Um Governo regional sem maioria (ainda que todos preguem a palavra estabilidade), um presidente a quem se pede um murro na mesa e uma estratégia política afogada em críticas, em que todos têm dedos apontados e ninguém se atreve a fazer planos a longo prazo. Os ataques às políticas ou à falta delas vão estando no topo da agenda das justificações, mas nos corredores regionais são apontados dedos a dois “culpados”: CDS e PPM.

As acusações multiplicam-se entre ingerências, influências em áreas profissionais, clientelismo e até a alegada imposição de nomes e cargos para determinadas ilhas onde terão mais capacidade de interferir. Os líderes de CDS e PPM são os principais alvos das críticas junto do maior partido do Governo (o PSD) e até de quem já rompeu com o acordo (IL). Artur Lima, vice-presidente do Governo regional e líder do CDS/Açores, defende-se ao dizer que “nunca pediu nada ao PSD” e vira o ataque contra o “velho PSD” (do qual exclui José Manuel Bolieiro). Na mesma linha, Paulo Estevão, líder do PPM, considera que esta é uma “narrativa mitológica” que apenas interessa a quem quer instabilidade.

Os ataques vão sendo mais constantes agora que a tal estabilidade está (mais) colocada em causa e as vozes críticas vão-se multiplicando, principalmente por parte de quem negoceia com o Governo regional — Chega, IL e o deputado independente Carlos Furtado —, mas também no próprio PSD.

O presidente da Iniciativa Liberal foi um dos que, em público, numa entrevista ao jornal Público, atirou aos parceiros de coligação do PSD: “A instabilidade política nos Açores vem de dentro da coligação PSD/CDS. A instabilidade resulta de falta de liderança, o PSD como partido preponderante desta solução tem demonstrado falta de liderança, e de uma preponderância desproporcionada face ao seu peso eleitoral e à posição na coligação do PPM e do CDS. ”

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“CDS e PPM têm um peso excessivo dentro da coligação tendo em conta peso eleitoral que tiveram nas eleições e isso causa mal-estar. Muitas pessoas, mesmo na sociedade civil, acham que os líderes destes partidos não deviam ter tanto poder. O mal-estar é também no PSD, que está a sair prejudicado.” As palavras são de um histórico social-democrata da região dos Açores, mas têm eco tanto em elementos do Governo de José Manuel Bolieiro como em políticos do Chega e da Iniciativa Liberal, que acabou a romper o acordo de incidência parlamentar que tinha com o PSD (o que já tinha acontecido com o Chega).

Apesar de muitos alinharem na ideia de que “IL, Chega e o deputado independente [Carlos Furtado]” são os “fatores de instabilidade” com que o Governo regional tem de lidar, vários sociais-democratas ouvidos pelo Observador não só consideram que CDS e PPM estão “agarrados ao poder como lapa à pedra”, como acreditam que a solução mais acertada seria ir para eleições e que deveria até ser o PSD a proporcioná-lo.

“Não indo a eleições, o PSD fica ainda mais refém porque no dia das eleições os partidos vão exigir mais lugares nas listas, podem ocupar as zonas cinzentas das várias ilhas e os partidos mais pequenos podem ser ainda mais beneficiados”, explica um dirigente do PSD, enquanto outro fala numa “tolerância excessiva que acabou num peso desproporcional dos parceiros na coligação”.

O acordo assinado entre PSD, CDS e PPM é para duas legislaturas e a coligação serve também para as próximas eleições pelo que, ainda que houvesse uma antecipação das regionais de 2024, os três partidos que são hoje a cara do Executivo dos Açores iriam juntos a jogo.

Sem moções de censura ou de confiança apresentadas após a decisão da Iniciativa Liberal (só os grupos parlamentares o podiam fazer), José Manuel Bolieiro ganhou um seguro de vida pelo menos até outubro, altura em que se vota o último orçamento da legislatura, que pode levar à queda do Governo — e que vai depender dos votos de Chega, IL, Carlos Furtado e até do PAN.

Ainda assim, fica para já a ressalva de que o PS admitiu a possibilidade de uma moção de censura ao Governo regional e deu a entender que está a aguardar para ter o número de votos suficientes para fazer cair Bolieiro. Nuno Barata, deputado da IL, não deu um claro ‘não’, pelo contrário.

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Dois pesos (muito) pesados

O tiro ao alvo é consensual: os críticos da atual governação (muitos deles sociais-democratas) acusam CDS e PPM de terem um grande controlo no arquipélago e de porem e disporem em cargos e nomeações. Artur Lima, um dos nomes mais criticados, é vice-presidente do Governo regional com as pastas da Solidariedade Social, Habitação, Ciência e Tecnologia, Promoção da Igualdade e Inclusão Social e Aerogare Civil das Lajes.

Mas o CDS tem mais: além de um secretário regional do Ambiente e Alterações Climáticas (Alonso Miguel) e tem diretores regionais na pasta do Desenvolvimento Rural (Emiliana Silva), de Qualificação Profissional e Emprego (Nuno Gomes), da Solidariedade Social (Andreia Vasconcelos) e na Prevenção e Combate às dependências (Pedro Fins).

Já o PPM conta com o secretário regional do Mar e das Pescas (Manuel São João) e com o diretor regional dos Assuntos Culturais (Duarte Chaves). E o líder, Paulo Estevão, não tem um lugar no Executivo de Bolieiro, mas é visto como uma espécie de líder da bancada parlamentar do Governo.

Uma fonte próxima de José Manuel Bolieiro ouvida pelo Observador olha para o atual Governo regional e para as críticas sobre o “peso excessivo” e nota que estiveram em causa “negociações normais numa coligação”, em que teve de haver distribuição de cargos, mas faz uma comparação: “O Governo nos Açores é mais ou menos como era o de Passos Coelho e Paulo Portas: o CDS é mais pequeno, mas tem um líder [Artur Lima] muito vistoso e muito controlador e o José Manuel Bolieiro é uma pessoa mais calma, afável e terra a terra.”

“A influência do CDS e do PPM no Governo regional é excessiva, até perversa”, sublinha uma fonte próxima da governação, que acusa os democratas-cristãos de fazerem uma “limpeza” em várias áreas e de terem uma “necessidade de excluir as pessoas mais competentes”.

“A maior instabilidade vem do líder do CDS”, atira um militante do Chega/Açores, que vai ao encontro de uma crítica de um liberal ouvido pelo Observador que não tem dúvidas de que “o Artur Lima sempre quis mandar na Saúde” e que essa é a sua “luta titânica” da região agora que a direita chegou ao poder.

Perante o cenário, há quem, entre sociais-democratas, aponte apenas um caminho para que o PSD saia da “situação governamental tremida em que se encontra”: “O presidente do Governo tinha a obrigação de pôr fim à coligação e dizer que o projeto está posto em causa. Devia querer ir para eleições e esse gesto seria bem-visto pelas pessoas.”

O ex-secretário regional da Finanças expressou uma opinião idêntica num artigo no Açoriano Oriental, onde se referiu a uma “oportunidade perdida” e ao facto de José Manuel Bolieiro não dever ter aceitado “as ingerências dos seus parceiros de coligação” e de “não ter tirado consequências políticas” de situações como a demissão do secretário regional da Saúde, Clélio Meneses.

Uma gota (valiosa) num oceano

Os últimos anos têm sido marcados por trocas de cadeiras e saídas no Governo regional, mas o caso do secretário regional da Saúde é o que mais salta à vista. No momento em que saiu, Clélio Meneses disse que deixava o cargo por “razões exclusivamente políticas” e “divergências insanáveis”.

Ao longo do tempo em que esteve como governante distanciou-se de opções com que não concordava — questões essas que os partidos atribuem a Artur Lima — e sempre deixou claro que a escolha de Cristina Fraga para presidente da administração do Hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada, era do topo da governação (leia-se do vice-presidente).

E mesmo após a saída da responsável, o secretário regional da Saúde voltou a não ter opção de escolha do nome seguinte. Cristina Fraga é descrita por fontes próximas do processo como uma “protegida” de Artur Lima. Poucos meses depois de se demitir do cargo após se incompatibilizar com médicos do hospital, foi anunciada como responsável por uma Estrutura de Missão para o Acompanhamento do Financiamento da Saúde (EMAFIS) criada pelo Governo dos Açores — uma decisão que o próprio presidente da Ordem dos Médicos nos Açores, Carlos Ponte, já disse ter revelado “falta de sensibilidade política”.

Com a responsabilidade da nova estrutura encabeçada por Cristina Fraga, a nova secretária da Saúde é vista como um “fantoche”, nota uma das fontes próximas do processo ouvida pelo Observador. “No meio disto tudo, quando parece que o CDS perdeu posição, acaba por sair reforçado, em vez de controlar um hospital controla a região”, já que o objetivo da estrutura é avaliar, estudar e desenvolver um modelo de gestão dos recursos disponíveis na área da saúde.

Vários membros do PSD descreveram o secretário da Saúde como “o membro mais competente do Governo” e uma “nomeação por mérito”, mas tanto sociais-democratas como liberais destacam o facto de Artur Lima sempre ter tentado gerir a área da saúde, até pela profissão de médico-dentista. “Sempre teve tendência para se imiscuir nesta área.”

As acusações não se ficam por aqui: há quem aponte que o ex-secretário das Finanças foi “afastado a pedido do CDS e PPM” e como uma “imposição dos parceiros” e apontam-se críticas ao despedimento do conselho de administração da Lotaçor (uma decisão até contestada pelo setor) e levada a cabo por um membro do PPM.

A defesa que sai com ricochete

Artur Lima nem sequer olha para as críticas como “novas”, diz estar habituado, nomeadamente por considerar que no PSD “nem eles próprios se entendem”, mas faz dois sublinhados: Bolieiro é o homem ao qual os sociais-democratas deviam agradecer e o CDS nunca pediu nada a ninguém.

Em declarações ao Observador, confrontado com os ataques dos últimos dias, é perentório: “Não pedi nada ao PSD, quem veio falar comigo para fazer coligação foi o PSD. Não preciso do PSD para nada e fiz o acordo porque foi com José Manuel Bolieiro. Se fosse com essa gente que mina o partido e denigre o presidente… se é capaz de criticar homem honrado, imagino o que não faz aos outros…”

Numa retrospetiva sobre o momento em que a direita teve a possibilidade de pôr fim a 24 anos de governação socialista, Artur Lima recorda que sempre achou que uma coligação entre PSD e CDS seria “difícil” porque o “velho PSD odeia o CDS”. E não se coíbe a devolver as críticas: “O velho PSD queria ir para administrações e exercer o poder, só que as pessoas não se esqueceram deles e precisávamos de mudança nos Açores.”

Também Paulo Estevão, líder do PPM, descreve todas as acusações como uma “narrativa mitológica”, garantindo que “a instabilidade governativa não existe” e que o Governo tem obtido resultados nos últimos anos.

“Só temos um militante a exercer funções no Governo. Não há uma única prova de ingerência do PPM em relação ao Governo, nem sei como pode ser dito que temos peso excessivo”, sublinhou, dizendo ainda que são os históricos do PSD que têm vindo a público falar contra Bolieiro e as suas decisões, mas que o presidente do Governo regional tem um “peso político inquestionável”.

Ainda sobre Cristina Fraga, a maior acusação feita a Artur Lima, o próprio esclarece que “não é nem nunca foi do CDS” e que nunca foi imposta. “O presidente do Governo é que me pediu se eu tinha alguém para lhe indicar, não impus ninguém“, assegura, enquanto sai em defesa da “melhor gestora de saúde” que conheceu desde que está na política, nomeadamente pela forma como lhe atribui o mérito pela redução das listas de espera.

“Talvez Cristina Fraga não tenha deixado bem alguns interesses instalados no tempo do PS e que incomodam o centrão de interesses da saúde, que é igual no PSD e no PS”, sugere o líder dos democratas-cristãos.

Bolieiro no meio do furacão

Um membro do PSD/Açores ouvido pelo Observador que comentava o “peso excessivo” de CDS e PPM garante que a culpa é de Bolieiro: “Os partidos não se estão a impor, o PSD é que permite. O PSD aceita tudo.” Um outro social-democrata não poupa nas palavras: “O PSD está com um estilo em que aceita as coisas mais absurdas do mundo no momento mais erro. O presidente Bolieiro aguenta tudo.”

Também um membro da Iniciativa Liberal dos Açores ouvido pelo Observador não deixa dúvidas na atribuição de culpas: “José Manuel Bolieiro não é assertivo, não é corajoso, não confronta ninguém, tem medo que o Governo caia e por isso aceita tudo. CDS e PPM exigem e o presidente dos Açores deu-lhes tudo.”

As próprias estruturas do PSD queixam-se do mesmo: “Houve protestos severos, audíveis e intensos por parte de membros do PSD, que achavam que estava a ser excessivo. Os cargos foram dados para que o CDS se acomodasse e enquanto houve espaços vazios ninguém parou o CDS”.

Mas no Governo a defesa de estabilidade é a maior arma, Bolieiro “não quer mandar tudo ao chão” e “não pode agora tirar aquilo que deu”, já que seria uma porta aberta para o governo cair.

Bolieiro repete dia após dia a ideia de que pretende ser um “garante de estabilidade” no arquipélago dos Açores e quem está por perto vê exatamente isso. Descrito como “leal” e “dialogante”, membros do Governo recordam que “conseguiu o feito de voltar a trazer o PSD para o poder e tanto CDS como PPM asseguram que estarão ao lado de Bolieiro para fazer cumprir o acordo firmado para oito anos.

O rumo até outubro

O Governo de José Manuel Bolieiro viu o orçamento ser aprovado há poucos meses (até com mais um voto do que os anterior porque o PAN votou favoravelmente) e tem um seguro de vida até outubro, altura em que será preciso aprovar o último orçamento desta legislatura.

Com Iniciativa Liberal, Chega e o deputado independente Carlos Furtado sem darem garantias de voto e a votarem ponto a ponto — José Pacheco, do Chega, já o fazia antes do romper de acordo por parte dos liberais —, o Governo pode acabar por cair, mas, até agora, todos os partidos asseguram que querem a tão citada “estabilidade”.

Ainda assim, Nuno Barata garantiu numa entrevista à RDP, depois de romper o acordo, que os liberais estão disponíveis para votar a favor de uma moção de censura (uma postura que acabou por corrigir e que o próprio presidente da IL veio refutar).

Ainda que o PS depois tenha vindo dizer que não apresentará uma moção de censura, pelo menos para já, o deputado do PS Francisco César disse, ao jornal Público, que o partido só apresentaria uma moção “quando for preciso e souber que pode ter o apoio [suficiente] para a aprovar”, porque fez contas e referiu “o PS teria apenas 28 votos a favor, quando são necessários 29” (a contar com o voto a favor da IL).

Nuno Barata explicou que “se houver uma moção de censura, a Iniciativa Liberal votará a favor“. “Não fazia sentido estar aqui a fazer a declaração política que fizemos hoje e manter a confiança nesse Governo e havendo a possibilidade de votar uma moção de censura, votar contra essa moção de censura, não faz qualquer tipo de sentido, seria de uma incoerência imperdoável perante os açorianos”, esclareceu o deputado regional.

Agora, em declarações ao Observador, corrige a mão: “Por princípio não voto, não votamos, coisas cujo teor não conhecemos, mas se forem ao encontro do pensamento liberal não teria qualquer problema em votar a favor uma moção de censura, assim como não poderia votar a favor uma moção de confiança.”

Numa entrevista ao Público, o presidente da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, não deixa espaço para a dúvidas sobre a postura do partido a nível nacional: “Em termos gerais, e no respeito pela autonomia do núcleo dos Açores, posso afirmar, e isso está claro na moção de estratégia, que a IL não promove nenhum tipo de solução de que resulte a possibilidade de o PS assumir funções governativas.”. E não será diferente nos Açores, segundo o líder liberal: “É um comentário geral que vale para os Açores, para a Madeira e para o continente.”

Com incógnitas por esclarecer, sabe-se que os três deputados estão com os acordos rasgados e que Bolieiro precisará de negociar o orçamento para fazer o Governo sobreviver até às eleições. Mas o peso de CDS e PPM são um desconforto tanto dentro do PSD como para quem apoiava o Governo, o que pode pesar nas contas na hora de pensar no futuro.