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Muitos compositores clássicos são conhecidos apenas por uma obra: foi o destino de Joaquín Rodrigo, com o Concierto de Aranjuez, de Dukas, com O Aprendiz de Feiticeiro, de Pachelbel, com o Cânone em ré maior, e de Albinoni, com um Adagio que, além de ser musicalmente indigente, não é da sua lavra nem é representativo da sua música. Também Carl Orff faz parte deste grupo de one-hit wonders, pois mesmo os melómanos mais coca-bichinhos terão dificuldade em nomear uma obra que não seja Carmina Burana. Na verdade, a maior parte das pessoas que identifica Orff com esta obra nem sequer reconhecerá outra parte dela para lá de “O Fortuna”, o coro de abertura (e fecho), que tem sido maciçamente utilizado em anúncios, filmes, séries de TV, jogos de vídeo e eventos desportivos e políticos. Apesar desta ampla difusão “extra-musical”, o mais provável é que os portugueses e britânicos que estão hoje na meia-idade e não tenham particulares inclinações musicais tenham descoberto este trecho num anúncio a after-shave que passava insistentemente nas televisões na década de 1970. Alguns, não fazendo ideia do que trata a música, talvez tenham estabelecido uma associação entre esta e desportos náuticos – mas não poderiam estar mais longe da realidade…
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Da obscuridade ao reconhecimento
Carl Orff (1895-1982) nasceu e morreu em Munique, a sua carreira raramente se afastou da capital da Baviera e o mar não desempenhou papel relevante nem na sua vida nem na sua obra. Ele mesmo declarou que “onde e quando nascemos molda aquilo que somos, e eu sou, essencialmente, um filho da Baviera e de Munique”. Solidamente terrestre e bávara era também a sua família: o pai e o avô paterno eram oficiais no exército bávaro. Os pais tinham inclinações musicais e o pequeno Carl começou a aprender piano, órgão e violoncelo aos cinco anos.
Os seus dotes criativos manifestaram-se precocemente: escreveu um romance quando tinha 8-9 anos, pouco depois começou a compor música e canções para peças de fantoches por si concebidas, aos 13 deitou mãos a uma ambiciosa obra coral-sinfónica sobre textos de Assim falava Zarathustra, de Nietzsche (que nunca completou). Aos 17 compôs a ópera Gisei, das Opfer (Gisei, o sacrifício), cujo libreto, da autoria do próprio compositor, adapta uma peça japonesa do século XVIII, Terakoya (A escola de aldeia). Orff não terá, retrospectivamente, ficado satisfeito com o resultado e enquanto foi vivo interditou a sua apresentação, pelo que Gisei só estreou em 2010.
Após estudos na Academia de Música de Munique, trabalhou nos teatros de ópera de Mannheim e Darmstadt. Regressou a Munique onde o seu interesse pela pedagogia artística acabou por resultar na fundação, em 1924, com Dorothy Günther, da Güntherschulle, uma academia que combinava o ensino de música, ginástica rítmica e dança clássica.
Ao longo da década de 1920 desenvolveu, com Gunild Keetman, um método de aprendizagem musical alternativo ao clássico solfejo, a que deu o nome de Schulwerk (Trabalho escolar) e que assenta quase exclusivamente em instrumentos de percussão (e flautas de bisel); a abordagem revelou-se frutuosa e ainda hoje tem ampla difusão, sendo por vezes denominada “método Orff”. Anos mais tarde, Orff declararia: “todo o ser humano tem um artista dentro de si e essa possibilidade pode ser encorajada ou reprimida; o meu princípio pedagógico sempre foi o encorajamento”.
Pela mesma altura, Orff descobriu a música antiga e, em particular, a de Monteverdi, que foi decisiva no seu percurso musical. Em 1925, levou à cena em Mannheim L’Orfeo (1607), a primeira ópera de Monteverdi (ver Música para amansar feras: A origem da ópera), numa versão cantada em alemão e com arranjos de sua autoria, mas deparou-se com uma recepção fria, dado o abismo que separava o gosto do público do estilo dos primórdios do barroco.
Quer a recuperação da ópera barroca e renascentista, quer as inovações pedagógicas traziam-lhe escassos rendimentos, pelo que Orff vivia, basicamente, de dar aulas particulares de música. Tudo mudou em 1937 com a estreia na ópera de Frankfurt da cantata cénica Carmina Burana.
Uma obra-prima do neo-primitivismo?
Em 1803 foi descoberta na biblioteca do mosteiro de Benediktbeuern, nos Alpes Bávaros, uma colecção de 254 canções, maioritariamente redigidas nos séculos XI e XII e compiladas em 1230. A maioria dos textos são em latim (mas há alguns em alemão e numa salgalhada de latim, alemão e francês), a sua origem é diversificada – Sacro Império Germânico, França, Ilhas Britânicas e Ibéria –, e a sua temática contempla o amor, a denúncia da corrupção ou os prazeres da mesa; muitos deles têm forte pendor satírico, outros inclinam-se para a brejeirice (ver Como a música das catedrais se transformou enquanto Notre-Dame era construída).
Em 1934, Orff deparou-se com uma edição desta colecção e seleccionou 24 canções, descartou a música e articulou os textos numa estrutura tripartida: a I parte (Primo vere) de Carmina Burana (Canções de Beuern, numa alusão ao mosteiro de onde provêm os textos) tem temática primaveril e expressa a exultação associado ao renascimento da vida trazido por aquela estação, a II parte (In taberna) gira em torno da comida e da bebida, e a III parte (Cour d’amours) ocupa-se dos assuntos “de coração”. A obra é aberta e encerrada pelo coro “Fortuna imperatrix mundi”, que celebra o poder da deusa Fortuna, à qual toda a existência humana está submetida.
[“In taberna quando sumus”, de Carmina Burana, na versão dirigida por Eugen Jochum (Deutsche Grammophon)]
A música com que Orff revestiu estes textos é relativamente simples e pauta-se pela repetição e por uma forte componente rítmica, que geram um irresistível poder encantatório. Não há nela nada de explicitamente medieval, mas pode falar-se de um “neo-paganismo”, que, nos momentos mais intensos e brutais, faz pensar num ritual tribal, que tem afinidades com os bailados de inspiração russa de Igor Stravinsky. Este causara sensação em 1910-13 ao compor para os Ballets Russes de Diaghilev três bailados – L’oiseau de feu, Petrushka e Le sacre du Printemps – que causaram grande comoção devido aos ritmos irregulares e brutais, ao papel de relevo dado à percussão, ao colorido exuberante e original, às texturas ásperas e cruas e às melodias inspiradas no folclore russo (ver A Primavera é a mais cruel das estações). Em 1913, Stravinsky começara a conceber uma quarta obra para os Ballets Russes nesta mesma linha, a que deu o título de Les Noces e que tinha como ponto de partida letras de canções tradicionais russas de casamento.
[“Le départ de la mariée” (Quadro III da Parte I), de Les Noces, de Stravinsky, numa versão dirigida por Ernest Ansermet (Decca)]
Porém, a I Guerra Mundial veio perturbar a vida cultural europeia e os planos de Stravinsky, de forma que a versão preliminar da obra só foi terminada em 1917 e a orquestração só ficou concluída em 1923, ano em que teve estreia em Paris. Pelo meio, a mega-orquestra que Stravinsky planeara originalmente foi reduzida a uma inaudita combinação de quatro pianos e vasta panóplia de percussão, a que se somam quatro solistas vocais e um coro. Les noces pode ser vista como um fruto tardio da “fase russa” de Stravinsky, pois quando a obra estreou o compositor já entrara na “fase neoclássica”, mas não é menos fascinante por isso e os seus ritmos vigorosos e repetitivos (por vezes quase mecânicos), os seus coros agrestes e a sua orquestração percussiva e brilhante influenciaram fortemente Orff na composição de Carmina Burana.
Stravinsky não gostou de ver as suas ideias reutilizadas e simplificadas – sob as afinidades superficiais, os ritmos e harmonias de Orff são mais convencionais do que os de Stravinsky – e rotulou Carmina Burana de “neo-neanderthal”.
[“Ego sum abbas”, de Carmina Burana, por Dietrich Fischer-Dieskau (barítono), na versão dirigida por Eugen Jochum (Deutsche Grammophon)]
Orff e o III Reich
Na noite da estreia de Carmina Burana, Orff estava nervoso, pois, por esta altura, o regime nazi vigiava de perto a criação musical e o que não encaixasse no conservador cânone nacional-socialista era rotulado de Entartete Musik (“Música degenerada”) e banido. A sua apreensão prendia-se com os textos de natureza erótica e satírica (embora o facto de serem cantados em latim medieval atenuasse o problema) e os ritmos tumultuosos e até violentos, mas a recepção foi genericamente favorável (embora um crítico tenha falado em “música de pretos bávara”) e a obra implantou-se no repertório.
As relações de Orff com o regime nazi têm sido alvo de debates inconclusivos: não há provas concretas de que Orff tenha apoiado o regime, mas também não as há de que tenha feito parte do movimento anti-fascista Weiße Rose (Rosa Branca), como declarou às autoridades aliadas encarregues do processo de “desnazificação”. Em Composers of the Nazi era: Eight portraits, Michael H. Kater escrutinou a vida de Orff durante o III Reich, mas os elementos que apurou, ainda que revelem que o compositor era bem visto pelo regime, nunca o mostram a dar um passo “incriminatório”.
Não sabemos qual seria a ideologia política de Orff – se é que tinha alguma – mas a verdade é que a sua posição no meio musical se foi consolidando após a estreia triunfal de Carmina Burana, em 1937. As encomendas de música feitas pelas instituições musicais alemães e austríacas começaram a surgir: a primeira, em 1938, decorreu do facto de Felix Mendelssohn, por ser judeu, ter sido banido na Alemanha, pelo que havia que providenciar uma alternativa para a sua música de cena para a popular peça Sonho de uma noite de Verão – alguns compositores do regime, como Richard Strauss e Hans Pfitzner furtaram-se a tão ingrata tarefa, mas Orff lá preparou a sua versão “ariana” de Sonho de uma noite de Verão, que estreou, com boa recepção em 1939.
Os sinais de aprovação pelo regime foram sucedendo-se: em 1941 a secção de imprensa do Ministério da Propaganda emitiu uma circular recomendando que a crítica tratasse favoravelmente as suas obras. Em 1942, Orff foi distinguido com um prémio do Reichsmusikkammer (Instituto de Música do Estado), cujo objectivo era promover a “boa música alemã” e reprimir a Entartete Musik. Em 1944, alguém deu a ouvir pela primeira vez a música de Orff a Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda, e este ficou tão entusiasmado que logo lhe propôs que compusesse “música de combate” para sonorizar os filmes de propaganda sobre a frente de batalha. Pouco depois, o nome de Orff foi incluído na Gottbegnadetten-Liste, uma lista “abençoados pela graça de divina”, onde figuravam 1041 artistas alemães que estavam isentos de prestar qualquer tipo de serviço ligado à guerra (e onde se incluíam os nomes de Richard Strauss e Herbert von Karajan). Nesse mesmo ano, foi-lhe solicitado que contribuísse com um texto para um volume colectivo de louvores ao Führer por artistas destacados do III Reich e também nesta ocasião Orff teve um comportamento dúbio: em vez de redigir algo de sua lavra, copiou um poema de Hölderlin e dedicou-o a “Adolf Hitler, mecenas da Arte Alemã”.
Também não sabemos o que pensavam exactamente as altas figuras que controlavam a cultura do III Reich sobre a música de Orff (se é que pensavam alguma coisa), mas é plausível que vissem na sua energia rítmica e moderada originalidade o tipo de “modernismo” que Goebbels ambicionava, suficientemente “revolucionário” para dar cumprimento à promessa nazi de ruptura com as tradições caducas e suficientemente “conservador” para não ser confundida com os devaneios da música dodecafónica ou os ritmos sincopados do jazz. É também plausível que o pendor de celebração pagã de muitas obras de Orff fosse do agrado de um regime que encarava os valores do cristianismo com desprezo.
Após o final da guerra, os vínculos de Orff ao III Reich levaram a que fosse catalogado numa categoria de “confiança” que o impedia de desempenhar cargos públicos, como professor ou director de um teatro ou instituição musical. Compelido a encontrar uma saída para a sua carreira, lembrou-se de que, embora não tivesse feito nada de concreto para se opor ao regime nazi, fora amigo íntimo de Kurt Huber, do grupo Weiße Rose, que tinha sido preso e executado em 1943, pelo que não poderia contradizer ou confirmar as suas alegações de que participara em acções de resistência ao nazismo. O testemunho de Orff foi aceite pela comissão encarregada da “desnazificação” e Orff foi reclassificado numa categoria “aceitável”, embora, posteriormente, a viúva de Huber tenha asseverado não estar a par de qualquer envolvimento do compositor nas acções do Weiße Rose. Pelo contrário, relatou que, quando Orff, por mero acaso, a visitou no dia a seguir à detenção de Huber pela Gestapo e foi posto a par desta, não só não acedeu ao pedido da esposa de Huber por interceder por este, como só manifestou preocupação por a sua amizade com Huber poder arruinar a sua carreira.
Sob o signo da Antiguidade Clássica
Após o final da II Guerra Mundial, o fascínio de Orff com a Antiguidade Clássica foi intensificando-se, fazendo com que a maior parte da produção desse período tivesse por ponto de partida textos gregos e romanos. Já em 1943 estreara Catulli Carmina (Canções de Catulo), uma cantata (ou ludi saenici, i.e. “divertimento cénico”) na linha de Carmina Burana, sobre textos do poeta romano Catulo (c.84-c.54 a.C.), montados de forma a criar uma vaga narrativa, tendo por tema a paixão de Catulo por Clodia.
A ópera Antigonae, de 1949, é a primeira peça de um projecto – a que deu o título de “Theatrum Mundi” – que visava recriar no século XX a antiga tragédia grega, retomando os propósitos da Camerata Fiorentina, na viragem dos séculos XVI/XVII (ver Música para amansar feras: A origem da ópera). Nesta demanda pela recriação de uma forma de arte irremediavelmente desaparecida, Orff fez questão de preservar na sua ópera o texto integral da peça de Sófocles, mas paradoxalmente, fê-lo através da tradução para alemão de Hölderlin, e repetiu este procedimento com a ópera Oedipus der Tyrann (1959), novamente a partir de Sófocles em versão de Hölderlin. Porém, na ópera Prometheus, de 1968, usou o original grego de Ésquilo e na ópera De tempore fine comedia (Uma peça para o fim dos tempos), de 1973, mesclou originais gregos e latinos, provenientes de hinos órficos e dos Libri Sibyllini (Livros Sibilinos), com traduções alemãs.
Entretanto, em 1953, estreara Trionfo di Afrodite, mais uma cantata cénica (desta vez Orff rotulou-a de “concerto scenico”), formando com Carmina Burana e Catulli Carmina a trilogia dos “Trionfi”. Os textos, todos alusivos a rituais de casamento – mais uma aproximação a Les Noces, de Stravinsky –, são de Catulo, Safo e, em menor proporção, de Eurípedes, desta feita vertidos para italiano.
Todas estas obras dão papel de relevo à percussão, que em De tempore fine comedia requer, só por si, 25 a 30 executantes, que se somam a uma vasta orquestra de sopros, três harpas, três pianos, órgão electrónico e fita magnética (na viragem das décadas de 1960/70 não havia compositor com pretensões “modernistas” que não incluísse fita magnética nas suas partituras, mesmo que não soubesse dar-lhe uso produtivo).
Embora tenha vivido mais nove anos, Orff não produziu mais nenhuma obra digna de nota depois de 1973, limitando-se em 1977, a preparar uma versão revista de De tempore fine comedia.
A Carl Orff Edition
Com excepção do material contido no CD 1, as gravações contidas nesta caixa de 11 CDs estão há muito descatalogadas e não estão disponíveis no mercado interpretações alternativas de muitas destas obras, que só raramente foram gravadas. O livrete, minimal, discrimina faixas e intérpretes, resume a vida e obra de Orff em duas páginas e meia e não inclui textos cantados.
CD 1: Carmina Burana
A versão dirigida por Eugen Jochum à frente do Coro & Orquestra da Deutschen Oper de Berlim e dos Schöneberger Sangerknaben, foi gravada em 1967 no Ufa-Tonstudio de Berlim na presença do compositor, que deu a sua aprovação ao resultado; desde que foi lançada, em 1968, nunca deixou de figurar nas listas de recomendações desta obra.
[“Stetit puella”, de Carmina Burana, por Gundula Janowitz (soprano), na versão dirigida por Eugen Jochum]
Uma vez que em Carmina Burana a espectacularidade sonora e a amplitude dinâmica são capitais, poderá haver quem estranhe que esta “vetusta” versão não tenha sido amplamente suplantada pelas muitas dezenas de novas gravações entretanto surgidas, mas não só a qualidade sonora não denuncia os seus 53 anos de idade como Jochum imprime à música vigor e arrebatamento sem ser bombástico, ao mesmo tempo que sabe aplicar subtileza e contenção nos trechos que o exigem. Tem ainda em seu favor um excelente trio de solistas, então no auge das suas capacidades: Gundula Janowitz, Gerhard Stolze e, sobretudo, Dietrich Fischer-Dieskau.
[“Omnia sol temperat”, de Carmina Burana, por Dietrich Fischer-Dieskau (barítono), na versão dirigida por Eugen Jochum]
CD 2: Catulli Carmina + Trionfo di Afrodite
Ambas as obras contam novamente com a direcção de Eugen Jochum: em Catulli Carmina alinha novamente o Coro da Deutschen Oper de Berlim, agora acompanhado por uma hoste de percussionistas e foi gravado em 1970 no mesmo Ufa-Tonstudio, que, sem surpresa, volta a proporcionar excelente qualidade de som. O Trionfo di Afrodite conta com o Coro & Orquestra da Orquestra Sinfónica da Rádio Bávara (Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks) e foi registado em 1955, com qualidade sonora medíocre.
Os painéis 2 e 3 dos Trionfi limitam-se a repetir as fórmulas do painel 1. Catulli Carmina é de uma extraordinária aridez melódica e avareza de invenção e, não sendo possível apurar o que está a ser cantado, nem sequer pode aferir-se se os ocasionais acessos de excitação rítmica têm razão de ser ou são gratuitos. O Trionfo di Afrodite tem momentos (“Invocazione dell’Imeneo” e “Ludi e canti nuziali davanti al talamo”) que fazem pensar em Carmina Burana e, ainda mais, em Les noces, mas é prejudicado pela fraca qualidade da gravação mono.
[“Ludi e canti nuziali davanti al talamo”, de Trionfo di Afrodite, na versão dirigida por Eugen Jochum]
CD 3: Die Bernauerin
Die Bernauerin (1947), a que Orff apôs o subtítulo “ein bairisches Stück” (“uma peça bávara”) consiste em longos diálogos intercalados por trechos musicais breves e rudimentaríssimos. O assunto do libreto (da autoria do próprio Orff) é o casamento secreto do Duque Albrecht III da Baviera com a sua amante, Agnes Bernauer, mas, uma vez que a peça é falada e cantada em bávaro arcaico e a Orff Edition não inclui textos, também poderia ser o mistério da Santíssima Trindade ou a cerâmica pré-colombiana do Novo México. Esta gravação de 1957, dirigida por Ferdinand Leitner, com o Coro & Orquestra da Orquestra Sinfónica da Rádio Bávara, apenas contém excertos e, atendendo ao torpor profundo que estes causam, é lícito supor que a execução integral da obra esteja interditada pelas autoridades de saúde.
CD 4-6: Antigonae
CD 7-9: Oedipus der Tyrann
A interpretação das duas óperas mais relevantes de Orff está confiada ao Coro & Orquestra da Orquestra Sinfónica da Rádio Bávara, com direcção de Ferdinand Leitner (Antigonae) ou Rafel Kubelik (Oedipus der Tyrann), em gravações de 1961 e 1966, respectivamente. É possível que assistir ao vivo a estas óperas seja tolerável ou até compensador, mas sem acção cénica e sem libreto, o ouvinte não-germanófono sucumbirá ao tédio ao fim de alguns minutos, já que é necessário atravessar áridas vastidões de recitativo. Nalguns interlúdios musicais, como o “Zwischenspiel”, de Antigonae, é possível ver prefigurações da escola minimal-repetitiva e em particular da música de Steve Reich (isto não é um elogio).
[“Zwischenspiel”, de Antigonae, na versão dirigida por Ferdinand Leitner]
CD 10: De tempore fine comedia
De tempore fine comedia deveria ser o testamento musical e o pináculo da obra de Orff, mas é a confirmação final de que o compositor esgotara as suas melhores ideias em Carmina Burana. A parte final de “Wo irren wir hin” é arrebatadora, mas a maior parte do material soa como material sobrante da cantata de 1937. Os dois momentos realmente surpreendentes são “Vae! Ibunt impii in gehennam ignis eterni” e “Upote, mepote, maepu, maedépote… Ignis eterni immensa tormenta”, que prefiguram o neo-tribalismo percussivo e ominoso dos Test Dept por alturas do álbum Terra firma (1988).
[“Vae! Ibunt impii in gehennam ignis eterni”, na versão dirigida por Herbert von Karajan]
A obra, de toada apocalíptica e angustiada e que abunda em explosões de sopros e cavalgadas percussivas, termina em registo etéreo e apaziguado, com a gigantesca massa coral e orquestral a dar lugar a um quarteto de violas da gamba, num registo que prefigura o “minimalismo sacro” de Arvo Pärt e outros compositores bálticos (o que também não deve ser interpretado como um elogio).
A interpretação é de Herbert von Karajan, à frente do Tölzer Knabenchor, do Coro de Câmara da RIAS e do Coro & Orquestra Sinfónica da Rádio de Colónia, numa gravação realizada em 1973, pouco depois de o mesmo maestro ter dirigido a estreia da obra no Festival de Salzburg
[“Upote, mepote, maepu, maedépote”, na versão dirigida por Herbert von Karajan]
CD 11
É apresentado como CD “bónus” mas parece antes uma atabalhoada colagem de sobras de fitas nos arquivos da Deutsche Grammophon.
A “Entrata”, inspirada em “The Bells”, do compositor renascentista inglês William Byrd prefigura as solenes sensaborias neo-clássicas/minimais de Max Richter e Michael Nyman.
A reorquestração do “Lamento d’Arianna”, de Monteverdi, revela uma profunda incompreensão da música do início do século XVII – o acompanhamento, confiado a um cravo estridente, intrusivo e desajeitado, é de bradar aos céus –, a soprano Elisabeth Höngen soa menos como uma Ariana abandonada do que como um touro numa loja de porcelanas e a gravação, de 1952, é péssima.
Os breves excertos da ópera Die Kluge (1943) sugerem uma obra rudimentar e de humor fácil e popularucho.
O CD completa-se com uma gravação de excertos de Carmina Burana realizada em 1949 em Berlim por Ferenc Fricsay, à frente do Coro de Câmara e da Orquestra Sinfónica da RIAS, cuja qualidade sonora é, inevitavelmente, demasiado baça para que o registo ultrapasse o patamar de “curiosidade histórica”.
[“Estuans interius”, de Carmina Burana, por Dietrich Fischer-Dieskau (barítono), na versão dirigida por Ferenc Fricsay]
Em resumo: mesmo que já possua uma boa versão de Carmina Burana, vale a pena adquirir, separadamente, a versão de Jochum. Quanto a esta caixa, só poderá interessar a estudiosos da obra de Orff com fluência na língua alemã (embora talvez nem estes consigam perceber o que é dito em Die Bernauerin).