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INACIO ROSA/LUSA

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Bruno Bimbi: "Para sairmos do 'armário', temos de perceber que não somos mais ou menos normais do que os outros"

Foi assessor do único deputado brasileiro assumidamente homossexual e publica agora em Portugal um livro sobre minorias sexuais. Defende a perseguição do "discurso de ódio". Mas isso implica censura?

É útil convocar a polarização política que o Brasil vive há vários anos para melhor se entender o pensamento de Bruno Bimbi, jornalista e ativista argentino de 42 anos que hoje vive em Barcelona e durante uma década esteve radicado no Rio de Janeiro. Essa polarização salta também à vista nas páginas do livro que acaba de publicar em Portugal — O Fim do Armário: Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans no Século XXI, conjunto de crónicas para o grande público acerca da dimensão pessoal e política das questões identitárias.

“Não é um livro para o gueto”, resume Bruno Bimbi, em entrevista por videochamada a partir da Catalunha. “É um livro muito útil para a pessoa LGBT, porque pode apropriar-se de conceitos, identificar-se com as histórias de outros, encontrar ferramentas para pensar e se defender. Mas gostaria que fosse lido por heterossexuais e pessoas preconceituosas, que até podem mudar de opinião, sejam políticos, jornalistas ou líderes religiosos”, acrescenta.

O Fim do Armário saiu na Argentina em 2017 e também está editado no Peru, no Brasil, em Espanha e no México. A versão portuguesa, com chancela da Sextante/Porto Editora, conserva marcas da variante brasileira do português. Tem 371 páginas e prólogo do académico e ex-deputado brasileiro Jean Wyllys. É dedicado a Pedro Zerolo (1960-2015), reconhecido pelo papel decisivo na aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo em Espanha (2005) e em Portugal (2010).

O autor assume uma linguagem direta, por vezes com recurso ao calão, e inclui na obra elementos autobiográficos, episódios discriminatórios da América Latina e de África e incursões por personagens como Alan Turing ou factos históricos como a Revolta de Stonewall. Ao mesmo tempo fala de “avanços e retrocessos, contestando mitos, rindo de tabus e estereótipos, denunciando discursos de ódio que ainda conspiram contra o futuro, questionando o papel da religião, da política, dos meios de comunicação, da cultura, analisando as semelhanças entre o preconceito homofóbico e outros preconceitos, como o racismo e o antissemitismo”, lê-se na introdução. Um “livro-manifesto”, assim o descreve a editora portuguesa.

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Cordial, palavroso e de pensamento rápido, Bruno Bimbi diz-nos que chegou ao Brasil em 2009 para fazer um mestrado em letras e estudos da linguagem na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Entretanto adquiriu nacionalidade brasileira, completou um doutoramento e foi correspondente do principal canal televisivo de informação na Argentina, Todo Noticias (do grupo Clarín). Por volta de 2011 envolveu-se ativamente na política brasileira.

Depois de ter enviado o primeiro livro, Casamento Igualitário (2013), ao então recém-eleito deputado federal Jean Wyllys, que era então o único homossexual assumido no parlamento brasileiro (antes dele, apenas o controverso Clodovil Hernandes, em 2007), foi por este convidado a coordenar uma campanha pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo — o que já tinha feito anos antes no país de origem (os “casamentos homoafetivos”, como também se diz no Brasil, são permitidos a nível nacional desde 2013 por via de decisões judiciais, mas não estão previstos na lei). Mais tarde tornou-se assessor político e braço direito de Jean Wyllys. E é aqui que a polarização ideológica começa a fazer caminho.

Jean Wyllys esteve em Lisboa com escolta policial: “A mediocridade triunfou, não sei quando volto ao Brasil”

Wyllys foi deputado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), criado após dissidências no Partido dos Trabalhadores (PT), mas desistiu de um terceiro mandato em inícios de 2019 e vive exilado em Berlim, depois de ameaças de morte e agressões verbais com alegada origem em adversários políticos, incluindo o atual presidente, Jair Bolsonaro. Bruno Bimbi viveu de perto o acossamento a Wyllys e decidiu também exilar-se, mas em Barcelona. Diz que o homicídio da vereadora do Rio de Janeiro Marille Franco, em março de 2018, e a eleição de Bolsonaro, em outubro de 2018, foram os dois acontecimentos que levaram a tomar a decisão.

É por isso que o discurso do jornalista e ativista argentino é marcado por uma aversão a Bolsonaro, que classifica como “psicopata fascista”, e uma defesa acérrima de ideias da esquerda mais extremada. Por vezes, adota a retórica de clivagem que parece ter tomado conta do debate público no Brasil. No livro, e nesta entrevista, identifica os que considera serem adversários dos direitos humanos e das pessoas LGBT no Brasil e noutras parte do mundo e pede leis que detenham o “discurso de ódio” no espaço público. Mas será que isso implica censura?

Bruno Bimbi nasceu em 1978 em Avellaneda, província de Buenos Aires, depois passou dez anos no Rio de Janeiro e hoje vive em Barcelona

ANA PORTNOY

O que é para si o fim do “armário”?
Costumo dar este exemplo: um jovem homossexual de meados do século XVI que fosse transportado por uma máquina do tempo para meados do século XIX, como num filme de ficção científica, encontraria um mundo muito diferente ao nível da tecnologia, dos costumes ou dos sistemas de governo, mas a relação dele com o mundo enquanto jovem homossexual seria exatamente a mesma. Dois séculos depois, nada teria mudado na vivência da orientação sexual, continuaria a ser impossível falar com a família e os amigos, tudo seria vivido em segredo e a repressão do Estado, da religião e da ciência também continuariam. O armário continuaria a ser um lugar obrigatório para este rapaz, porque não poderia viver fora dele. Ora, se pegássemos num jovem homossexual dos anos 1960 e o trouxéssemos para 2020, ele também ficaria surpreendido com as mudanças na música, na roupa, na tecnologia ou na política, mas encontraria um mundo completamente diferente face às minorias sexuais. Aqui em Barcelona, onde vivo, esse rapaz dos anos 60 poderia hoje casar-se com o namorado no Registo Civil, e aí em Lisboa também. Encontraria políticos, pessoas da televisão ou do desporto que são assumidamente homossexuais. É a primeira vez na história que isto está a acontecer, em nenhum outro momento houve um avanço como o que se registou nos últimos 50 anos. O mundo está a caminhar para o fim do armário, o que não significa que já tenhamos lá chegado.

Ou seja, o fim do “armário” é o momento em que as minorias sexuais podem viver sem constrangimentos.
Sim, é o momento em que as pessoas LGBT podem ter uma vida absolutamente normal, como a de qualquer outro cidadão, sem serem obrigadas a estarem escondidas. Um homossexual não entra no “armário”, já nasce lá dentro. Não existe um momento em que decidimos entrar e viver às escondidas no “armário”, porque o “armário” invisível já está construído à nossa volta quando ainda somos bebés e estamos na maternidade. Este “armário” define-se por uma série de coisas que, da infância à adolescência, nos mostram como funciona o mundo: os brinquedos, as cores, a relação com a família, os papéis que esperam que desempenhemos, as expetativas à nossa volta. Presume-se que quem nasce com genitais masculinos é homem e terá de se casar com uma mulher e ter filhos. Ora, se nascemos dentro do “armário”, há um momento em que temos de sair, porque de repente descobrimos que somos diferentes e tudo o que nos contaram sobre o mundo afinal não se aplica ao nosso caso. Para sairmos do “armário”, temos de perceber desde logo que não há qualquer problema connosco, não há nada negativo em nós, não somos mais ou menos normais e naturais do que os outros. Quando digo que pela primeira vez na história o “armário” se está a abrir, é preciso notar que esta é uma realidade que não está a acontecer no mundo inteiro, a discriminação não acabou.

É normal que não aconteça no mundo inteiro, porque cada país tem o seu contexto, a sua cultura, uma evolução própria.
Claro. A escravatura ou a segregação racial não acabaram no mundo inteiro ao mesmo tempo. As mulheres adquiriram o direito ao voto progressivamente e em alguns países ainda não têm direito a quase nada, como na Arábia Saudita. Neste momento, temos partes do mundo em que a população LGBT conquistou não só direitos civis — casamento, adoção, identidade de género para pessoas trans — mas também já começa a conquistar a indiferença. A orientação sexual e a identidade de género estão a deixar de ser assunto.

O que é positivo?
Penso que sim. Quando uma pessoa branca se casa com uma pessoa negra já não dizemos que se trata de um casamento interracial, dizemos que é um casamento. Nos anos 60, nos EUA, falava-se em casamento interracial. Hoje ainda se diz casamento gay e um dia deixará de se dizer.

O Fim do Armário: Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans no Século XXI saiu originalmente na Argentina em 2017

Considera que o fim do “armário” depende necessariamente da legalização do casamento entre pessoa do mesmo sexo?
Não acho que dependa apenas disso, mas é um passo fundamental. A experiência tem mostrado nas últimas décadas que os países onde houve esta mudança legal para permitir o casamento civil foram os que mais rapidamente conseguiram evoluir no comportamento social perante as pessoas homossexuais. Fui um dos responsáveis pela campanha que levou à aprovação do casamento igualitário na Argentina, depois participei no mesmo processo no Brasil e ajudei no Equador. No caso específico da Argentina houve um processo de meses em que este assunto foi o principal tema político no país, aparecia nos noticiários, nas primeira páginas dos jornais, era o tema de conversa entre amigos e familiares. Isto levou muita gente a aperceber-se dos preconceitos que tinha e a mudar de opinião.

Há ou não um preço alto a pagar pela aprovação do casamento? Por um lado, é uma possibilidade que alimenta novos rancores nos seus adversários. Por outro lado, é um monotema que torna invisíveis outras questões relativas às minorias sexuais.
Discordo. Não acho que o casamento tenha gerado preconceitos. A minha experiência direta e aquilo que conheço como ativista diz-me que a repercussão foi positiva, pelo menos nos países em que o casamento igualitário foi aprovado através de um processo político [em contraponto à autorização por via da jurisprudência]. Na Argentina, em poucos meses, milhares de pessoas saíram do armário, assumiram-se perante a família, principalmente fora das grandes cidades.

Esse efeito, que também se terá verificado em Portugal, diz respeito aos próprios homossexuais, que de uma forma geral ganharam autoestima com a aprovação do casamento. E a restante sociedade?
O amplo debate social fez com que muitas pessoas preconceituosas tenham deixado de o ser. Em Espanha, desde o início da aprovação do casamento, em 2o05, até aos dias de hoje a opinião das pessoas foi mudando. Cada vez mais gente afirma que ter um filho homossexual ou trabalhar com homossexuais não é um problema… São estudos de opinião junto da população geral. Na Holanda, que aprovou o casamento igualitário há mais tempo [2001], o Eurobarómetro e outras sondagens mostram que mais de 90% de pessoas são favoráveis aos direitos LGBT. Hoje, em alguns países do norte da Europa, já há padres católicos que abençoam casamentos entre homossexuais realizados no Registo Civil, coisa que não acontece no Peru ou no México. A Igreja percebeu que a maioria da população mudou de opinião e se não se atualizar perde fiéis. Também há igrejas protestantes na Europa que celebram casamentos religiosos entre pessoas do mesmo sexo.

"Quando se contamina a cabeça das pessoas de forma massiva, na igreja, no Facebook, no WhatsApp, é muito rápido o caminho até alguém desequilibrado matar um homossexual."

Além do casamento, que outros fatores podem abrir o “armário”?
São vários e implicam o reconhecimento de direitos civis e políticas públicas pela diversidade sexual. Depois há gestos mais simbólicos, como quando as câmaras municipais hasteiam a bandeira do arco-íris no Dia do Orgulho LGBT [28 de junho].

Não vê nisso um tratamento que menospreza as pessoas homossexuais e as trata como débeis?
Não. Porquê?

Não vemos bandeiras hasteados por causa de judeus, negros ou ciganos.
Mas em países que viveram a tragédia do racismo de forma profunda há celebrações específicas ligadas à luta contra o racismo. No Brasil, por exemplo, há o Dia de Zumbi dos Palmares e o Dia Nacional da Consciência Negra [20 de novembro]. O Dia em Memória das Vítimas do Holocausto [27 de janeiro] é celebrado em quase todo o mundo. Acho que é muito positivo. Quando a humanidade consegue superar determinadas situações de exclusão, de estigmatização ou de perseguição de minorias, é bom que isso seja celebrado de forma afirmativa, para que não se repita. Da mesma forma, é necessário celebrar o Orgulho LGBT. Porque é que é necessário? Porque ainda existe homofobia e preconceito no mundo. Já ouvi muitas pessoas dizer que não faz sentido termos o Dia do Orgulho LGBT uma vez que não temos o Dia do Orgulho Heterossexual. A resposta é muito simples. Nunca na história da humanidade as pessoas heterossexuais foram perseguidas, nunca ninguém foi despedido do emprego ou expulso da família por ser heterossexual.

Será que a proteção das minorias e o dever de respeito está hoje a transformar-se em censura? Em Portugal, por exemplo, o Governo decidiu há pouco tempo que vai “monitorizar o discurso de ódio” na internet, o que muitos consideram ilegítimo.
Imagine-se o que aconteceria hoje na Alemanha se alguém defendesse publicamente o nazismo ou que os judeus deveriam ser enviados para campos de concentração para serem mortos em câmaras de gás. É discurso de ódio, quem o fizesse acabaria preso. O discurso de ódio gera efeitos na realidade, não é apenas discurso. Dou-lhe o exemplo do Brasil, que conheço bem. Antes até de Bolsonaro ser Presidente da República, sempre que ele fazia uma das suas habituais declarações bizarras contra os homossexuais, cada vez que dizia que ter um vizinho gay desvaloriza um imóvel ou que é preferível ter um filho morto do que ter um filho gay, havia mais homicídios de pessoas no Brasil.

Governo vai monitorizar discurso de ódio na Internet

"Primeiro, precisamos da afirmação de direitos por via legal. Segundo, políticas públicas que implicam a celebração da diversidade e do orgulho e a defesa de valores positivos. Terceiro, educação."

Como é que sabemos que há uma ligação direta entre as duas coisas?
Porque é que uma pessoa mata outra pelo simples facto de a outra ser homossexual? Não há nenhum problema pessoal, nenhuma situação alheia ao facto de uma delas ser homossexual. E o homossexual é morto. Não com um golpe, mas com 30 facadas. Porquê? Por causa do discurso da Igreja Católica Apostólica Romana, do discurso dos pastores evangélicos, do discurso de líderes religiosos muçulmanos, do discurso da extrema-direita, seja o Vox em Espanha ou Bolsonaro no Brasil. É isso que leva aos crimes de ódio. De forma indireta, estes líderes são assassinos, porque o discurso deles gera mortes.

A solução é proibir essas pessoas de falar?
A solução é combater o discurso de ódio.

Mas como?
Têm de ser responsabilizados. Cada país encontra a fórmula legal para isso, mas no discurso de ódio tem de haver responsabilização.

O discurso de ódio combate-se com mais discurso pelos direitos humanos ou com censura?
Primeiro, precisamos da afirmação de direitos por via legal, como há pouco referi. Segundo, políticas públicas que implicam a celebração da diversidade e do orgulho e a defesa de valores positivos. Terceiro, educação. Por isso é que o foco da extrema-direita é impedir que haja educação sexual nas escolas, que haja políticas de prevenção de bullying homofóbico entre estudantes. No Peru, a extrema-direita usa o slogan “no te metas com mis hijos”. O que está a acontecer em algumas partes do mundo, e o Brasil é o exemplo acabado, é que o discurso de ódio não é apenas uma manifestação individual. Quando falo de discurso de ódio, não estou a falar da dona Maria ou do senhor José que têm 50 amigos no Facebook e publicam um disparate. Neste caso, não deve haver qualquer criminalização ou investigação, é um problema que se resolve com educação, cultura, acesso à informação. Aquilo a que me refiro é ao discurso de ódio de pessoas como Silas Malafaia, Jair Bolsonaro, Marco Feliciano, Marcelo Crivella, Edir Macedo. Em Espanha, Santiago Abascal ou Iván Espinosa de los Monteros. Estou a falar de pessoas que têm uma estrutura económica, política e organizacional que lhes permite não apenas manifestar uma opinião pessoal mas transformar o discurso de ódio num método de intervenção que produz efeitos sobre a sociedade. No Brasil, o filho do Presidente da República, Carlos Bolsonaro, comanda um gabinete dentro do Palácio do Planalto cuja função é coordenar milhares e milhares de contas falsas nas redes sociais da internet  e grupos do WhatsApp que espalham mentiras e discurso de ódio contra os homossexuais, contra os negros, contra os indígenas. Isto tem de ser crime.

Na página 156 do livro fala sobre a criminalização da homofobia e afirma: “Combater a homofobia com o direito penal é ineficaz, inútil e errado. Como ativistas de direitos humanos, sabemos isso. Sabemos como funciona o sistema penal e quem ele seleciona para punir, e também sabemos que a ameaça punitiva não dissuade, porque se assim fosse as altíssimas penas para homicídio fariam com que as pessoas deixassem de matar.”
Mas aí estou a falar da dona Maria e senhor José. No Brasil, chegou a haver uma proposta no Congresso de uma lei que criminalizasse o que lá se designa por “injúria homofóbica”. Por exemplo, estou na rua e uma pessoa vira-se para mim e grita “paneleiro filho da puta” ou “maricas de merda”. Pretendia-se que a pessoa que o fizesse pudesse ser presa pela polícia. Claro que não concordo. Isto não resolve nada, o que temos é de criar as condições estruturais para combater a homofobia, para que não apareça alguém a gritar injúrias no meio da rua. Não se resolve o problema com penas de prisão, até porque sei como funciona o sistema penal no mundo inteiro. Um homem branco de classe média, com estudos universitários, que mora num bairro nobre, vai de mão dada com o namorado no meio da rua e encontra um rapaz negro da Favela do Vidigal que lhe grita “paneleiro de merda”. O rapaz, à luz desta proposta de lei, iria para a prisão. Se fosse o contrário: o rapaz da Favela do Vidigal que está na rua de mão dada com o namorado e ouve injúrias de dois rapazes brancos com pais ricos, que estão dentro de um carro, o que é que acontece? Nada, eles não vão ser presos porque o sistema os protege. Sou contra a utilização do aparelho penal do Estado para perseguir o indivíduo, mas isso é diferente da superestrutura, do político milionário que usa as redes sociais para espalhar o ódio. Não tem de ir para a cadeia, mas deve ter uma multa e contas bloqueadas na internet.

O presidente Bolsonaro é descrito por Bruno Bimbi como um "psicopata fascista"

EVARISTO SA/AFP via Getty Images

A questão da censura mantém-se. A partir de que momento é que o controlo passa a censura?
Na Alemanha, que viveu o horror do nazismo e dos milhões de mortos que ele produziu, não se pode escrever nas redes sociais que os judeus devem ser mortos. Quando falamos em censura, estamos a pensar no cidadão que tem direito à liberdade de expressão. O que temos em países como o Brasil, ou nos EUA e na Grã-Bretanha, é uma estrutura económica poderosíssima cujo discurso de ódio contamina o debate público e produz violência física. São coisas bem diferentes. Temos de fazer uma reflexão muito séria e desapaixonada, que não seja a luta de um título de jornal contra outro título de jornal. Temos de aprofundar. Por isso é que digo que mandar pessoas para a cadeia não é uma solução, mas também digo que para lá das pessoas comuns que podem ter preconceitos, temos estruturas poderosas que fomentam o assassinato e a violência.

Se a sua posição é apenas contra quem comete crimes já previstos na lei, não há novidade.
Vamos ver. Todos os fascismos, todos os discursos de ódio, passam pela desumanização do outro. O holocausto foi possível não apenas porque houve um louco chamado Adolf Hitler, mas porque durante muito tempo, muito antes de Hitler nascer, os judeus foram desumanizados na Europa através de um discurso antissemita de várias origens. Quando o nazismo levou milhões de judeus para os campos de concentração, as pessoas sabiam, talvez não em pormenor, que alguma coisa sinistra estava a acontecer. A sociedade achava isto normal porque olhava para os judeus como se não fossem humanos. É exatamente isto que é feito com os homossexuais em boa parte do mundo através de discursos que vêm da política e da religião. As pessoas LGBT são desumanizadas. Portanto, o pastor Malafaia não pega no microfone para dizer “vamos matar os homossexuais”. Por acaso até já disse que devem ser espancados. Mas ele passa os dias inteiros, o ano inteiro, a dizer que os homossexuais são pessoas más, perigosas, possuídas por Satanás. O discurso de Malafaia e de Jair Bolsonaro, ou de Viktor Orbán na Hungria, diz que os homossexuais são perigosos, que são um perigo para as crianças, que vão acabar com a família. Quando se contamina a cabeça das pessoas de forma massiva, na igreja, no Facebook, no WhatsApp, é muito rápido o caminho até alguém desequilibrado matar um homossexual.

A responsabilidade está na fonte do discurso ou nos recetores desse discurso?
Por isso é que temos de fazer ambas as coisas. Ao longo do livro deixo isto muito claro: primeiro, afirmar direitos, depois celebrar a diversidade e por fim usar a educação e a cultura. Mas isto não implica deixar que determinadas estruturas contaminem a sociedade. Não se pode tolerar mais isto.

[O autor tem promovido o livro através da rede social Twitter]

O que é que o levou a sair do Brasil e a instalar-se em Barcelona?
Não fui diretamente perseguido, mas como assessor do ex-deputado federal Jean Wyllys vivi as ameaças que lhe chegavam. Muitas vezes eram enviadas por e-mail e chegavam ao meu telemóvel. “Vamos violar a sua mãe e matá-la”. Foi uma situação que não desejo a ninguém. Saí por causa desta situação insuportável. Sabíamos de onde vinham as ameaças, vinham do mesmo grupo de Bolsonaro. Não queria viver ali. Era correspondente da televisão argentina e sentia-me como se fosse corresponde na Alemanha em 1936. O discurso de ódio estava à minha volta.

Quanto tempo vai viver em Barcelona?
Não sei, mas não tenciono voltar o Brasil enquanto Bolsonaro, que é um psicopata fascista, for presidente.

Mantém contacto com Jean Wyllys?
Sim, somos amigos.

O objetivo dele é candidatar-se à presidência do Brasil?
Tem que lhe perguntar a ele. Nunca falo em nome dos outros.

Acha que ele tem hipóteses?
Eu votaria nele.

Uma última pergunta, novamente sobre o “armário”. O sociólogo francês Didier Eribon vê o “armário” como uma estratégia utilitária. Escreveu em 1999 no livro Réflexions Sur La Question Gay que o “armário” tem sido denunciado como símbolo de vergonha mas é também um espaço de liberdade onde os homossexuais podem viver o orgulho à sua maneira quando a realidade em redor é discriminatória. Concorda?
Não posso avaliar o que ele pensa, porque não li. Posso guiar-me pela interpretação que me está a apresentar. Neste sentido, digo que o “armário” em determinadas circunstâncias é utilitário. Mas o que é negativo em si não é o “armário”, é a sociedade que oprime. Nem todas as pessoas saem para sempre do “armário”. Pode-se estar no “armário” para a família, mas não para os amigos, por exemplo. Eu saí completamente do “armário” mas se amanhã começar a ter aulas de espanhol numa escola onde ninguém me conhece, é provável que pressuponham que sou heterossexual. Ou seja, pode-se administrar o “armário”. Numa sociedade ideal, não existiria sequer o “armário” porque não teríamos de nos defender de qualquer ameaça.

Texto alterado às 18h10 de 22 de agosto com menção a Clodovil Hernandes e correção de gralhas.

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