Nasceu em Lisboa, há 71 anos, mas cresceu em Chaves. Considera-se profundamente transmontano, herdeiro de uma paisagem, de uma ancestralidade e seus profundos códigos de honra. Aos 17 anos, a morte precoce do pai e a necessidade de ajudar a família fizeram-no embarcar para Moçambique, onde um tio o ajudou a arranjar trabalho num escritório das obras públicas, na antiga cidade de Lourenço Marques. Ao mesmo tempo, começou a fazer provas para entrar no curso de medicina, onde só esteve um ano porque “não aguentava aquela tristeza”: “Sempre odiei tudo o que é triste e baixo”, diz-nos. Então ia para o porto ver os navios chegarem e partirem, sonhando meter-se num deles e, clandestino, desaparecer mar a dentro.
Um dia, a caminho da faculdade, decidiu tomar a direção oposta, assumiu que queria mesmo era estudar cinema e precisava de voltar para Portugal. Como não tinha dinheiro para a passagem, foi para o mato trabalhar como ajudante de tipógrafo em Vanduzi, junto da Gorongosa; seis meses acampado no mato naquilo que hoje considera “uma das grandes experiências humanas” da sua vida. Chegou a Portugal em janeiro de 1971, tinha 21 anos e a Revolução mudou-lhe novamente os planos. Militou em três partidos da extrema-esquerda, mas foi expulso de todos, essencialmente porque não conseguia entregar-se de corpo e alma a ponto de ser acrítico num tempo de exacerbação do coletivo que não estava para dúvidas individuais.
Desistiu do cinema e acabou em Sociologia, enquanto trabalhava a puxar cabos para instalar as linhas telefónicas. Entretanto, o marxismo vigente no ISCTE desapontou o anarca que se afirmara nas leituras de Max Stirner e no fascínio pelos extremos de Raskolnikov. Só a descoberta de Michel Foucault lhe animou os dias e acabou o curso com a ajuda do subsídio de desemprego. Chegou à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Universidade Nova de Lisboa, onde deu aulas nos cursos de Comunicação Social, até 2022, quando se reformou. Gerações e gerações de jornalistas passaram pelas suas aulas, cuja densidade de conhecimentos, exigência de reflexão e disponibilidade para aprender exacerbaram paixões, temores e ódios. Fumava cigarrilhas na sala de aula e impunha um ritmo de trabalho e pensamento tão intenso quanto a sua irrequietude. Ao mesmo tempo, fundou, na Universidade Lusófona, o curso de Comunicação Social, e hoje é reitor da maior universidade privada do país. Continua a ser um anarca, que rejeita qualquer movimento anarquista, qualquer pensamento ou posição totalitária, qualquer tentativa de o poder de uns servir para calar a voz de outros, porque acredita que todo e qualquer gesto, obra, pensamento ou palavra chega ao Real e nele provoca qualquer mudança. Por isso, rejeita as grandes teorias e milita por um mundo aberto a todos os possíveis.
O seu mais recente livro, Constelações, (Documenta/Sistema Solar) é o corolário de uma obra e de um pensamento, um conjunto de ensaios assentes na defesa da Constelação como a forma de pensar que mais pode dar conta de uma realidade hiper-complexa, sem tentar aprisioná-la em conceitos ou teorias fechadas. Este “pensar por imagens” da constelação, herdado do filósofo alemão Walter Benjamim, é aquele que nada rejeita, mas tudo acolhe, sem traçar linhas totalitárias entre o dentro e o fora, o certo e o errado, aceitando o único e o extremo, trazendo à visibilidade as possibilidades e potencialidades inscritas em cada coisa que entra no Real.
Costuma explicar que no princípio não era o verbo, no princípio era a imagem. E tudo isso começou enquanto adolescente solitário e melancólico, que se escapulia para ficar horas a olhar as águas do Tâmega…
Eu era filho de uma mãe que, de atriz em Lisboa, foi mais ou menos desterrada para Chaves pelo meu pai, um jogador compulsivo. Éramos uma família que não cabia na “normalidade” de uma cidade pequena. Por autodefesa, descobri cedo o refúgio nos livros e na observação silenciosa das águas. Felizmente, em Chaves havia uma biblioteca da Gulbenkian e o meu pai levou-me lá e pediu ao bibliotecário que orientasse as minhas leituras. Até aos 14 anos aceitei as orientações dele, aos 14 anos comecei a rebelar-me, queria ler a Nana, do Zola, e ele achava o livro impróprio para a minha idade. Mas lá acabou por ceder e a partir daí o mundo e a leitura transformaram-se totalmente para mim. Depois desenvolvi uma paixão pelo Dostoievsky, mais precisamente o Crime e Castigo, que ele também não achou bem. Mas não podia explicar-lhe o meu fascínio pelos extremos em que vivia o Raskolnikov. Ele só me queria deixar ler os clássicos portugueses, queria que eu fizesse “leituras saudáveis”, e guardo até hoje um carinho enorme por esse homem, com a sua vontade de proteger-me, só que eu queria outras coisas. Os meus pais eram uns desadaptados que me foram desadaptando a mim e à minha irmã. Aprendi desde cedo a viver nas margens, num certo isolamento, salvo pelo quietismo do rio e a convulsão dos livros, os únicos lugares onde eu me sentia bem.
Apesar disso, sente-se identificado com esse Norte, com essa terra transmontana e os seus ancestrais códigos?
Fui educado segundo esses códigos de honra, que nessas terras ainda são muito fortes, códigos que vêm de uma profunda ligação das pessoas à terra, e exigem clareza, franqueza, mas também a necessidade de defesa. Foi ali, a olhar o rio Tâmega, fascinado pelas imagens que ele refletia, que me formei e desenvolvi uma relação intensa com a água, o passar tranquilo da água, que me fez mais tarde sentir-me próximo de Heráclito. Esse deixar ir, esse fluxo, são iguais a um livro, ou à vida. É uma corrente onde temos de procurar a orientação, arriscando o naufrágio.
Foi ai que nasceu essa que é a sua postura profundamente crítica perante o mundo, a postura da dúvida socrática?
Nesse tempo, mais do que não estar disponível para receber passivamente o mundo, eu não estava disponível para receber nada. Sentia que havia uma pressão enorme sobre a vida individual das pessoas e a minha mãe instilou-me a mais doce das doenças que é o mundo dos livros como alternativa ao mundo real. Ali eu construí um pequeno asilo para mim mesmo que me defendia do mundo. Depois os sofismas nihilistas de Dostoievski, as minhas leituras de Nietzsche, fizeram o resto.
Como é que esse miúdo deixa esse reduto e parte, sozinho, para Moçambique aos 17 anos?
O meu pai morreu quando eu tinha 15 anos e, como disse, tinha impressos muito fortemente esses códigos de honra. Não queria ser um peso para a minha mãe e a minha irmã. Seria incapaz de viver sentindo-me um peso na vida de alguém. Claro que foi um abalo tremendo chegar sozinho a Maputo com uma auto-confiança toda construída em cima do sublime da literatura, da poesia e da filosofia, e confrontar-me com a violência, a guerra, a burocracia. Posso dizer que foi uma queda a pique no real.
Como tenho um grave problema de visão, consegui não ser incorporado no exército. Fiquei a trabalhar num escritório e quando podia escapava-me para o porto da cidade e ficava a olhar os navios. Só pensava em como fugir dali. Imaginava-me entrar clandestino num navio e desaparecer. Entretanto, entrei no curso de medicina sem qualquer interesse naquilo. Mal entrei nos laboratórios e vi um cadáver senti uma tristeza tão profunda que percebi que não podia ficar ali. Já nessa altura era um spinozista antes de o ser, queria encontrar toda a alegria possível. Ainda andei lá um ano mas acabei por desistir. Decidi que queria voltar depressa para Portugal e ir estudar cinema. Então arranjei um trabalho como ajudante de tipógrafo e fui viver para um acampamento no mato, na região de Vanduzi, onde reencontrei o meu amor pelas montanhas. E foi aí no cimo de uma delas que tive a experiência do sublime, essa explosão interior que achava ser apenas uma fantasia literária.
Desembarca em Lisboa, em janeiro de 1974, com 21 anos, e é apanhado pela Revolução de Abril ainda antes de entrar na Escola de Cinema.
Depois do 25 de abril a Escola de Cinema fechou durante dois anos, portanto nem cheguei a entrar. Meti-me na política. Militei em pelo menos três partidos de extrema-esquerda. Partidos pequenos, mas asfixiantes, e fui sendo expulso de todos. Uma dessas expulsões foi “por desvio teoricista”, porque organizei umas leituras coletivas de livros que não eram bem vistos… de outro fui expulso porque dormi enrolado na bandeira do partido [risos]. Era tudo tão absurdo, e eu que não sou capaz de me entregar absolutamente a nada como era exigido nesses tempos… nunca consigo aderir totalmente a nada, não consigo evitar uma certa distância que me tornava uma pessoa “estranha” nesses ambientes fechados. Mas o que podia fazer se havia em mim essa fissura, essa incapacidade de adesão absoluta ao que quer que seja?
Apesar dessa irrequietude, dessa rejeição do pensamento único, como sobreviveu e sobrevive numa instituição tão complexa como é a Universidade?
Nunca estive bem. Precisei sempre de ir fazendo outras coisas. Quando fui para o ISCTE, onde vigorava o mais rígido pensamento marxista, já tinha lido e publicado o mais radical pensador europeu, Max Stirner, e interessou-me a sua maneira de exorcizar os “fantasmas” que, para existirem, precisam da nossa carne e alma. Foi nessa fase que me comecei a interessar pelo Foucault e percebi que a Cultura era a área que mais me interessava porque era suficientemente aberta, porque a partir dela eu podia pensar a Arte, a Filosofia, a Comunicação. Em 1982, entrei para a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, para dar Teoria da Comunicação. Foi um tempo muito bom, praticamente pusemos de pé o primeiro curso de Comunicação Social em Portugal. E fui-me afastando da Sociologia, porque é uma ciência que só pode funcionar a partir de grandes abstrações, visões totalizadoras da vida e dos problemas. Parte do princípio de que podemos compreender a totalidade do mundo a partir de uma teoria ou de uma série de conceito e sempre achei essa atitude uma grande arrogância. Acredito mais no poder inventivo da poesia. Como escreveu Mallarmé é a potência poética que cria os deuses, as leis, os livros. Mas enfim, há quem ache que pode ter certezas epistemológicas, que pode circunscrever a vida em teorias, como se elas não fizessem parte da vida, a tal ponto tudo se perde no emaranhado de teorias em discussão entre si, mas sem chegarem a algum resultado.
Rejeita, portanto, os grandes edifícios teóricos como resposta?
Os teóricos estão numa guerra total de todos contra todos e acham que dali sai alguma coisa, mas só sai mais confusão, ou seja, uma incapacidade de olhar limpidamente para a vida. No tempo teológico, como havia uma única “teoria”, a coisa parecia funcionar. Perdida essa unicidade, parecia que a teoria poderia substituí-la, mas esse tempo da história já tinha passado, e as teorias revelam-se como puros artefactos. Luta-se através delas, não pela verdade, mas pelo poder, acima de tudo pelo poder de acumular, mobilizar, dirigir. A grande ilusão dos modernistas assentava na ideia de que através dessas abstrações poderiam chegar ao Real. Mas “o Real” é aquilo que excede tudo. Por mais muros que criemos historicamente, reais ou teóricos, tudo rumoreja por todo o lado, tudo está em permanente convulsividade. Por um lado, temos essa ideia de segurança construída a partir de teorias que pretendem abarcar todo o Real. Por outro, temos uma Filosofia que tem a ilusão de juntar tudo, a História e a Natureza, para simular que domina simultaneamente a História e o Cosmos. Tudo isso tira-nos a capacidade de olhar com olhos límpidos a vida, o Real. Já dizia o Lacan, “o Real é o que estraga a festa”. É que o Real é mutante, contingente, acidental, é aquilo que nos obriga ao movimento, à absorção do choque e ao contínuo estabelecimento de novas ligações, a novas invenções. Tudo parece ser evidente até que um novo choque, um novo acidente, altere tudo e seja preciso recomeçar. Só podemos pensar o que é o Real a partir da aceitação que há um “lá fora” indominável, que a “natureza” é o grande exterior sobre a qual tudo assenta. É preciso estar à altura do cosmos para que cada um dos nossos atos seja significativo.
Costuma dizer que “é preciso estarmos à altura do Acontecimento”. O que significa?
Para mim, hoje, que tenho 70 anos e sou um velho, continua a vigorar a pergunta kantiana: “O que fazer?”. Cada vez mais, vivemos dentro de uma trama de ligações mais densas, objetos, tecnologia, poder, imagens. Somos formados no contexto das estruturas históricas que rigidificam o agir, que o enformam e canalizam. Essas formas são necessárias, ou como dizia Nietzsche, são fatais por terem vindo à existência, mas são também limitadores de outras possibilidades mais justas e mais belas. Trata-se de encontrar uma via entre a fatalidade e o possível. É certo que o acontecimento naquilo que tem de inesperado e de interruptor, essa exterioridade que se faz imperiosamente , “instabiliza” a rigidez do existente, perfila-nos e força-nos a responder. Nenhuma resposta tem qualquer garantia que não seja a que se deixa iluminar pelo agir livre.
A Esquerda tende a ver nessas formas históricas o capitalismo como a mais determinante, concorda?
Marx dedicou algumas dezenas de anos da sua vida a pensar o que era isso do capital, mas essa sua tentativa de fixar de uma vez por todas o que “é” o Capitalismo apresenta uma serie de dificuldades, porque o Capitalismo, como qualquer outra teoria, não explica tudo ou projeta uma lucidez ilusória. Por mim, tendo a partir da posição de George Bataille de uma Economia Geral, onde existe uma série de formas conflituantes: temos o capitalismo mas também temos uma economia social, uma economia da dádiva, uma economia do amor, a economia da guerra, a economia política. Isto significa que reduzir a questão da Economia ao Capitalismo parece-me de todo insuficiente.
O capital está em conflito com todas as outras formas de economia mas a verdade é que nunca as conseguiu abolir, o que mostra que a economia humana é demasiado complexa para ser reduzida ao Capitalismo. Claro que, em teoria, tudo aquilo faz sentido, mas a prática da vida humana desmente sempre a perfeição das teorias, porque são sempre uma abstração. Em cada tempo, em cada economia, criam-se instituições que nascem e morrem no fervilhar da vida que sempre as transcende e perante isto o Capitalismo como teoria parece-me manifestamente insuficiente.
Esta posição mostra que se afastou dessa Esquerda na qual militou?
Nunca me identifiquei com um pensamento que acredita que pode entender e resolver o mundo a partir da sua estrutura económica, por mais poderosa que ela seja. Claro que o capital financeiro tem hoje um poder imenso, que a crescente pobreza é um problema grave e urgente, mas o mundo não pode ser lido apenas a partir dai. A Modernidade libertou uma série de forças, como a guerra, a técnica, a ciência, a arte, as imagens de todo o género… tudo isto está aí, está a agir continuamente sobre o mundo, e não se podem arrumar como a manifestação de uma dada estrutura económica. São sempre mais do que isso.
O filósofo e ensaísta francês Alain disse que quando alguém diz que não é de esquerda nem de direita sabe logo que essa pessoa é de direita. Salva-se a frase pelo humor, mas o efeito é bem menos alegre, trata-se de encostar alguém à parede e abrir o confessionário, noutros tempos o pelotão de fuzilamento. Tudo é bem mais simples, cada ato urgente que exige uma resposta e essa resposta não está pré-determinada por uma posição “imutável” e absolutamente certificada, tem que resultar de uma decisão livre. As classificações vêm depois, e sem muito interesse. Sem essa “liberdade livre” de que falava Rimbaud e que está ínsita em cada ato, tudo se resumiria a um automatismo puro e duro ou a uma falsa coerência, que nos obrigaria a ser coniventes com tudo seja e esteja decidido pela “direita” e a “esquerda”, consoante os gostos. Ora, esse princípio de coerência é a base da indignidade em política.
Nesta Modernidade que desamarrou forças que estiveram séculos amarradas pela teologia, tudo entrou no domínio do planetário. Criar uma comunidade humana justa não se consegue por alterarmos apenas uma parte do problema. Hoje há uma relação muito complexa entre a esfera mais íntima dos indivíduos e o planetário. É nessa complexidade que eu me coloco; a das forças à solta que criam dissonâncias, bifurcações de toda a ordem e na quais se perfilam certas promessas históricas, como a de uma comunidade livre e justa. Mas essas promessas não se fundam em nada que não seja o facto de terem sido anunciadas, pelas religiões, as filosofias. Trata-se de saber e que lado se está perante tais anúncios ou prenúncios.
É essa a posição do anarquista?
Coloco-me muito para lá do regime político que está associado ao Estado. Não é o Estado que define a política, mas é esta que impede que ele se torne impolítico ou politicida. Sendo o estado um existencial, tudo se joga na relação com ele. É essa relação que faz da democracia algo de essencial. Ora o anarquismo não consegue ter uma relação com o Estado que não seja negativa. É verdade que sempre procurei pensar a an-arkhé — que não se pode confundir com o que se tornou o Anarquismo no qual não me revejo. Isto nasceu com a minha leitura de Max Stirner logo depois do 25 de Abril e publiquei o livro dele, Ensaios Menores. Tinha eu 24 anos. Mais tarde, com o João Barrento, publiquei O Único e a sua Propriedade. “Arkhé” em grego significa fundamento, princípio, comando, edifício. A an-arkhé significa que a origem tem de ser permanente visada, naquilo que tem de arbitrário e de fatal. Sabe-se com os fundamentos absolutos produziram morte em massa na história, desde os sacrifícios aztecas ao esclavagismo e à estrutura sacrifical que fundou a história. No fundo, não há outro fundamento do que o poder originante que está em ato no real. Nesse aspeto, tal como Stirner vejo a política como uma grande responsabilidade de cada um de nós, a melhor marca da soberania do indivíduo. Dentro dessa visão, não se recusa nada do que existe, é a fatalidade do que existe, mas por existir não é um absoluto, pode-se alterar-se em direções mais conscientes. A an-arkhé significa que o inconsciente a história chegou ao fim, e que somos responsáveis pelos caminhos em que a endereçamos. Devemos dar lugar a agenciamentos ou associações que abram melhores possibilidades no interior do que existe, declinando-o e obstando às suas más inclinação, que são sempre a pendente fatal, cair no que se é, apenas por ter sido.
Dentro desta an-arkhé, fui muito influenciado por Stirner, mas também pelo poeta Mallarmé, por Duchamp, qualquer deles foi muito mais importante para mim do que Marx que li com entusiasmo na revolução. Porque ninguém supera ilusoriamente o que existe, e por isso rejeito o anarquismo teórico; é uma abstração do que existe, em função de um certo desejo ideal. Ora quem está mergulhado na vida até ao pescoço sabe que nenhuma teoria ou abstração servem. O movimento anarquista tem teorias, programas, vontade de persuadir, de se associar, fazendo tudo o fazem os outros…
No sul da Europa, e também em Portugal, O anarquismo não funcionou como movimento político mas desviou-se e materializou-se na poesia, na pintura, no cinema. E, sobretudo, neste último, a an-arkhé está viva e recomenda-se. Ou seja, o espírito de resistência encontrou lugares melhores que a política para se expressar. Em Portugal, esse movimento é muito sensível, e para mim, o maior exemplo disso é o artista Álvaro Lapa, também ele leitor de Stirner. Isto quer dizer que aconteceu uma espécie de passagem esta resistência para o subterrâneo, sobretudo nos países ocidentais, onde os mais desassossegados se “refugiaram” na Arte.
O que defende, então, é a liberdade radical do sujeito?
Não existe “sujeito”, existe sim uma trama de ligações inscritas sobre a carne e as formas, que são coisas muito mais fortes do que “o sujeito”. Tudo que existe é um conjunto de relações formadas por expansões do corpo, onde uma certa atitude ganha forma. Esse elemento da an-arkhé é constitutivo de qualquer coisas similar a um “sujeito”, no duplo sentido de sujeitado e do que se afirma soberanamente.
Essa posição de rejeitar todo o tipo de totalitarismo, a começar pelo totalitarismo teórico que cada campo disciplinar emana, vai determinar toda a sua reflexão sobre a Cultura Contemporânea, que tem sido o seu principal campo de estudo. Porque é que retirou a Cultura do campo das Artes e fez dela um lugar privilegiado para pensar o mundo?
Aceitei há muito a tese de Marx de que “a época das interpretações terminou, entrámos na época do agir”. Depois de Hegel a filosofia chega ao fim enquanto interpretação do Real. O começo do agir é simultâneo à entrada da multidão na história. Há uma produtividade de sete biliões de pessoas no planeta e a ideia de que isso possa ser canalizado por uma teoria, ou por um império é contraditória. O Real está a ser afetado por cada gesto ínfimo, por cada livro obscuro que é publicado, por cada palavra, mas é suficientemente plástico para tudo receber e tudo acomodar. Tudo se acrescenta, transforma, mesmo que não sejam transformações radicais que ponham o mundo em convulsão. Claro que muito do que chega ao mundo já vem filtrado pelo poder dos senhores do mundo (dos chefes de estado aos comentadores televisivos), como pelas formas económicas, políticas ou estéticas que estruturam e intercetam todos os atos e adições. Vivemos num mundo movido pela força do acidente, da transformação, da metamorfose, o que nos indica que qualquer estrutura que vise controlar ou estabilizar o Real está condenada ao fracasso. Basta atentar em acontecimentos traumáticos coo nazismo ou a guerra incessante, que tornam a história um palco assombrado pelo mais puro arcaísmo, ou nos acontecimentos que nos advém da “Physis”, da “Natureza”, essa dimensão cósmica que se nos abriu com relatividade e a quântica e que a viagem de Gagarin foi um sinal marcante. Diante do inaudito cósmico (e planetário) temos de ter uma outra atenção aos sinais, ou menor, tornando-nos responsáveis pelo mais mínimo ato que façamos.
Contrariando a ideia que se vulgarizou, em parte por culpa dos media, de fazer da palavra “cultura” sinónimo da palavra “artes”, afirma: “Cultura não são as artes, é todo o existente”. Quer explicar melhor esta ideia?
Depois da grande crise da lógica da “civilização” vinda de França e da lógica da “kultur” vinda do romantismo alemão, a cultura tornou-se um lugar comum onde cabia tudo: era a cultura de escola, a cultura de empresa. Enfim, não significava nada. Por outro lado, havia ainda essa influência da cultura como impregnada de nacionalismo e romantismo. Quando criei a disciplina de Teoria da Cultura, queria libertá-la dessa dupla aceção; a de civilização e a de povo histórico. Interessa-me a cultura como o clima em que estamos imersos e que ninguém consegue descrever corretamente, ninguém consegue esgotar num nome. Como se disse, a cultura é o que fica quando tudo o mais desaparece. Ela comporta as artes, a política, a economia, a filosofia. Para mim, trata-se de um espaço aberto ao fazer-se das coisas.
Foi importante para mim a escrita do livro Analítica da Atualidade, a minha tese de doutoramento. Na época vivia-se uma dramatização da história. Por um lado, a desconfiança perante a ideia de que a história tinha um sentido obrigatório, ou este ou a extinção; depois, as teses do “pós-modernismo” que asfixiavam tudo; mais interessantes são as teses de Kojève sobre o fim da história. Estudando Foucault e depois saindo de Foucault percebi que é necessário suspender o discurso historicista, que a história não é movimento, mas o ponto do real onde estamos sempre a entrar. Com Walter Benjamim percebi que estamos sempre no puro “Agora”, que não se pode confundir como ” o presente” mas equivale ao que “está aí”, o que está a acontecer e a agir sobre nós, mas também atuante connosco, usando-nos. É o “Tempo do Agora” de que falava Benjamim. Mas é também a possibilidade de afetar a sua atualidade e atualização. A cultura é tudo o que, nesse fervilhar, faz o Homem, ela vem de todo o lado e está implícita em cada gesto nosso. È de certo modo o nosso ambiente climático.
Mas uma das ideias chave do seu pensamento sobre a cultura é a ideia de “ligações”. Como já disse, “não existe o sujeito, existem ligações”. Ligações acidentais, erráticas, fatais, desligações, onde se forja toda a existência humana.
A ideia que o Platão desenvolve no livro O Banquete é fundamental: é a ideia de um mundo regido por Eros, deus das ligações, que se opõe ao caos e à desligação. A ligação é, para mim, a grande problemática da cultura. E não é por acaso que a tecnologia adotou essas duas palavras, ligar e desligar, para a eletricidade, para as máquinas, etc. É porque a potência de ligação/desligação é fundamental na vida humana. O que é o “contrato” moderno senão uma forma de legislar e controlar as ligações, entre homens e mulheres, entre este e o trabalho, etc? O “contrato” visa reduzir o caos das ligações, estabilizando-as, deixando a funcionar no seu interior a possibilidade de desligar. Condição essencial que foi reprimida até à modernidade.
Pelas relações criam-se figuras vitais. Interessa-me, por exemplo, como os corpos nesse jogo de ligação/desligação produzem coisas como identidades sexuais, identidades nacionais, como os vários poderes, médico, jurídico, político tentar intervir sobre as ligações, como a tecnologia se apropriou da nossa potência de ligação criando máquinas que regem essas ligações. E o corpo é uma das questões centrais da nossa cultura, uma vez que ele é o lugar onde se inscrevem todas as imagens, todos os discursos. Ele é ao mesmo tempo animal e cidadão com um número de identidade, esses dois aspetos determinam profundamente as relações que estabelecemos uns com os outros, com a sociedade, a natureza, etc.
Do pensar sobre o corpo veio o interesse sobre as imagens. No princípio não era o verbo, eram as imagens. Elas vêm desse poder da Natureza se duplicar, de fazer árvores e elas se duplicarem nas águas de um lago tranquilo. É dessa potência da Natureza em se duplicar que nasceu a técnica. E é a imagem, mais do que a palavra escrita que vai determinar toda a história humana, feita de imagens essenciais, seja do Deus, seja do Belo. Pelas imagens que extraímos do mundo relacionamo-nos com ele, protegemo-nos da natureza, dos seus efeitos, das suas catástrofes.
É verdade que fomos formados no domínio da palavra oral, mas quando surge uma palavra é porque há uma imagem prévia que a vai fazer nascer. A palavra nasce das imagens e alimenta-se delas. Ou seja, a palavra nasce dentro de uma imagem que já foi traduzida e partilhada. A escrita contribui para a disseminação de grandes imagens, como os mitos, a religião. Mas a imagem é muito mais inquietante porque ela é avessa a fixar-se pela escrita. É por terem percebido o poder incontrolável das imagens que muitas religiões as proíbem.
Um dos desenvolvimentos técnicos que afetou profundamente a imagem e, consequentemente, a Cultura, foi a tecnologia de produção de imagens como a fotografia e o cinema. A técnica ou a “techné” como um dos pilares de toda a cultura humana é outro dos eixos da sua reflexão.
Na visão comum considera-se que técnica é uma invenção humana, que por isso mesmo está ao nosso alcance, que a dominamos e podemos aplicar com segurança. Mas existe um elemento de exterioridade que excede as formas históricas da “técnica, as nossas teorias, laboratórios e máquinas. Como sabiam os antigos, pense-se em Aristóteles, a técnica é uma mimesis da Techné da natureza, da “Physis”, que conseguimos replicar, extrair, pôr a funcionar no mundo histórico. Veja-se o caso do espelho. O espelhar está já em qualquer superfície líquida, nas pedras polidas, mas fixá-lo num “espelho” é algo de novo, acrescenta algo que não existia, mas que é exatamente o espelho. Ou o nosso relógio que imita as 24 horas da rotação da terra, mas é mais exato, Para pensarmos a técnica temos que começar a pensar a Natureza de forma diferente, uma vez que uma não existe sem a outra. É vital perceber que o somatório das máquinas não esgota a natureza nem a “técnica”, e que as imagens que dela criamos a têm sempre em excesso. Começamos agora a imaginar as máquinas que podemos extrair da mecânica quântica e da matemática, que serão crescentemente maravilhosas.
A ideia grega da “techné” foi traduzida pelos latinos por “pro-ducere” (produção), que significa “trazer ou conduzir algo à frente com segurança”. É nessa operação que se origina a ideia da técnica como uma produção já não espontânea da natureza, mas totalmente controlada por nós, humanos. O que nós fizemos foi dar a essa produtividade uma forma histórica. E temos a visão errada da Natureza porque acreditamos que aquilo que fazemos a pode dominar, quando, na verdade, ela é algo de exterior, cósmico, que nos escapa na totalidade, a que temos de responder localmente, na maior ou menor urgência da vida.
Numa perspetiva planetária, mas acima de tudo cósmica, essa ideia de cálculo total e controlo absoluto é ilusória. Em suma, aquilo que hoje chamamos “técnica” é, na verdade, um intermediário entre a Natureza e a História. E fomos aprendendo a duras penas como a ilusão de controlar a História e controlar a Natureza está a levar-nos à beira da extinção. Precisa-se da ilusão para se poder viver, mas viver na ilusão do controlo deixa-nos impreparados para o pior. Na verdade, temos de partir dos problemas, um a um a um, e responder da maneira mais lúcida e potente possível. A questão é que aqueles com vontade de controlo reconhecem apenas um problema total e, portanto, uma solução única.
No inconsciente da Técnica vivem as ligações?
A Técnica é um conjunto de ligações, por isso o que fazem as técnicas matemáticas e digitais é explorar e intensificar a nossa potência de ligação. Por detrás da intensificação da nossa relação com o telemóvel ou com as redes de computadores está a potência e a complexidade das nossas ligações uns com os outros. Dada a infinidade das máquinas que se espalharam pelo mundo, autores como Marx e Heidegger tentaram reduzir a “técnica” à “tecnologia”, acreditando que assim poderiam circunscrever a sua força.
Mas vivemos no delírio de grandiosidade de achar que as máquinas que extraímos da Natureza representam o nosso domínio sobre ela. Cada máquina que extraímos acrescenta, modifica o mundo, mas no Ocidente estivemos sempre presos a uma visão instrumental que diz que as máquinas são meros utensílios. Mas veja-se como o automóvel, como a técnica nos escapa sempre: é fácil aprender a conduzir um carro, a “dominar” a máquina, nas não somos capazes de resolver os problemas de trânsito, os acidentes, a poluição… não da mesma maneira. A ideia de instrumento que punha tudo à nossa disposição deixou de funcionar.
Daí a importância de não confundir “máquinas” com “técnica”. A Modernidade tem como principal característica a explosão e a aparecimento de infinitas máquinas que modificaram o mundo e as suas ligações. As máquinas entraram na nossa vida e tornaram-se parte fundamental dela. Crescentemente estamos a descobrir que se estão a tornar autónomas e inteligentes. Elas têm uma atividade própria, uma potência própria, cujos efeitos não conseguimos controlar, para o bem ou para o mal. Quantas máquinas de guerra deram origem a máquinas de tratam doenças? Elas são fruto da nossa relação com a Natureza, veículo de novas formas de ligações e teremos de criar novas relações com elas, como fazemos com os animais, com as plantas ou os vírus.
O que pensa então desta chegada da Inteligência Artificial que exacerba medos apocalípticos e utopias do progresso infinito?
Com a crescente naturalização e inteligência das máquinas do nosso quotidiano, já quase biológicas, algumas incorporadas no nosso corpo para nos aumentarem a possibilidade de vida, já devíamos ter percebido que as máquinas vieram para ficar. Todo o erro é encará-las como se fossem os novos “escravos”, era a tese de Marx, o que é algo que me repugna, pois acredito que precisamos de aprender a amar as máquinas, desenvolver com elas uma “filia”, uma amizade. Uma das pessoas que melhor mostrou esse amor entre o humano e a sua máquina foi a Clarice Lispector numa crónica sobre a sua relação com a máquina de escrever, esse texto é uma declaração de amor às máquinas… Querer escravizá-las ou dominá-las irá alimentar a velha guerra histórica de maneira crítica. Na ideia de domínio está sempre escrita a ideia de servidão.
Mas é um facto que as novas máquinas estão a introduzir mudanças na nossa vida, na sociedade, no trabalho e há uma crise geral aberta por elas, e isso exacerba medos milenares, e a sensibilidade apocalíptica volta a espreitar. Mas o que é o Apocalipse se não uma forma de impedir os outros de pensar, pois o medo não permite o diálogo, deixa-nos desmunidos perante as mudanças do Real. No caso da inteligência artificial essa sensibilidade exorbita-se.
Um óbice evidente é fazer a IA uma questão terminante, exigindo ser-se a favor ou ser contra. A IA e as suas máquinas relacionam-se com muitas outras, como as ligadas à energia ou à computação, bem como dispositivos históricos ligados ao trabalho, à guerra, à invenção, às artes, etc. É da criação de combinações mais potentes que tudo depende e é preciso intervir sobre as suas ligações, lutando contra as mais perigosas, as mais indignas, em favor de outras formas mais livres, justas ou belas.
Por outro lado, o “humanismo” que opõe máquina e humano, inteligência natural e artificial é desencaminhador. A terra, como diz a hipótese de Gaia, é um organismo inteligente, funcionando com uma matemática profunda que fomos extraindo e reinventando. De maneira espontânea criou a inteligência dos animais, dos vegetais e finalmente a inteligência humana. Com a inteligência artificial criou-se nova inteligência que se acrescenta a toda inteligência existente.
A inteligência disponível na Terra não é assim tanta que nos possamos dar ao luxo de dispensar máquinas que a produzam, e dou apenas como exemplo o campo da saúde no qual ela será vital. Querer diminuir a inteligência porque é artificial implicaria que a terra seria no seu conjunto, menos inteligente. Claro que no meio disto haverá muitas crises, clivagens, desemprego, pobreza, como já aconteceu antes com as revoluções industriais. Isso significa que o inconsciente histórico chegou ao fim, e com ele a própria história, e que teremos de fazer melhor do que nessa época que desabou sobre o mundo. Hoje estamos mais bem preparados que nessa época.
A Inteligência Artificial é uma inexorabilidade da vida humana? Como se já estivesse programada na inteligência da própria Natureza?
Nada é inexorável. É evidente que os algoritmos matemáticos, das primeiras máquinas de calcular até aos computadores, são formas de inteligência artificial. A calculabilidade generalizada que se inscreve na vida tem a mesma raiz. A diferença é que a as novas máquinas tem um poder crescente de autoaprendizagem, podem reparar-se a si próprias e mesmo alterar o seu código fonte, indiciando uma vida autónoma, que se cruza com os nossos corpos e cria entes — e não apenas os robots. Se não fosse uma possibilidade inscrita no bios, seria uma impossibilidade. De facto, revela-se como uma potência da natureza que está a dar os primeiros passos. Mas não se pode dizer, como Butler em Erewhon, que é uma nova espécie que se segue à humana e que irá substituir, mas que faz parte das potencialidades da própria espécie. Um tal processo tem perigos e potencialidades, que abusos de todo o género são possíveis, mas interessam-nos os usos “humanos”.
Não está a ter uma visão romântica da máquina?
Nenhum romantismo aqui. Os perigos são evidentes, basta pensar na bomba atómica ou nas armas biológicas. Trata-se de aceitar que as máquinas são as únicas aliadas que temos na solidão cósmica que é a nossa. A todos os níveis. Se queremos atravessar o limiar histórico da energia, provavelmente só as máquinas nos poderão ajudar. Daí ser vital o desenvolvimento da fusão nuclear. Somente através da AI e da computação quântica poderemos abolir a “energologia” histórica que usou e abusou da energia humana e animal para construção e para guerra, que parecia ter sido libertada pela eletricidade e as tecnologias modernas, mas que nos confronta atualmente com um limiar absoluto: o da extinção. É com mais Técnica e não com menos que conseguiremos responder à crise climática com que estamos confrontados, mas também crise demográfica e de vida que nos ameaça.
E como é que a tecnologia afetou e afeta a arte?
Há a ideia de a arte poder ser dominada pela tecnologia ou qualquer outro poder, porém essa ideia ignora a potência da Arte de fazer mundo, de iniciar e de dar a ver o novo. É verdade que em grego arte também se dizia techné, mas diferentemente da técnica, a arte corresponde a uma outra forma de vir à presença, de vir ao mundo. Diferentemente da arte simbólica, em que a arte equivalia à forma do mundo, a arte contemporânea é plural e aberta, mas também resistente e politicamente densa. A arte tem o poder de introduzir novas tonalidades no mundo, novas possibilidades. Nesse sentido, a obra de arte é sempre uma forma de abertura, porque, como já disse, tudo o que acontece tem a potência de transformar, de alterar o Real, seja em grande ou pequena escala. Se toda a coisa adicionada ao mundo tem um poder de alteração a arte é, acima de tudo, um trabalho que tem a alteração como substância necessária. Daí a necessidade libertá-la dos moralismos e da submissão a programas, pois é única forma de ação onde tudo pode ser possível. Mas sabemos como Sade, que defendeu isso mesmo, é hoje um autor maldito.
No seu novo livro, Constelações, propõe o pensamento constelar como o mais apropriado a pensar este Real tão complexo, não o fechando em teorias e conceitos totalizantes.
Para mim é importante não ser abstrato, nem essencialista, nem totalizante. Fui formado nesta ideia ocidental da prioridade do conceito, que vem desde Platão. É a ideia de que existe uma cadeia hierárquica entre imagens e reflexos, formas, tipos e conceitos, sendo que as primeiras são falsas e os segundos verdadeiros. Inicia-se, assim, uma espécie de mobilização geral da vida para a forma e o conceito, de que o pensamento binário é um operador essencial. A moderna matematização do mundo é o culminar desse tipo de pensamento. O Ocidente estrutura-se sobre uma infinidade de conceitos abstratos; belo-feio, alto-baixo, finito-infinito, mas também conceitos mais simples como o de aluno-professor, e muitos outros, como homem-mulher, etc. Cada um destes polos contém infinitas possibilidades e perigos, mas colocados nesta dualidade simples tornam-se puras abstrações e formas de intercessão do agir. Todos são obrigados a habitar esses conceitos ou tipos similares, quando afinal são habitados possuídos por eles.
No século XIX, o surgimento de máquinas como a fotográfica, o cinema, o gramofone, a rádio, fez explodir essa prioridade do conceito sobre as imagens e as palavras, e estas ganharam uma nova e nunca vista dimensão, saíram da disciplina onde tinham vivido durante séculos, fechadas nas igrejas e mais tarde nos museus, nos museus. Espalharam-se por todo o lado. Com esta explosão das imagens e objetos o pensamento foi confrontado com a necessidade de articular de outra forma os conceitos com as imagens e objetos que se disseminam erraticamente. Isso não impede que alguns autores como Agamben ou Heidegger detetam uma matriz oculta, profundamente invisível, a que chamam O “dispositivo”. Mais realisticamente, diríamos que a lei das coisas que permite a transmissão real está nua relação tensional com a nova errância geral.
A partir do século XX, a imagem passa a ter um peso determinante no nosso pensamento sobre o mundo. Como disse Giordano Bruno, “pensar é especular com imagens”. Essa especulação foi originando um pensamento visivo para pensar uma nova relação ao Real. É o caso de “figuras” como o mosaico, o puzzle, o mapa, o arquipélago, etc, que são formas de pensar por imagens e não por conceitos.
Mas entre essas formas, a constelação parece-lhe aquela que mais pode dar conta da complexidade do mundo do século XXI?
Todas essas imagens servem para pensar e são legítimas, nenhuma delas tem valor terminante. Para mim a constelação parece-me melhor porque respeita a empiricidade selvagem do real, consegue articular conceitos, objetos e imagens a partir da “imagem” que constitui, e que é sempre nova e única. A constelação é aquela que mais está atenta a algo que é essencial que são as ligações.
É preciso tentar construir um pensamento que não reduza os objetos a coisas utilitárias, nem as imagens a coisas secundárias. E aqui entra o meu interesse específico no pensamento do filósofo alemão Walter Benjamim, também ele um estranho “anarquista”. Desde o livro A Origem do Drama Barroco Alemão que ele se esforça por pensar o real numa dupla impossibilidade: não é possível dizer nada na totalidade; mas não é possível menosprezar a sua força, que provém do pensamento teológico. A constelação é o método para aceder ao real respondendo a esta dupla impossibilidade.
A noção de “constelação” que Benjamim utiliza para pensar o Drama Barroco e depois o cinema e a fotografia tem um método muito interessante que é o método das ligações que tem provado a importância de articular a lógica das imagens, sons, reflexos e mesmo os conceitos, que têm a sua materialidade. Claro que é um método que também traz problemas, como perceber qual é o atrator central que impede a dispersão e mantém a imagem estável.
O grande modelo do pensamento constelar é o cinema e a operação de montagem que deu direito de cidadania na modernidade. As imagens têm primeiro que estar dispersas ou ser separadas para depois serem reunidas num todo coerente. Com as imagens dispersas cria-se um objeto instável, o filme, que ao entrar no mundo explode e se dissemina por todo o lado em imagens fragmentárias, que se fundem com a memória humana e coletiva, a imaginação, a experiência de cada um.
O que é que este pensamento constelar traz de novo além do fim da arrogância das teorias totalizantes?
O pensamento constelar implica uma deslocação radical da ideia da representação, seja da teoria como representação, da literatura como representação, para a ideia de produção. Cada obra é uma produção que chega ao Real e se acrescenta a ele, vai produzir efeitos, muitos deles incapturáveis. Cada obra entre no mundo e vai ser dominada, controlada, libertada, vai fazer caminho.
Esse procedimento já estava presente no livro, e em todo o novo objeto. Um livro é um que entra no mundo, se acrescenta, mas a partir do momento em que é aberto, dele saltam de lá de dentro todo o tipo de seres, de imagens, de sereias. Nesse momento ele deixa de ser um objeto simples e ganha vida própria. Fechado, ele é apenas um objeto, aberto é um mundo. O pensamento constelar visa pensar a produção de artefactos de todo o género, estendidos nos seus efeitos, nas suas ligações, nas suas dobras, de modo a apreender o contributo para a produtividade geral que suporta o mundo.
Ainda vai ver os rios?
Ainda vou ver os rios, sim. Aliás, decidi que os meus iriam depor as minhas cinzas no Tâmega e sei que vão cumprir. A minha vida tem sido à volta de rios. O Tâmega, o Tejo, em Lisboa, o Sena, em Paris, onde estive dois anos à volta dele, o Mondego, em Coimbra. E agora estive em Praga e lá andei às voltas do rio Moldava e voltei a sentir o mesmo.