar os preceitos de um duelo entre cavalheiros mas passámos a lidar com uma nova etiqueta em espaços públicos comuns, restaurantes e eventos de lazer, onde nem sempre as prescrições são consensuais. Entre os encontros à mesa e a ocupação dos tempos livres, talvez não estejamos assim tão distantes de antigas coordenadas, que mais tarde haveriam de povoar as revistas femininas em toda a linha. “No século XIX, e início do século XX, havia dois tipos de comportamento que permitiam saber se uma pessoa tinha maneiras ou não. À mesa de jantar ou na mesa de jogo. A pessoa tem que ter o conhecimento das regras para saber estar com o outro. O jogo suscita as emoções e as pessoas podiam extravasar para além do que era aceitável e aconselhado em termos de relações sociais. É aqui que a pessoa tem que demonstrar que sabe as regras”.

“A pandemia veio de certa forma reativar certas regras de contenção, de um certo autocontrolo e de um saber viver em sociedade”, acredita Irene Vaquinhas, evocando uma rima de ouro, tão válida para tempos idos como, diríamos nós, para os nossos dias. “Se não se sabe comportar, não vamos convidar”

Contenção e sobriedade são as regras de ouro de uma burguesia para o viver em sociedade, com a mesa familiar do século XIX a assumir-se também como uma metáfora da ordem doméstica e familiar. E se hoje o brindarem com um toalhete desinfectante no final de uma refeição, ou mesmo à entrada do cinema, não há grande originalidade a assinalar. Abafar a tosse é já uma expressão muito precisa nos manuais do século XIX, tal como não se assoar ao guardanapo mas sim ao lenço, da mesma forma que lavar as mãos também se começa a impor enquanto prática. “Nas mesas de refeição havia as bacias para se lavarem as mãos. Aliás, há um caso de um encontro de chefes de Estado, já nos anos 30/40, em que um deles bebeu a água da bacia. Lembro-me que o anfitrião também a bebeu para evitar um conflito diplomático”, recorda a professora.

As leis do distanciamento: espaço do eu, moda e afetos na intimidade

A necessidade do uso de máscara, trazido pela Covid-19, pode ter redefinido a gramática — e, aos poucos, as modas, passando de puro mecanismo de defesa a acessório comercializado pelas principais marcas. Mas o léxico do saber estar, no que aos acessórios de vestuário diz respeito, é também ela uma antiquíssima e estratégica pasta, que o estalar da pandemia veio recuperar.

Em maio, o Finantial Times resgatava a evolução da volumetria ao longo do tempos, e a forma como a roupa tem sido um instrumento chave no distanciamento social. A propósito da exposição Power Mode: The Force of Fashion, realizada no Museum at the Fashion Institute of Technology, em Nova Iorque, mostrava-se como “fosse através de chumaços nos ombros, lenços, véus, luvas, uniformes militares ou cristas de punks, o estilo esteve sempre ligado à criação de espaço“. Entre vestidos do século XVIII e puffer jackets Balenciaga de 2016, a mostra iluminava esse papel da estrutura e do gesto na construção da nossa micro redoma e impacto visual. Mas se hoje as nossas preocupações com os dois metros de separação do vizinho são essencialmente de carácter higiénico, tempos houve em que o distanciamento social patrocinado pelas regras de vestuário nada devia ao receio de germes.

“No século XIX, para além das marcas de distinção de acordo com o género, o grupo etário, havia algumas regras de distanciamento mas eram em função dos grupos sociais. É interessante analisar aquilo a que os sociólogos definem como o espaço do eu. A primeira vez que tive noção disto foi quando fui à China pela primeira vez. A forma como se põem mesmo atrás de nós na fila do Multibanco é diferente. Nós criamos um espaço em relação à pessoa e precisamos dele”, nota Irene Vaquinhas, lembrando ainda como não é preciso um vírus para esfriar contactos ou refrear toques e beijos: “as manifestações de afeto eram reservadas para a intimidade, os afetos não se exibiam“.

Nos dias que correm, porém, com um democrático vírus entre nós, a literatura é extensível a todos: as regras aplicam-se a qualquer classe, apesar do enorme fosso que possa haver nos meios que cada qual dispõe para as cumprir. Voltando aos acessórios, será a toalha de praia XXXL a nova crinolina do século XXI?

A crinolina numa ilustração de John Leech, em 1847

“A moda pode não ser a primeira coisa que vem à cabeça quando pensamos em estratégias de isolamento, mas pode desempenhar um papel importante no distanciamento social, seja porque o espaço criado ajuda a resolver uma crise sanitária ou para manter afastado um pretendente incómodo”, define Einav Rabinovitch-Fox, professora assistente convidada da Case Western Reserve University, dedicada ao contexto político e cultural associado a cada uma destas escolhas.

As máscaras pontiagudas do tempo da peste bubónica podiam ter a saúde em primeiro plano, mas na época Vitoriana, a saia larga, extra volumosa, que se tornou uma referência de estilo em meados do século XIX, ajudou a cavar o fosso entre géneros e estratos. Sobre a famosa crinolina, “apenas as privilegiadas que podiam dispensar os trabalhos domésticos as podiam usar; precisavam de ter uma casa com espaço suficiente para poderem circular de forma confortável entre divisórias, bem como um criado que as ajudasse. Quanto maior a saia, maior o status“, aponta Rabinovitch-Fox num artigo de março para a The Conversation.

Ironicamente, ou de forma mais ou menos previsível, as imponentes saias acabariam por ser abandonadas, ironicamente por razões de higiene — e, já agora, para evitar que um incêndio roubasse a vida à sua dona, como chegou a acontecer. Bom, pelo menos até o presente milénio as reinventar e encaminhar de novo para as ruas, agora em formatos menos incómodos mas nem por isso sem ocupar o seu devido espaço — em alguns casos servem precisamente para manter o outro à distância. Quanto às máscaras dos nossos dias, museus como o Victoria&Albert já estão a reunir alguns modelos, que servirão de testemunho desta era aos curiosos do futuro.

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