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Brexit. Começa agora a corrida contra o tempo

A relação entre Reino Unido e o resto da Europa nunca foi um 'love affair'. O Brexit obriga a rever todo esse percurso mas, mais do que isso, a repensar a futura relação, como esta análise explica.

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Prólogo. A traição

Após o referendo de 23 de Junho, numa conferência de imprensa à porta do número 10 de Downing Street, David Cameron demitia-se do cargo de primeiro-ministro britânico. Ao virar as costas em direcção à residência oficial, as câmaras gravaram-no a assobiar baixinho. Melhor do que ninguém ele sabia do que se tinha livrado. Nos meses seguintes, o Brexit, visto por muitos como o evento mais disruptivo para a economia mundial desde a adesão da China à Organização Mundial do Comércio, transformar-se-ia num empolgante folhetim.

Theresa May, a ministra da Administração Interna, ganharia a corrida pela sucessão no Partido Conservador e tornar-se-ia primeira-ministra. Passaria de defensora soft do ‘Remain’ a defensora de um hard Brexit. No seu discurso de Lancaster, a 17 de Janeiro, afirmaria que o Reino Unido não pretende pertencer ao Espaço Económico Europeu [que exigiria livre circulação de pessoas] nem à União Aduaneira [que retiraria a desejada autonomia na negociação de acordos comerciais]. May fez manchetes ao acrescentar que “um não-acordo é melhor do que um mau acordo”. Nesse discurso indicou as 12 prioridades do Reino Unido, começando com “garantir certeza e clareza nas negociações”, “recuperar controlo das nossas leis” e prosseguindo com “controlo da imigração” e realização de um “acordo de livre comércio com a União Europeia (UE)”.

FACUNDO ARRIZABALAGA/EPA

Em Bruxelas, a maioria da diáspora britânica, fortemente pró-União Europeia, permanece acabrunhada e os europeístas, após 44 anos de vida em comum, não perdoam a traição. 

Em Bruxelas, a maioria da diáspora britânica, fortemente pró-União Europeia, permanece acabrunhada e os europeístas, após 44 anos de vida em comum, não perdoam a traição. Pelo meio, algum pragmatismo: escoceses, norte-irlandeses, galeses e ingleses apressam pedidos de nacionalidade e matrimónios com ‘continentais’.

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Em Schuman, no coração do quarteirão europeu, nunca a liderança da UE pareceu tão coesa. Donald Tusk, presidente do Conselho, que reúne os [futuramente] 27 chefes de Estado da União, e Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia e coordenador da sua poderosa máquina executiva, ensaiaram bem o que dizer e quando dizer. Pelo caminho, as eleições na Holanda, Áustria e França trouxeram os intérpretes desejados, enquanto as da Alemanha são aguardadas sem apreensão.

Reino Unido. Um contra todos

No Reino Unido, os defensores do ‘Remain’ começam a resignar-se. Há excepções, como Tony Blair, ex-primeiro-ministro trabalhista – [o mercado único e o alargamento europeu são] “as duas maiores conquistas da diplomacia britânica nas últimas décadas (no Financial Times, a 23 de março de 2017) –, ou John Major, antigo primeiro-ministro conservador – [o Reino Unido cometeu] “um erro histórico”. “Os obstáculos são arredados como se não tivessem consequências, enquanto as oportunidades são empoladas para lá de qualquer expetativa razoável de concretização” (no mesmo jornal, poucos dias depois, a 27 de março) –, mas parece que, hoje, os “48,11%”, satisfazem-se com um acordo positivo. Haverá alguma hipótese de um volte-face nas eleições de Junho? “Não”, afirmam vários britânicos da ‘bolha de Bruxelas’, enquanto um deles esclarece que, “quem nos conhece, sabe que estamos fartos de eleições e referendos”, “está feito, está feito”.

O ex-primeiro-ministro belga e líder dos Liberais no Parlamento Europeu (PE), Guy Verhofstadt, coordenador da instituição para as negociações do Brexit, prognosticou: “[as eleições britânicas são um assunto interno] mas o Brexit será claramente um elemento-chave. Será uma oportunidade para os cidadãos do Reino Unido se expressarem sobre a forma como encaram a futura relação entre o seu país e a União Europeia” (Financial Times, a 19 de abril deste ano). O Brexit é um tema inescapável da campanha que, a 8 de junho, culminaria com a eleição do líder britânico até 2022.

O Manifesto do Partido Conservador dedica-lhe apenas duas páginas porque, de facto, as suas linhas gerais para as negociações encontram-se já plasmadas no ‘White Paper on the UK’s Exit’ (o livro branco para a saída do Reino Unido da UE)”, na carta enviada ao presidente do Conselho Europeu – cujo tom ficou patente no início deste documento – e no ‘Great Repeal Bill White Paper’. Em traços gerais, este documento prescreve os termos para a anulação do ‘European Communities Act’ de 1972, que efectivou a adesão do Reino Unido à União Europeia pela mão do conservador Edward Heath, e indica os passos para integrar a legislação comunitária vista como adequada e para anular aquela considerada dispensável.

A soberania define-se de muitas maneiras e a gramagem é uma delas: segundo o próprio Governo britânico, há 12 mil regulamentos e 7.900 diretivas comunitárias que são, hoje, lei no país. Se May vencer, os seus pesos pesados estão escolhidos: David Davis, ministro com a pasta da saída britânica, Liam Fox, ministro do Comércio Internacional, e Sir Tim Barrow, Representante Permanente do Reino Unido junto da UE desde Janeiro de 2017. Fontes próximas dos conservadores, afirmam que May está “farta da falta de profissionalismo de alguns dos seus ministros” e que as eleições dar-lhe-ão margem para “operar uma limpeza”, que permita negociar com rigor e sem “guerras desnecessárias”. Sabe-se que não aprecia a falta de tato de Boris Johnson, que detém a pasta dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth, mas como precisa do apoio da ala mais conservadora dos Tories, Johnson parece estar seguro.

Ben Pruchnie/Getty Images

Um governo trabalhista irá imediatamente garantir direitos para todos os cidadãos da UE que vivem no Reino Unido. Vamos deixar cair o 'Great Repeal Bill' dos conservadores, substituindo-o por um de 'Direitos e Proteções da UE'

O Manifesto do Partido Trabalhista, de Jeremy Corbyn, acusado de se esforçar pouco pelo ‘Remain’, dá o tudo por tudo para se distanciar dos conservadores: “Iremos acabar com a abordagem irrequieta de Theresa May ao Brexit. Um governo trabalhista irá imediatamente garantir direitos para todos os cidadãos da UE que vivem no Reino Unido. Vamos deixar cair o ‘Great Repeal Bill’ dos conservadores, substituindo-o por um de ‘Direitos e Proteções da UE’ que irão assegurar que não haverá qualquer mudança significativa nos seus direitos, igualdade legislativa, direitos do consumidor ou de conjuntura na sequência do Brexit.”

Seria um bom debate se May não se recusasse a debater. É improvável que Corbyn vença, mas o seu manifesto, assim como o discurso de Sir Keir Starmer, “O que se segue para o Reino Unido?”, (“What Next for Britain?”, Chatham House, 27 de março de 2017), nomeado ‘ministro-sombra’ dos Trabalhistas para estas negociações, demonstram que o Reino Unido partiria de uma posição negocial menos extremada.

Bruxelas. “It was never a love affair”

A linguagem é firme, mas respeitosa. À saída do Conselho Europeu, a 31 de março, dois dias depois da carta de May ter sido entregue em mão, Donald Tusk sintetizava os quatro objectivos mais prementes de uma negociação “onde todos ficam a perder” e que se tratará, na sua essência, de “minimização de danos”: “Pensamos primeiro nas pessoas, nos seus direitos e temos de evitar um vazio legal. O Reino Unido tem de respeitar todos os seus compromissos financeiros”. O ex-primeiro-ministro polaco, reconduzido em funções por mais dois anos, até 30 Novembro de 2019, será uma peça importante na gestão dos humores dos 27.

Mas, se o xadrez institucional da União Europeia já é normalmente complicado, desta vez ninguém sabe com exatidão os passos que se seguem. Em qualquer cenário, Juncker, presidente da Comissão, será um jogador muito influente. Político experiente, eleito 14 vezes para cargos políticos, abriu as hostilidades quando, em entrevista ao editor do Financial Times, Lionel Barber, dois dias antes da data marcada para a entrega da carta que accionaria o Artigo 50º, afirmou: “A fatura para a saída do Reino Unido é, no mínimo, de 60 mil milhões de euros e a sua saída também irá alterar o equilíbrio de poder na Europa”. Estes números deram e darão que falar.

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Uma das consequências da saída da quinta maior economia do mundo e dos seus 65 milhões de habitantes, será o aumento do poder dos países do Sul, como Espanha, Itália ou Portugal, e, principalmente, o fortalecimento do eixo franco-germânico. 

E a segunda parte não é de menor importância. De facto, o Reino Unido, ao lado da Suécia, Dinamarca, Finlândia e Holanda, lidera a agenda liberal e mantém um equilíbrio saudável nas discussões legislativas. Uma das consequências da saída da quinta maior economia do mundo e dos seus 65 milhões de habitantes, será o aumento do poder dos países do Sul, como Espanha, Itália ou Portugal, e, principalmente, o fortalecimento do eixo franco-germânico. Recorde-se que a maioria das propostas da Comissão precisa de maioria simples dos eurodeputados (no Parlamento Europeu) e de maioria qualificada dos representantes dos Estados-membros nas várias configurações ministeriais (Conselho da União Europeia) – ou seja, 55% de votos a favor que equivalham a pelo menos 65% da população da UE.

Já se falou de Guy Verhofstadt, mas voltemos a ele. Sobrevivente da conturbada vida política belga – onde foi primeiro-ministro por nove anos, adjunto do primeiro-ministro por sete e ministro das Finanças por mais sete – , Verhofstadt, visto como negociador hábil, foi eleito pela Conferência dos presidentes dos grupos políticos do Parlamento Europeu, o representante da instituição nestas negociações. A saída doReino Unido tem de garantir a aprovação do Parlamento Europeu e isso passa por agradar às várias comissões parlamentares que lutam, nomeadamente, por manter programas comunitários que contam com o contributo britânico (os tais 60 mil milhões).

Pró-europeu e um excelente comunicador, o líder dos Liberais no PE afirmou, no início de Abril, no debate em plenária sobre o Brexit: “A relação entre o Reino Unido e a Europa nunca foi fácil. Nunca foi um caso de amor e seguramente não se tratou de uma paixão louca. Foi mais um casamento de conveniência. Mas não foi um falhanço. Não para a Europa e muito menos para o Reino Unido.” Vale a pena continuar: “Entrou na comunidade como ‘o doente da Europa’ e, graças ao mercado único, saiu pelo lado oposto. Temos de prestar homenagem aos britânicos pelos seus imensos contributos: um defensor imparável dos mercados livres e dos direitos civis. Como liberal, vou sentir falta disso”, continuou, aproveitando para deixar um recado: “Mas o Brexit não é só sobre Brexit. É também sobre a nossa própria capacidade de fazer renascer o projeto europeu.”

Falta uma peça para completar este puzzle burocrático: Michel Barnier. Ex-comissário do Mercado Interno da era Barroso II e ex-ministro dos Assuntos Europeus e dos Negócios Estrangeiros francês, foi encarregue, a 1 de outubro de 2016, de implementar o mandato político conferido pelos Estados-membros. Terá como ponto de contacto no Conselho o diplomata belga, Didier Seeuws, ex-chefe de gabinete de Herman Van Rompuy, antecessor de Tusk. Na Comissão, é expetável que o seu interlocutor seja Martin Selmayr, o chefe de gabinete alemão de Juncker, cujo epíteto Rasputin ilustra o poder e o ‘carinho’, que lhe é atribuído nos corredores do Berlaymont, quartel-general da Comissão. Michel Barnier, de 66 anos, tendo perdido, em 2014, o bilhete premiado de candidatura à Comissão precisamente para Juncker, garantiu uma grande oportunidade de assumir um papel político de destaque. Barnier tentará que os 27 Estados-Membros mantenham um discurso alinhado, e que esteja, por sua vez, bem conectado com as instituições europeias: Conselho (Tusk/ Seeuws), Parlamento Europeu (Verhofstadt) e Comissão (Juncker/ Selmayr). Nesse aspecto, e talvez só nesse, David Davis, Ministro com a pasta da saída do RU da UE, tem a vida mais descomplicada.

Os despojos do dia

A 5 de abril, a Economist publicou um mapa com a postura negocial dos 27 face ao Reino Unido, classificando-os entre defensores de um “soft”, “hard” ou “hardcore” Brexit. A metodologia não é explicada mas, confiando na fonte (The Economist Intelligence Unit), há sete defensores de um hardcore Brexit: França, Alemanha, Bélgica, Áustria, Roménia, Bulgária e Eslováquia. Os mais apaziguadores são a Irlanda, Polónia, Dinamarca, Suécia, Chipre e os países Bálticos. No meio, estão Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Holanda e Finlândia. Parece certo que a saída terá encargos elevados para o Reino Unido, decorrentes das obrigações orçamentais assumidas até pelo menos 2020, que as quatro liberdades fundamentais não são negociáveis e que qualquer acordo comercial só poderá ser menos vantajoso que a pertença à União.

O Politico Europe fez um exercício semelhante. Após conversas informais com diplomatas dos 27 e uma monitorização das declarações públicas dos seus líderes, indicou posicionamento e prioridades de cada um. No caso da Alemanha, a prioridade salientada é a “defesa da integridade do mercado interno”. Os alemães sabem que esse é o ganha-pão da sua indústria. Sabem também que o acesso a um mercado de 500 mil consumidores com elevado poder de compra é um trunfo fundamental para a UE nas negociações de acordos comerciais com países terceiros. Na peça, é citado um assessor do Governo de Merkel: “A Europa a 27 com a Alemanha, França e Itália são um gigante comercial como os EUA ou a China”. O Reino Unido, “só por si, irá jogar na liga abaixo, com países como o Canadá. Mas quando foi a última vez que alguém se sentiu ameaçado pela força do Canadá?”.

Para a Polónia, os direitos dos seus cidadãos, que constituem a maior comunidade de estrangeiros residentes no Reino Unido – 800 mil a 900 mil (segundo a Economist e o Politico, respetivamente) -, são apontados como a grande preocupação. A saída da maior força militar da UE constitui a outra dor de cabeça polaca, que, ao lado dos países bálticos, teme cada vez mais a interferência russa. Confirma-se que este grupo será, em teoria, um bom interlocutor dos britânicos. De notar, no entanto, que a Polónia é o maior beneficiário de fundos europeus e vai querer um cheque de saída britânico que não prejudique planos de investimento já traçados.

TIBERIO BARCHIELLI/CHIGI PRESS OFFICE HANDOUT/EPA

Com a eleição de Emmanuel Macron a 7 de maio, a UE viu reforçada a sua posição negocial. Durante a campanha, numa entrevista à edição de março da revista britânica Monocle, Macron foi directo: "Temos de aceitar que haverá perdas. Mas são os britânicos que mais vão perder. Não se pode gozar direitos na Europa se não se for um membro.” 

Com a eleição de Emmanuel Macron a 7 de maio, a UE viu reforçada a sua posição negocial. Durante a campanha, numa entrevista à edição de março da revista britânica Monocle, Macron foi directo: “Temos de aceitar que haverá perdas. Mas são os britânicos que mais vão perder. Não se pode gozar direitos na Europa se não se for um membro.” Mais adiante, Macron tirou as luvas e foi ainda mais assertivo: “Nigel Farage [líder do UKIP, partido eurocéptico britânico] e o sr. Johnson são responsáveis por este crime: eles conduziram o navio na direção da batalha e saltaram borda fora no momento de crise. Theresa May aguentou o barco, mas o que é que acontece desde então? A nível geopolítco, bem como financeiro, é o realinhamento e submissão aos EUA. O que vai acontecer não é ‘voltar a ter o controlo’: é servidão.”

Os diplomatas franceses consultados pelo Politico apontam “evitar concorrência regulatória” e “proteger os interesses da indústria europeia” como as suas principais preocupações. Espanha é um caso excepcional na medida em que é o único país que tem mais britânicos registados no seu território (cerca de 308 mil) do que nacionais em terras de Sua Majestade. Por ano viajam para Espanha 18 milhões de visitantes britânicos, o seu destino preferido, e a imposição de maiores obstáculos à circulação na UE pode levá-los para outras paragens. Esta questão, aliada à forte interligação comercial entre ambos – o Reino Unido é o maior beneficiário de investimento estrangeiro espanhol e o quarto maior parceiro comercial de Espanha –, constituem trunfos do Reino Unido. A prioridade espanhola é estancar, a todo o custo, eventuais efeito de contágio do Brexit nas suas regiões, já que a Catalunha está atenta à situação escocesa. Tudo somado, mesmo se juntarmos a espinhosa situação de Gibraltar, possessão britânica em território espanhol desde 1713, onde 96% dos residentes votou a favor da permanência na UE, a posição espanhola é tendencialmente favorável aos britânicos.

A guerra dos números

Segundo dados da AICEP, o Reino Unido foi, em 2015, o quarto maior destino das exportações portuguesas de bens e serviços (9,7%) e o quinto na lista de fornecedores (4,8% das importações), tendo a balança comercial melhorado ligeiramente no primeiro semestre de 2016. As mercadorias exportadas são variadas, desde máquinas e aparelhos, veículos, metais comuns, madeira, plásticos e borracha, cortiças ou produtos agrícolas e alimentares, tendo o Instituto Nacional de Estatística registado 2680 empresas exportadoras. No que diz respeito aos serviços, o Reino Unido tem-se posicionado como o principal cliente de Portugal, com uma quota de mercado de 14,7% em 2015 (15,2% no primeiro semestre de 2016). As viagens e turismo estão no topo da lista (54%, com um crescimento de 14,8% face ao ano anterior), seguidos de transportes (24%), outros serviços prestados por empresas (9,6%), telecomunicações, informática e comunicação (5,9%) e serviços financeiros (3,4%). Por sua vez, o Reino Unido foi o segundo maior exportador de serviços para Portugal. Os setores são os mesmos, mas com percentagens mais equilibradas. O investimento direto britânico em Portugal ascendeu a 7,7 mil milhões de euros, o quarto maior, só ultrapassado por Holanda, Espanha e Luxemburgo. Nas receitas geradas pelo turismo, o Reino Unido é o principal mercado para Portugal com dois mil milhões de euros. Esta supremacia reflecte-se também no número de dormidas, com 8,5 milhões em 2015 (1,7 milhões de hóspedes). No primeiro semestre de 2016, receitas e dormidas aumentaram 13,9% e 11,3% face ao período homólogo do ano anterior.

Esta interligação e o posicionamento atlanticista da diplomacia nacional faz com que Portugal queira manter boas relações com o Reino Unido. Só um “soft Brexit” satisfará as pretensões nacionais. No portal do Governo, em declarações à Agência Lusa, no final de Março, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, esclarece as prioridades nesta fase inicial: “Os direitos dos que são actualmente residentes têm de ser salvaguardados e temos de encontrar um esquema que favoreça a circulação”. A secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Margarida Marques, acrescenta que esses direitos vão além do direito de residência e incluem “acesso à escola, à saúde, ao emprego e à protecção social”. É expectável que, a 3 de abril, quando David Davis, Ministro para a saída do Reino Unido da UE, reuniu com Santos Silva em Portugal, um dos assuntos tenha sido o formulário de 85 páginas que os candidatos à autorização de residência no Reino Unido têm hoje de preencher e que está a preocupar os milhares de portugueses que procuram apoio consular.

ESTELA SILVA/LUSA

Segundo o último Relatório da Emigração, produzido pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, o Reino Unido continua a ser o destino preferencial dos portugueses, com 32,3 mil novos emigrantes em 2015, número 5,7% superior a 2014 mas que duplicou os valores de pré-crise (até 2007) e é incomparável com os do início do milénio (que arrancou com dois mil emigrantes).

Segundo o último Relatório da Emigração, produzido pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, o Reino Unido continua a ser o destino preferencial dos portugueses, com 32,3 mil novos emigrantes em 2015, número 5,7% superior a 2014 mas que duplicou os valores de pré-crise (até 2007) e é incomparável com os do início do milénio (que arrancou com dois mil emigrantes). Com o Brexit estima-se que o novo ciclo será de progressiva redução, especialmente da mão-de-obra menos qualificada. O mesmo documento indica que o Reino Unido ocupa o 5º lugar no ranking dos países com mais portugueses emigrados, com 140 mil residentes em 2015 (longe dos 600 mil em França, cujos últimos dados oficiais datam de 2013).

Mas estes números são irrealistas. Uma fonte do consulado português em Londres afirma “serem muitos mais”. O próprio secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, citado pelo Jornal de Notícias nas vésperas do referendo de 2016, indicava que, embora oficialmente se apontasse para “234 mil”, os consulados “em Londres e Manchester estimam que possam ser mais de 400 mil”. Como o registo na Segurança Social não é obrigatório – a ele só precisa mesmo de recorrer quem tem filhos ou necessita de apoios sociais – estes números não passam de estimativas.

A Migration Watch UK afirma que, no cenário actual, de “forte imigração”, o RU teria um saldo positivo de cerca de 500 mil novos imigrantes por ano, o que equivaleria a uma “nova cidade de Liverpool” a cada 12 meses. Se o ritmo se mantivesse, projecta a organização, a população ascenderia a “80 milhões” em 2025. Mas estas previsões alarmistas são mitigadas no Manifesto do Partido Conservador, onde a cifra se fica pelos “273 mil”. No mesmo Manifesto, May pretende “reduzir a imigração para valores sustentáveis”, indicado que pretende menos de 100 mil novos imigrantes por ano. Entre as medidas sugeridas está a redução do número de estudantes estrangeiros e a expectativa que, salvo brilhantes excepções, estes abandonem o Reino Unido após os estudos.

Segundo a UCAS, a plataforma que centraliza as admissões no RU, Portugal é um caso atípico já que, depois do Brexit, as candidaturas a universidades subiram 17%, o maior aumento entre os Estados-membros. Outra forma de combater a imigração será dificultar a vida aos empregadores que pretendam contratar estrangeiros, através da cobrança anual da “Immigration Skills Charge” (hoje, os trabalhadores do Espaço Económico Europeu estão isentos) e da duplicação da mesma (num primeiro momento, de 1000 para 2000 libras). Recorde-se que, paradoxalmente, no alargamento de 2004, o Reino Unido abriu incondicionalmente a porta à entrada de cidadãos dos oito novos Estados-Membros, prescindindo do período de transição de até sete anos. A restrição à chegada de novos imigrantes é uma das reivindicações de quem votou Leave, o que naturalmente preocupa imigrantes e empresas e já levou a um reforço dos serviços consulares por parte das autoridades portuguesas.

Mais de 700 negociações em dois anos

De Bucareste a Lisboa, mesmo onde antes germinava o eurocepticismo, a saída do Reino Unido gerou inflamadas declarações de amor à UE. Esta [surpreendente] união dos 27 proporciona um claro contraste com a imagem desamparada de Theresa May, captada pelos jornalistas no seu primeiro Conselho Europeu.

No dia 15 de maio, o Conselho autorizou oficialmente o início das negociações para a saída do Reino Unido, que, segundo o Artigo 50º, tem de estar finalizada em dois anos (até Março de 2019), a não ser que “os 27 acordem unanimemente no seu prolongamento”. Quase todos os especialistas, em Bruxelas e Londres, têm manifestado fortes reservas quanto a este prazo, considerando ser altamente expectável a sua extensão, o que dá ainda mais poder negocial à União. A UE insiste que, caso seja necessário prolongamento, a liberdade de circulação e a supremacia do Tribunal de Justiça da União Europeia devem manter-se durante esse período. O Reino Unido pode deparar-se, da noite para o dia, com um vazio legal em áreas essenciais das suas relações comerciais.

Os números são duros. Segundo estimativas do Financial Times, publicadas a 30 de maio, no dia da sua saída o Reino Unido terá de ter renegociado, de cerca de 759 tratados, nomeadamente 168 acordos comerciais que hoje estão em vigor com países extra-UE. Se algumas destas negociações são mais simples (por ex. a preservação do peixe-espada em águas chilenas), outras apresentam-se exigentes e longas, como transportes (particularmente, ligações aéreas), agricultura, questões aduaneiras, cooperação regulatória, acordos nucleares ou protocolos energéticos. Nos próximos dois anos, mais de 750 negociações estarão em curso, que incluirão deslocações, consultas públicas, revisões, adaptações e muitas reuniões.

Contrariamente ao desejado por Londres, os decisores europeus deixaram bem claro que, primeiro, negoceiam-se os termos do divórcio e só depois a nova relação comercial. Para já, como indicam as Directivas de Negociação publicadas a 22 de Maio, resolvem-se as questões relacionadas com os direitos dos cidadãos [europeus no Reino Unido, e britânicos na UE] e calcula-se o cheque a pagar aos 27 no âmbito dos compromissos assumidos para o período 2014-2020. Problema: os países terceiros querem saber quais os contornos das relações entre o Reino Unido e a UE antes deles próprios estabelecerem [a continuidade dos] acordos com o Reino Unido.

Ainda assim, muitos políticos conservadores parecem acreditar que o Reino Unido pode simplesmente abandonar conversações sem grandes consequências económicas. De notar, que o Reino Unido vai lutar para se manter como o centro financeiro da Europa mas, como refere o Guardian no seu artigo “Irá Londres sobreviver como centro financeiro depois do Brexit?

WILL OLIVER/EPA

Ainda assim, muitos políticos conservadores parecem acreditar que o Reino Unido pode simplesmente abandonar conversações sem grandes consequências económicas. De notar, que o Reino Unido vai lutar para se manter como o centro financeiro da Europa mas, como refere o Guardian no seu artigo “Irá Londres sobreviver como centro financeiro depois do Brexit?”, de 27 de abril, “Luxemburgo, Frankfurt, Dublin e outros têm feito apresentações brilhantes sobre as vantagens competitivas das suas cidades em relação a Londres: custos imobiliários mais baixos, impostos para empresas mais baixos e tudo isso os torna em centros financeiros vibrantes.”

Muito se tem falado dos modelos económicos que poderão substituir a actual pertença à União. O Espaço Económico Europeu (27 + Liechtenstein, Noruega e Islândia) não funciona, porque pressupõe liberdades de circulação, contribuições elevadas para o orçamento europeu e a incorporação de cerca de 300 actos legislativos por ano sem uma participação efectiva no processo de decisão. Na mesma linha, o modelo suíço não interessaria; ainda decorrem negociações com a UE após um referendo, em 2014, ter aprovado a imposição de tectos a imigrantes, o que viola a liberdade de circulação. Uma União Aduaneira como a existente com a Turquia (Mónaco, Andorra e São Marino) excluiria áreas comerciais relevantes, como agricultura e livre circulação de trabalhadores, serviços e capitais, além de que retiraria a desejada liberdade de negociar autonomamente acordos comerciais. Estas soluções, inicialmente vistas como “soft Brexit”, podem dar pistas para a futura relação entre o Reino Unido e a UE mas não são a solução.

A diplomacia britânica parece apostar num acordo detalhado e abrangente, mais ambicioso do que qualquer um realizado até à data, mesmo do que aquele aprovado com o Canadá, que demorou sete anos a ser negociado. É certo que, como apontam os Conservadores, as negociações entre a UE e o Reino Unido são caso inédito, visto que há uma equiparação regulatória sem igual em negociações anteriores. Mas, como apontam os Trabalhistas, a força negocial do RU não pode ser exacerbada, nem tão pouco a importância da Commonwealth e outros parceiros comerciais. Afinal, como afirmou o ministro-sombra das negociações para a saída da UE, Keir Starmer, no seu discurso na Chatham House de 27 de Março: “44% das exportações britânicas para a União Europeia, fazendo do Reino Unido o maior mercado exportador. Em contraste, a Índia vale 1,7% das vendas britânicas para fora, Austrália é 1,7%, Canadá 1,2% e Nova Zelândia aproximadamente 0,2%”.

E as empresas portuguesas?

O Ministério dos Negócios Estrangeiros nomeou o antigo Embaixador de Portugal no Reino Unido, João Valera, para chefiar uma task force. Fá-lo-á em articulação com o actual Embaixador em Londres, Manuel Lobo Antunes, cujo penúltimo posto foi precisamente o de representante de Portugal junto da UE, em Bruxelas. Caso a empresa participe numa associação setorial forte, com uma congénere muito ativa a nível europeu, pode tentar essa via para promover os seus interesses. Mas os resultados dependerão sempre dos recursos envolvidos. Será este ‘passo nacional’ suficiente? O que fazem as restantes empresas dos 27?

Com tantos interesses em jogo, o que pode uma empresa portuguesa preocupada com o Brexit fazer? A melhor estratégia é definir claramente as pretensões junto do Governo, tanto no ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, como na Representação de Portugal junto da UE, em Bruxelas.

Com tantos interesses em jogo, o que pode uma empresa portuguesa preocupada com o Brexit fazer? A melhor estratégia é definir claramente as pretensões junto do Governo, tanto no ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, como na Representação de Portugal junto da UE, em Bruxelas. Caso o peso da actividade no Reino Unido seja forte, reuniões em Londres são, igualmente, adequadas. Em todos estes casos, é fundamental coligir e trabalhar dados sobre o potencial impacto do Brexit no modelo de negócio da empresa, apontando cenários que não passem pela existente harmonização regulatória e livre circulação de mercadorias e trabalhadores.

As empresas mais experientes e dependentes das ligações com Reino Unido estão a trabalhar em estudos de impacto e na forma de mitigar as consequências do Brexit. O negociador-chefe do lado da UE, Michel Barnier, publica online todas as reuniões realizadas. Nela encontram-se representações de Organizações não-governamentais ambientais, a Green 10, a Confederação Europeia de Empregadores, Business Europe, a Microsoft, grupos de consumidores, sindicatos, think tanks, como o European Policy Center, o banco Crédite Agricole, entre outros. Em teoria, segundo o Politico Europe, o ex-Comissário está interessado em encontrar representantes de associações e grupos da sociedade civil que possam apresentar “o impacto europeu do Brexit”, o que pode “dificultar o contacto directo com empresas ou associações com interesses puramente nacionais”. No entanto, a Comissão, ao contrário do que é muitas vezes apregoado, gosta de falar com representantes de empresas, seja de que dimensão forem, e acolhe com agrado informação concreta e tratada, que auxilie a sua equipa de negociadores. Vale a pena reunir com a equipa do Brexit mas também com funcionários da Direcção-Geral de Comércio e outros que lidem com os sectores em que a empresa opera, assim como com os eurodeputados de países e Comissões Parlamentares relevantes.

Há quem afirme que o Brexit será lobby de alto nível, com negociações secretas, circunscritas às grandes multinacionais. Acreditar nessa visão é uma hipótese e, afinal, há sempre a possibilidade de que os negociadores nacionais e europeus adivinhem todas as preocupações. Mas é mais sensato ajudá-los.

Epílogo. Talvez um dia

Em 1693, o inglês William Penn, propôs a criação de um Parlamento Europeu ou uma Câmara de Estados que prevenisse os constantes conflitos que assolavam o continente. Depois desta sugestão, passariam quase três séculos até que os britânicos acolhessem a ideia. A 23 de Junho de 2016, decidiram voltar atrás.

Nicholas Macpherson, reputado ex-conselheiro de vários Ministros das Finanças do Reino Unido, afirmou, a 21 de fevereiro, no debate sobre o Brexit na Câmara dos Lordes: “Acredito que o antigo primeiro-ministro [Daid Cameron] cometeu um erro ao convocar um referendo, mas as pessoas falaram e os seus representantes eleitos decidira respeitar a vontade dos cidadãos. Os que se bateram pela permanência (‘Remain’), não devem ser muito castigados. Estas ilhas têm procurado definir a sua relação com a Europa continental nos últimos 2.000 anos. O resultado do referendo representa uma viragem e o certo é que haverá nova volta num outro dia…” Apesar das discórdias, todos os Estados-membros, sem excepção, gostariam que o Reino Unido um dia decidisse voltar a casa.

Bernardo Aguiar é consultor de assuntos europeus em Bruxelas

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