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As ilustrações desta nova biografia são da autoria de Helena Soares
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As ilustrações desta nova biografia são da autoria de Helena Soares

As ilustrações desta nova biografia são da autoria de Helena Soares

Canções de engate e as cassetes mágicas de António Variações

A inspiração, o método e um arquivo de valor único. O Observador publica um excerto de uma nova biografia de um dos nomes mais influentes da cultura popular portuguesa.

O título procura ser auto-explicativo: “António Variações, uma biografia”. Porque as diferentes faces de um artista único na cultura popular portuguesa podem ser recordadas e (re)contadas de diferentes formas. Esta procura realçar os momentos mais importantes da voz que influenciou todos os que se seguiram, através de palavras e de ilustrações. As primeiras da autoria do jornalista Bruno Horta (colaborador habitual do Observador), as segundas pela mão de Helena Soares.

O livro já está à venda e este é um excerto que recupera a forma única como António Variações compunha, como registava as suas criações e como o arquivo que deixou foi mais tarde transformado num disco que foi além da homenagem.

A capa de “António Variações, uma biografia”, de Bruno Horta e Helena Soares (Suma de Letras)

Antes de trocar Lisboa por Amesterdão, António começa a fazer experiências musicais como autor e tem uma das primeiras aparições em palco. Em 1971 ou 72, desafiado pelo amigo Fernando Heitor, participa num concurso de cantigas no salão paroquial da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, em Lisboa. Era uma versão amadora do Grande Prémio TV da Canção (futuro Festival RTP da Canção).

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Os pormenores já caíram no esquecimento, à distância de tantas décadas. Sabe-se que Fernando Heitor, jovem estudante de Teatro, tinha escrito uma letra para ir a concurso e estava a par das aspirações artísticas de António, tendo-lhe pedido que a musicasse à sua maneira. Conheceram-se por intermédio de Victor Hugo Guerreiro, cabeleireiro no Ayer e colega de Ataíde.

A letra diria qualquer coisa como “trago vinho fresco no peito”. Era romântica, mas fugia do nacional-cançonetismo em voga, inspirando-se, sim, na linguagem moderna que José Carlos Ary dos Santos tinha introduzido no festival da RTP. Curiosamente, Ary dos Santos ficou célebre como poeta repentista, popular no propósito e por vezes quase popularucho no efeito — as mesmas características que se atribuirão a versos de António Variações daí a uns anos.

Entraram no concurso, António cantou e saíram vencedores com o reconhecimento do público a servir-lhes de prémio. No júri estavam artistas católicos que frequentavam aquela igreja, incluindo a actriz Carmen Dolores.

Mais ou menos no mesmo período, António musicou o refrão de um poema do irmão Luiz, intitulado Lodo, acerca das dificuldades da vida na grande cidade. Depois de um breve regresso à terra, Luiz Ribeiro estabelecera-se novamente na zona de Lisboa e tinha-se até casado, em 1972, vestindo um fato oferecido por António. Encontravam-se muitas vezes na casa de Luiz, na zona de Cascais, para almoços ou jantares de rissóis de camarão e arroz de tomate.

"Faço as melodias por um processo muito meu e depois trauteio-as aos músicos", contou em 1983. Um processo paciente e obsessivo em que se empenha com afinco, ao mesmo tempo que, num caderno, faz rimas e regista sentimentos, sempre a pensar em canções — numa caligrafia escorreita, sem erros de português.

Como não sabia música, compunha as melodias de ouvido e sem notação, só com a voz, e anos mais tarde foi também assim que se apresentou aos músicos que com ele gravaram os seus discos. A partir de inícios da década 1980, se não antes, passará a registar as canções num gravador de cassetes, na expectativa de as mostrar a um músico profissional que as pusesse em letra de forma. “Faço as melodias por um processo muito meu e depois trauteio-as aos músicos”, contou em 1983. Um processo paciente e obsessivo em que se empenha com afinco, ao mesmo tempo que, num caderno, faz rimas e regista sentimentos, sempre a pensar em canções — numa caligrafia escorreita, sem erros de português.

Aquelas fitas magnéticas tornaram-se míticas após a morte do cantor, por nelas se encontrarem maquetas de temas que apareceram nos álbuns e de muitos outros que ficaram inéditos: por exemplo, “Tu Aqui”, “A Teia”, “Adeus Que Me Vou Embora”, “Já Não Sou Quem Era”, “A Culpa é da Vontade” (gravados por Lena d’Água em 1989); ou ainda 2Parei na Madrugada” (Oquestrada em 2014), “Ao Passar por Braga Abaixo” (Telmo Pires em 2016) e “Quero Dar Nas Vistas” (Armando Teixeira e Sérgio Praia em 2019 para a banda sonora do filme biográfico Variações, de João Maia). Em 2000, o álbum Dar & Receber (original de 1984) foi reeditado pela Parlophone Portugal em versão restaurada e ganhou um novo tema, Minha Cara Sem Fronteiras. A mesma editora publicou em 2006 a colectânea A História de António Variações — Entre Braga e Nova Iorque, com uma gravação inédita de “Toma o Comprimido” e excertos de várias maquetes.

Helena Soares

Eram pelo menos 50 as demo tapes. Por volta de 1994, tinham sido entregues à editora Valentim de Carvalho pelo irmão de António, Jaime Ribeiro, que ficou responsável pelo espólio do cantor e ainda hoje tem à sua responsabilidade malas, cartazes e roupa que lhe pertenceram. Por muitos anos, as fitas ficaram dentro de um caixote, esquecidas a um canto nas instalações da editora, em Paço de Arcos.

Das 50 cassetes, 43 foram leiloadas em 2009, com bases de licitação entre 50 e mil euros — um leilão de fotografias, roupas, pósteres, rascunhos de letras e outros objectos pessoais, promovido no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, por iniciativa do irmão Jaime Ribeiro. Antes ainda, em 2004, tinham sido catalogadas pelo jornalista Nuno Galopim, a pedido da Valentim de Carvalho, tendo-se revelado especialmente difícil a datação das fitas. O que nelas se ouvia era a voz de António à capela, com eco de casa de banho, a marcar o ritmo com palmas ou uma rudimentar caixa de ritmos e mais raramente acompanhado por uma das bandas que ele encontrava através de anúncios de jornal. Por momentos, parecia dançar e cantar ao mesmo tempo e deixava confidências que continuam reservadas.

As marcas deste método de trabalho far-se-ão sentir principalmente no álbum de estreia, Anjo da Guarda: vocalizações prolongadas entre estrofes no tema …”O Corpo é Que Paga” — vocalizações que quase apagam o som dos instrumentos — e a voz despida, em eco, nos primeiros momentos de “Voz-Amália-de-Nós”.

Ao ouvirem as cassetes, os Humanos sentiram em António uma urgência em fixar aqueles sons, como se de uma necessidade vital se tratasse. [...] Surpreendeu-os que a trivialidade das melodias não as deixasse, porém, cair no mau gosto. Porque em António Variações o kitsch não era simulação, mas uma forma de estar.

Daquelas cassetes, com base no trabalho de catalogação, extraíram-se inéditos como “Maria Albertina” (num manuscrito de António chegou a aparecer com o título Estrangeirismos) ou “Muda de Vida”, recriados em 2004 pelos Humanos, banda de tributo concebida pela Valentim de Carvalho com as vozes de Manuela Azevedo, Camané e David Fonseca e produção de Nuno Rafael e Hélder Gonçalves (são também incluídos outros temas que Lena d’Água tinha cantado em 1989).

Ao ouvirem as cassetes, os Humanos sentiram em António uma urgência em fixar aqueles sons, como se de uma necessidade vital se tratasse. Não encontraram o criativo “à frente do seu tempo”, como muitas vezes sobre ele se diz — expressão que naquele tempo, ao lado de outras como “sofisticação” ou “loucura”, seria uma figura de estilo para evitar referências directas à orientação sexual. Os músicos identificaram, sim, óbvias influências de Rolling Stones, Beatles ou Ravi Shankar e da música tradicional do Norte de Portugal. Surpreendeu-os que a trivialidade das melodias não as deixasse, porém, cair no mau gosto. Porque em António Variações o kitsch não era simulação, mas uma forma de estar.

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