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Aos 64 anos de idade, Queiroz ainda sorri como um globetrotter (Portugal, EUA, Japão. EAU, África do Sul, Inglaterra, Espanha e Irão)
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Aos 64 anos de idade, Queiroz ainda sorri como um globetrotter (Portugal, EUA, Japão. EAU, África do Sul, Inglaterra, Espanha e Irão)

Getty Images

Aos 64 anos de idade, Queiroz ainda sorri como um globetrotter (Portugal, EUA, Japão. EAU, África do Sul, Inglaterra, Espanha e Irão)

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Carlos Queiroz. "E afinal todos conheciam a Cicciolina"

Na ressaca de mais uma vitória com o Irão, rumo ao quarto Mundial da carreira (África do Sul-2002, Portugal-2010 e Irão-2014), eis o treinador a falar de Portugal, Benfica, Deco, Nani e Ronaldo.

Segunda-feira, 22 Julho 1392. Hããã? É isso mesmo, entrámos num filme de outro tempo (calendário islâmico). O local é Teerão, o portal é o aeroporto Imam Khomeini, onde desembarcam os passageiros de Istambul após uma viagem de três horas e meia, depois de outras quatro e meia de Lisboa até ao Bósforo. Mudámos de continente, pronto. Isto já é Ásia. Nossa e dele. Quem? Já vão ver. No meio de uma paisagem árida, está o aeroporto internacional de Teerão – há um outro no centro da cidade, só para voos domésticos. Lá dentro, é um centro comercial moderno, equipado com cafés, lojas de roupa e livrarias. No placard eletrónico, há a tendência para franzirmos a testa e ficarmos com os olhos mais rasgados que nunca a tentar perceber o que é aquilo: as letras andam em rodapé da esquerda para a direita, ao contrário do que estamos habituados, e não há como entender uma única coisa. É impossível, pura e simplesmente. O abecedário é outro.

Até os números são diferentes. O zero é simplesmente um ponto (fácil), o 1 é um traço (facílimo), o 2 é um y ao contrário (hey, isto é canja), o 3 é um w apoiado por um traço na extremidade da esquerda (piece of cake), o 4 é um M de lado (estão a ver?), o 5 tanto pode ser um coração ao contrário como um triângulo arrendondado (registado), o 6 é um traço reto ligado a outro como se fosse um 7 (anotado), o 7 é um V (que engraçado), o 8 é um V ao contrário (eheheheh, isto é divertido) e o 9 é um 9 sem a perna (olha olha). Decorado? Siiiiiiiiim. De repente, não, claro que não. O quadro muda de página e apresenta outros voos com outros horários e números diferentes, tchau lógica. Concentremo-nos na passagem para o lado de lá. Há duas filas, uma para iranianos, outra para estrangeiros. Como é que sabemos isso? Porque uma diz iranian e a outra foreign. Ufff…

As cinco pessoas à nossa frente são despachadas com um carimbo em menos de dois minutos. Quando somos nós, o passaporte é visto e revisto. O jovem sentado num cubículo envidraçado com um computador à frente e a apontar-nos uma mini câmara faz um esforço para dizer Rui. Primeiro sem sorriso, depois com sorriso. Pergunta por Portugal. “Ainda bem que fala disso” e sacamos da mochila uma fotografia de Carlos Queiroz com uma mini taça do mundo na mão, publicada aquando da vitória do Irão na Coreia do Sul que permite a qualificação direta para o Mundial-2014. O jovem olha para a fotografia a preto e branco, abre o sorriso e carimba-nos o passaporte enquanto diz o nome do herói. Afinal uma fotografia não vale mil palavras, bastam duas: Carlos Queiroz.

Domingo, 5 Março 2017. Hããã? É isso mesmo, entrámos num filme de outro tempo (calendário georgiano). É o reencontro, uma espécie de 2.ª mão. Agora é em casa. De Carlos Queiroz. Sem necessidade de fotografias nem passaportes. Basta um aperto de mão e siga a dança. Em dia de festival da canção no Coliseu, só o queremos ouvir sobre a seleção portuguesa. Das camadas jovens aos AA, das cinco finais aos três títulos (um europeu, dois mundiais). Ao todo, 27 vitórias, 11 empates e só cinco derrotas em 43 jogos, 26 dos quais sem sofrer qualquer golo. É dose.

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A sua iniciação no futebol é em Moçambique?
Ferroviário de Nampula. O meu pai era avançado, ao lado do Matateu.

Hãã, o Matateu?
Esse, o Matateu.

Como se chama o seu pai?
Júlio Queiroz.

O filho do Júlio é que não jogou à frente.
Não me deixaram [solta a primeira gargalhada]. Disseram-me que era bom à baliza mas acho que alguém queria era um lugar lá à frente.

Sonhava ser alguém?
A referência era o Costa Pereira, bicampeão europeu pelo Benfica. Treinou o Ferroviário, ele nos seniores e eu nos juniores.

Mais futebol em Nampula?
Havia uma revista inglesa com cassetes de jogos, mas jogos inteiros.

Inteiros como?
A revista enviava cassetes para qualquer parte do mundo. Juntávamos um grupo de amigos e víamos os jogos. Já os sabíamos de cor e salteado.

Que jogos?
Os de Portugal em 1966, por exemplo.

A cassete vinha como?
Recebíamos e enviávamos por correio. Havia um período limitado para usufruir daqueles jogos.

Incrível.
Como não havia discotecas, o passatempo da minha geração era desporto sim, desporto sim, desporto sim. Cresci nesse ambiente.

Num jogo com a Nigéria, instruí os jogadores para reterem a bola e fazerem dribles à frente de um ou outro adversário mais naif. Como nasci e joguei em África, conheço os africanos e sei que eles se impacientam facilmente na procura da bola. Por isso, disse-lhes para martirizarem, por assim dizer, os nigerianos. Se fossemos bem sucedidos, eles batiam-nos à margem da lei e o árbitro até ficava a simpatizar com aqueles miúdos pequenos e habilidosos.

Quando chega a Portugal?
Em 1967, no ano pós-Mundial.

E o futebol?
Curiosamente, o meu primeiro trabalho de futebol, ainda como estudante de segundo ano, é a treinar o Colégio Americano, com miúdos de várias nacionalidades. Continuo o mesmo, já viu?

E depois?
Olivais, Belenenses e Estoril, aqui como estreia profissional na 1.ª divisão.

Quem o convidou?
Mário Wilson, o treinador. Eu era adjunto-preparador físico.

E essa equipa era boa?
Só foi pena termos descido para a 2.ª divisão por diferença de golos. Lembro-me de Amílcar, Barros, Tião, Eurico, Abrantes, Fernando Santos. Estou a ficar preocupado, ainda consegui ser o treinador do Fernando Santos. Eu não devia dizer isto em voz alta.

Entra então na federação. A primeira fase final do Queiroz é a de 1988, com os sub-16.
O nosso grupo foi em Bilbao, é quando o João Vieira Pinto anuncia que se vai casar com a Carla. Depois, a gente vem para Madrid e joga o acesso à final.

Acaba 4-0, a meia-final com a RDA. Os calmeirões dos alemães, como escreve o Diário de Lisboa.
Isso dos calmeirões é engraçado. Vou só fazer um aparte: num recente livro sobre os campeões do mundo em Riade, o Folha e o Paulo Sousa falam do pormenor de serem instruídos para tirar vantagem da desvantagem.

Como assim?
Num jogo com a Nigéria, instruí os jogadores para reterem a bola e fazer dribles à frente de um ou outro adversário mais naif. Como nasci e joguei em África, conheço os africanos e sei que eles se impacientam facilmente na procura da bola. Por isso, disse-lhes para martirizarem, por assim dizer, os nigerianos. Se fossemos bem sucedidos, eles batiam-nos à margem da lei e o árbitro até ficava a simpatizar com aqueles miúdos pequenos e habilidosos.

Resultou?
Um nigeriano foi expulso e ganhámos esse jogo.

Fiz uma batalha campal com os árbitros e a própria UEFA por causa da hidratação dos jogadores. Era importante dar-lhes água, coisa que, na altura, era proibido pela lei. Fiz pressão, em vão. Nada. Jogou-se toda a final debaixo daquele calor.

De volta ao 4-0 sobre a RDA.
Pois, é verdade. Com RDA’s, Roménias e Suécias, era frequente outro tipo de jogo, mais apelativo e dinâmico e costumávamos circular a bola muito rapidamente de maneira a cansá-los. Como essa seleção era criativa, os calmeirões andavam quase sempre atrás da bola. Quando chegavam à bola, já a bola estava mais à frente, já estávamos no outro compasso. Ou seja, estávamos sempre à frente.

Goleámos a RDA e vamos jogar a final com a anfitriã Espanha.
Lembro-me perfeitamente desse dia, estava um calor abrasador em Vallecas. Com base nos meus primeiros conhecimentos científicos, fiz uma batalha campal com os árbitros e a própria UEFA por causa da hidratação dos jogadores. Era importante dar-lhes água, coisa que, na altura, era proibido pela lei. Fiz pressão, em vão. Nada. Jogou-se toda a final debaixo daquele calor.

O 0-0 eterniza-se.
Vamos para os penáltis e aí dá-se um acontecimento curioso.

Então?
Ninguém quer bater os penáltis, todos recusam e fogem à marcação. Aí tive de mandar uns berros e foi à base da obrigação: ‘és tu e vais marcar mesmo.’

Quem ganha?
Aconteceu a casualidade da vitória da Espanha [marcam Rui Bento e Jorge Costa; falham Luís Miguel e Paulo Pilar], só que o nosso segundo lugar mereceu este comentário por parte do selecionador espanhol, um senhor chamado Pereda, com passado glorioso como futebolista do Barcelona. “Sou só um selecionador. Se fosse responsável desportivo do Barcelona, contratava a equipa toda de Portugal'”.

Que equipa era essa?
João Vieira Pinto, João Oliveira Pinto, Paulo Pilar, Bizarro, Peixinho. Chamava-lhes o grupo dos atrevidos. Dou este exemplo: um dia, meti-os a jogar contra os sub-18, a geração do rigor, serenidade, disciplina e organização personificada por Paulo Sousa, Resende, Hélio, Couto, entre outros. Eles, os sub-16, não tinham respeito por ninguém e foram para cima deles na primeira parte. Deram-lhes um baile tremendo. Como era o árbitro desse jogo, começo a ouvir os mais velhos a falar entre si e começaram a descascar nos mais pequeninos. Veja só este meio-campo: Tozé, Hélio, Filipe.

Uyyyyyy.
Começaram a aviar e marcaram uns dois golos. Quando vi aquilo empatado, acabei com o treino [e começa a rir-se].


Há outra história engraçada, entre os sub-18 e os AA. O selecionador era o Juca, sempre acompanhado pelo senhor Pimenta, e brincava com ele: ‘a vossa sorte é nunca jogaram com os juniores’. Passou um tempo e, um belo dia, não há equipa da 2.ª divisão disponível para um jogo-treino com os AA. Fomos nós a jogo e eu disse ao Pimenta ‘olhe que isto ainda vai dar para o torto e vai é desanimar os AA’. Meu dito, meu feito. Os juniores estavam a ganhar e o Juca acabou com o treino. Esses juniores, os Paulo Sousas, Paulo Alves, Hélios, Coutos, Tozés, eram muito sólidos.

É essa seleção que perde o Euro sub-18 em 1988?
Exatamente, com a USSR [Queiroz diz à inglesa], após prolongamento [3-1]. Dois anos depois, perdemos outra final com a USSR, nos penáltis. Foi aí que fiquei aliviado.

Então?
Perdemos a final com a USSR em 1988 e somos campeões do mundo em 1989. Perdemos a final com a USSR em 1990 e?

Campeões do mundo em 1991.
Se é para perder a final do Europeu com a USSR e ganhar o Mundial do ano seguinte, tudo bem. Dei uma entrevista antes do Mundial 1991 em que dizia isso mesmo: a derrota com a USSR abre-nos a porta para o título.

Nessas duas meias-finais do Euro sub-18, Portugal elimina a Espanha.
Vou contar duas histórias curiosas: na primeira meia-final, o jogo estava renhido até ao momento em que o Canana marcou um golo. A gente estava ali tremido, já a pensar nos penáltis, quando o Canana, belíssimo jogador e muitíssimo malandro, lembra-se de um lance do arco da velha. Há um ataque nosso, a bola fica no guarda-redes deles e o Canana está no chão. No quadradinho seguinte, quando o guarda-redes olha para o sítio onde o Canana caiu, já não mora lá ninguém. Porquê? O Canana, malandro, volto a dizer, foi para o outro lado e não é que rouba a bola ao guarda-redes na reposição? Bem, o meu amigo Pereda [selecionador espanhol] quase caiu para trás. ‘No es posible, perder asi‘, dizia-me. Bom, foi um lance divertido, claro, que pintou bem para o nosso lado. Dois anos depois, na outra meia-final com a Espanha, o Gil faz a mesma coisa. Meio às escondidas, engana o guarda-redes, mete o pé e faz golo. Aquilo fez escola e o pessoal da UEFA perguntava-me se aquilo era treinado em Portugal.

Como era a cobertura jornalística portuguesa nessa altura?
Há um AR e um DR, antes de Rui Santos e depois de Rui Santos. Por norma, só havia dois jornais com enviados-especiais, o d’A Bola e o do Record. O d’A Bola era sempre o mesmo, na pessoa do Rui Santos, o do Record ia mudando. Com o sucesso nos Europeus sub-16 e sub-18 em 1988, apareceram outros jornalistas: a Gazeta, a Lusa, até a Antena 1 fazia os relatos dos jogos, através do José Mateus. Com o título mundial em Riade 1989, há um boom. E isso nota-se, por exemplo, num jogo de qualificação sem importância em Malta: estavam três/quatro jornalistas.

Como era o acompanhamento dos adversários?
As observações… O que é que eu e o Nelo [Vingada] fazíamos? Sentávamo-nos à frente da televisão e tomávamos nota de tudo naqueles resumos de minuto e meio, dois minutos dos outros jogos do Mundial. Com papel a caneta, tentávamos apanhar o máximo possível. De resto, era às cegas. Não tínhamos ninguém que fosse ver os jogos. O que fazíamos? Apostávamos em nós, na nossa estratégia. A tática era sempre a mesma: impor o nosso jogo pela nossa qualidade para que fosse o adversário a alterar a estratégia.

E o recurso ao vídeo?
Isso era um espetáculo. A primeira vez que tivemos equipamento para observação foi em Riade, acho. Comprámos um vídeo. Aproveitámos a generosidade de dois dirigentes da federação, que nos acompanhavam e acarinhavam muito.

Quem são eles?
O Paes do Amaral e o senhor Pimenta. Um pouco à revelia da federação, eles é que juntaram os dinheiros das despesas da viagem e compraram um vídeo. O Nelo sabe onde foi essa compra.

E isso só em Riade?
Uma vez, eu e o Nelo fomos convidados para treinar a seleção de Macau. Aproveitámos e comprámos duas Betamax em Hong Kong. A partir daí, a nossa vida mudou. Para melhor. A Betamax era disputada por todos: o Nelo filmava um bocado, eu outro. E filmávamos tudo, desde bancadas a treinos completos. Como já trabalhava com meios audiovisuais desde 1982, quando andava na Faculdade, os primeiros cursos de treinador no ISEF já tinham imagens vídeo para documentar situações de jogo. Aliás, a federação publicou a minha tese e eu fiz um filme sobre a formação e preparação de treino dos jogadores nas camadas jovens, à base de imagens.

E quem são esses jogadores-modelo?
Figo, João Vieira Pinto, Paulo Pilar, Gil, Rui Costa, Peixe. [começa a rir-se sozinho] [e não pára] Nos primeiros filmes, éramos tão ingénuos e inocentes que levámos os miúdos à exaustão. Dou-lhe um exemplo: queríamos simular um ataque quatro contra três [começa a rir-se, outra vez]. Que ingénuos. Bom, queríamos simular e aquilo não batia certo. Ou acertávamos a imagem e os jogadores é que desacertavam a bola ou a imagem estava desfocada quando os jogadores faziam tudo bem, a verdade é que apagávamos tudo. Pura e simplesmente. Foram precisos dois meses para percebermos que podíamos editar. Ou seja, filmar tudo e depois escolher as melhores partes. A gente, não; se estava ligeiramente mal, apaga tudo. [Queiroz baloiça para a frente, sem parar de rir]. De repente, alguém teve um flash e passou-nos um atestado de burrice [Queiroz continua a rir-se com vontade].

Portugal é campeão do mundo em Março 1989. O que faz Queiroz no regresso?
Nem descansei por aí além, porque tinha de preparar os sub-16 para o Mundial na Escócia em Junho.

O tal do Paulo Santos. O que é que realmente aconteceu?
É uma pergunta interessante, digo-lhe. Aquilo foi um jogo tenso com a Guiné Conacri, no terceiro e último jogo da fase de grupos, só resolvido no último minuto [Lourenço faz o 1-1 aos 80′ e encaminha Portugal para os quartos-de-final]. Os adeptos escoceses fizeram-nos uma pressão tremenda todo o jogo [os relatos dos jornais da época falam de cânticos, cuspidelas mais insultos contínuos e gratuitos]. Quando acaba, os balneários estão à minha direita e a nossa baliza é à minha esquerda. Só para se perceber o cenário, okay? No dia seguinte, estou muito bem no quarto de hotel e informam-me que a polícia está no hall à procura de um jogador que insultou e fez gestos aos adeptos escoceses. Ora bem, eu não vi os gestos. Porque estava longe, como já disse. E ninguém mais viu os gestos. Não há nada no relatório do árbitro. Não há nada no relatório do delegado ao jogo. Não há nada de nada. Perguntei a adeptos portugueses e ninguém viu nada.

E agora?
Vamos admitir que isto seja um cenário, o do Paulo Santos ter puxado os calções para baixo na direção dos adeptos escoceses, eu não acredito bem nisso. Acredito que tenha feito um gesto menos próprio, agora baixar os calções é que não. Nunca vi isso no futebol, porque é que ia acontecer connosco, naquele dia? Mais grave que isso, é um statment feito de testemunhas escocesas à polícia escocesa e a polícia escocesa apresenta queixa à FIFA. Assim mesmo.

E a FIFA?
Tomou a decisão mais cómoda e tomou o partido da polícia.

E a polícia?
Atuou de forma prepotente: ou vocês tomam a atitude de expulsar o jogador ou nós atuamos e o jogador vai a julgamento. A nossa federação ficou num beco sem saída e o Paulo voltou para Portugal [entra em acção o suplente Nuno Fonseca]. Jogámos o resto do Mundial sem guarda-redes suplente.

E como correu?
Afastámos a Argentina, nos quartos [Figo e Tulipa, 2-1], e fomos eliminados pela Escócia nas meias.

Precisamente a Escócia?
Digo-lhe, esse jogo foi feio, apitado por um árbitro que nunca mais apitou jogos internacionais [facto: é o último jogo internacional do francês Jean-Marie Lartigot]. Veja lá a nossa sorte que apanhámos o mesmo avião, em Glasgow, de volta para o continente.

A seleção portuguesa e o árbitro francês?
Exatamente. Bem, aquilo foi um chorrilho de comentários entre os nossos miúdos, naturalmente devastados. Comentários irónicos e sarcásticos, contundentes e críticos. Que viagem. Uns anos mais tarde, com outra seleção, fomos à França fazer um jogo de qualificação e ganhámos 3-0. No percurso do estádio para o aeroporto em Paris, parámos para jantar. Coincidências da vida: o árbitro do Portugal-Escócia estava lá. Imagina, não é? Até fui à mesa dele e falámos de tudo. Disse-lhe que tinha sido uma vergonha, aquela arbitragem. Péssima arbitragem, aliás. Não digo premeditada, só péssima. Ele disse-me ‘isso já passou’. Não, isso não, nunca passa. Podíamos ter ido à final e não fomos.

Quem ganha esse Mundial?
A Arábia Saudita, nos penáltis. Essa Arábia jogou connosco na fase de grupos, empatámos 2-2 [Figo, de penálti, e Gil].

Três meses antes, a nossa única derrota em Riade é precisamente com a Arábia Saudita. Porquê aquele 3-0?
Primeiro, eles jogaram melhor e mereceram claramente a vitória. Depois, aquela tempestade de areia. Nem eu nem o Nelo nem ninguém tinha visto aquilo, éramos todos uns aprendizes. O estádio estava coberto de areia e, se não me engano, o jogo até começou ligeiramente mais tarde que o previsto. Quando chegámos ao estádio, saltaram as perguntas: fazemos o aquecimento lá fora, no relvado, ou cá dentro, no balneário? Estudámos as vantagens e desvantagens até que me decidi em fazer o aquecimento lá fora. Assim, acostumavam-se ao ar. A caminho do relvado, apercebo-me de que a Arábia não salta para o aquecimento e aí percebi o meu equívoco. Transmiti logo essa ideia ao Nelo: ‘eles sabem mais que nós sobre tempestades de areia e não saíram’. E a verdade é que aquela poeira debilitou a equipa, parecia que estávamos a dormir. Se for ver os registos, o 1-0 e o 2-0 são seguidos.

Para esse Mundial, o Vítor Baía é chamado e depois sai da convocatória.
É verdade. O Mlynarczyk lesionou-se e o Baía subiu a titular. A ideia da formação é mesmo essa: criar condições para entrar na equipa principal. Como o Baía estava bem encaminhado no Porto e, depois, na seleção AA, optámos por deixar o Vítor fazer o seu percurso natural e fomos buscar um guarda-redes mais jovem, o Brassard. Assim, matava dois coelhos de uma cajadada só: lançava um miúdo de 17 anos no meio de jovens de 19 e que seria o titular da seleção no Mundial seguinte, em 1991. Isto tudo segue uma lógica de raciocínio.

Como é que se convive com a mentalidade de tantos miúdos?
Os piratas [Queiroz olha em frente como se estivesse a revisitar o passado]. Há duas fases minhas nas camadas jovens: a primeira, como adjunto do José Augusto; a segunda, como coordenador de todos os escalões. Com o José Augusto, a primeira fornada que apanhei é a do Futre, Fernando Mendes, Lima e a filosofia era a de ver a seleção como um prémio. Não, nada disso. És o melhor jogador do Benfica, és o rei do Porto, és o 10 do Sporting e és chamado à seleção? Então isso é o princípio. A seleção não é um prémio, e sim o princípio de uma carreira. Era o que via a acontecer em Itália, em França, na Suécia. Alertei o país para a formação profissional de futebol. Se queres seguir engenharia, arquitetura ou medicina, tens de te formar nessas especialidades. É a mesma coisa para o futebol. Queres ser jogador de futebol, forma-te. Há duas vias a seguir. A interna, em que os jogadores têm de acatar as regras impostas, e a externa.

Isso é o quê?
Se és um talento no piano ou no ballet, não podes ir à mesma escola dos outros. Se és um talento em futebol, a mesma coisa. Se queremos formar uma elite do futebol, a escola tem de ir ao encontro do jogador e não o contrário. Se os Europeus são em maio e os exames em junho, como é que fazemos? Tem de haver uma consertação a todos os níveis. Tive a sorte de encontrar o Mirandela da Costa, director geral dos desportos, e o diálogo institucional passou a ser fácil, porque a linguagem e o pensamento eram idênticos. Na altura, era assim: os juniores começavam a treinar às 17h30 e ocupavam o campo todo só durante 45′, porque apareciam os juvenis. Depois os iniciados, a seguir os infantis. Pergunta: a que horas treinam os infantis?


Às 19h30. Se a escola começa às oito e acaba às 17 e jogam futebol até às 21, os miúdos chegam a casa às 22 para ainda ir fazer os trabalhos de casa. Isto era o dia a dia, com a conivência e concordância de toda a gente. O que acontecia? Convidava-se à desistência escolar, não havia pais nem filhos que resistissem a esses horários. Com base nessas preocupações, trouxe a escola aos estágios da seleção e fiz força para implementar o estatuto de atleta de alta competição.

Isso permitia o quê?
Que houvesse épocas especiais de exames para quem era reconhecido pelo Estado como atleta de alta competição. Se o exame era em maio e o jogador estava na seleção, podia-se adiar para junho, julho ou agosto. O mesmo jogador estava 10 dias sem ir à escola por se encontrar em estágio. Quando chegava à escola, pedia aulas extraordinárias, de recuperação, e o liceu era obrigado a dá-las. O melhor disto tudo é ver jogadores com carreira no futebol, nos barcelonas, nas fiorentinas e nas juventus, e haver outros com formação académica, como o Hélio e o Tozé, licenciados em educação física. Ao mesmo tempo, os clubes começaram a investir em departamentos de formação. Isto estende-se também à carreira de treinador: exigência mais rigor igual a crescimento. Foi maravilhoso ver tudo isso a acontecer. Agora os piratas.

Estávamos em Bilbao e os hotéis espanhóis tinham uma série de canais, alguns pornográficos. Às tantas, vejo um filme em que a artista principal é uma senhora deputada em Itália chamada Cicciolina. Telefono imediatamente para o Nelo, conto-lhe a situação e digo-lhe para arrancar todos os cabos dos quartos dos jogadores.

Ah bom, vamos lá a eles.
Na teoria da educação, tive uma disciplina que adorei: processo coletivo de autodisciplina. Era qualquer coisa como acordar os princípios de interesse comum para chegar ao sucesso. Quer isto dizer que quando um jogador violava as regras, não estava a faltar ao respeito ao treinador, e sim a toda a equipa. Isso já era usado na marinha inglesa do século XV e XVI. Não há aqui segredos nem invenções. Os piratas davam dores de cabeça, claro. Mais pelas brincadeiras, como o desaparecimento de gelados no hotel. Pequenas coisas. Às vezes, eles diziam-me ‘hoje o mister não pode passar no nosso andar’ e eles lá faziam as suas festinhas. Natural, nada de mais. É bom dizer isto: cheguei a acompanhar jogadores desde os 13 anos e vivi os sonhos, medos e angústias deles. Os dramas familiares, o drama com as namoradas, o despertar da sensualidade, o primeiro olhar para uma mulher nua. Às vezes, aconteciam coisas que nem nós estávamos preparados.

Como por exemplo?
Um torneio em Amesterdão. Imagine lá levar um grupo de rapazes a Amesterdão.

Xiiiii.
Eram os bazófias. Ao longe, quando as estrangeiras passavam, nós éramos os melhores e ríamos. Depois, não acontecia mais nada. Um exemplo: festa de fim de um torneio qualquer e quem eram os primeiros a ir para a pista de dança? Eu e o Nelo. Os miúdos ficavam inibidos. Só eram bons ao longe, no gozo. Foi preciso criar uma maneira de estar para tirá-los daquele estado e fazê-los ir para a pista. Chegávamos a um país e dizíamos ‘aqui só se fala inglês ou francês’ para eles se habituarem e desenrascarem. Há um história engraçada.

Conte.
Um dia, a tal seleção sub-16 do Europeu 1988, a do País Basco. Estávamos em Bilbao e os hotéis espanhóis tinham uma série de canais, alguns pornográficos. Às tantas, vejo um filme em que a artista principal é uma senhora deputada em Itália chamada Cicciolina. Telefono imediatamente para o Nelo, conto-lhe a situação e digo-lhe para arrancar todos os cabos dos quartos dos jogadores [Queiroz volta a rir-se com prazer]. Veja lá a nossa prepotência: queríamos que eles fossem desinibidos e agora éramos nós que queríamos que eles não vissem aquilo. Isso passou. Na viagem de Madrid para Lisboa, vou dar um passeio no aeroporto e quem vejo numa das salas de embarque?

Quem?
A Cicciolina. E fico parado a pensar ‘ainda ontem a vi e hoje está aqui’. Quando chego ao pé dos miúdos, digo-lhes ‘vocês nem sabem quem está ali na sala de embarque’. Quando digo Cicciolina, todo o grupo arranca. Afinal de contas, toda a gente sabia quem era a Cicciolina. Andamos uns 30 metros, ficamos colados no vidro e lá está ela, na sala de embarque. O inédito acontece: a Cicciolina sai da sala e os jogadores da seleção começam a tirar fotografias, a pedir autógrafos, aquelas coisas todas. É toda uma cena engraçada e toda a gente está entusiasmada. Quando acaba a paródia, aproxima-se de mim o capitão: ‘ò professor, estou muito chocado consigo. Dos outros que conheço bem, até aceito. Agora que o professor também esteja envolvido isso é que não. Não posso estar de acordo consigo.’ Era o Rui Bento, sempre um caso à parte [Queiroz mantém o sorriso largo durante uns segundos]. Aos 18 anos, o Rui dá-me ali uma crítica, um sabonete por me ter entusiasmado com a Cicciolina. É só rir.

Mesmo.
E é isso. A partir daí, foi o desbravar do caminho para a perda da timidez, de um certo complexo de inferioridade. Havia viagens em que bastava passar a fronteira e já havia 3-0. Um pouco à imagem dos clubes por onde passei no início de carreira, Estoril e Belenenses. Chegávamos ao portão da Luz e já havia 3-0 para o Benfica. Com a seleção era a mesma coisa: 3-0 para os outros. Tivemos de trabalhar a mentalidade, a auto-estima para virar o chip e a verdade é que conseguimos. No campo e fora dele. Uns anos mais tarde, a primeira equipa a saltar para o palco a cantar e a dançar era a portuguesa. Que depois arrastavam sempre as outras equipas. A nossa dava sempre o melhor exemplo de comunicação, abertura e saber estar. Marcámos muitos pontos, em termos de simpatia junto da arbitragem da UEFA e FIFA. Libertámo-nos da timidez que assolava aquela primeira equipa com o Futre.

O Futre era tímido?
Era ele e eram todos. Se um era, os outros também o eram. Calma, hein: o Futre virou depois um atrevido do pior. Era o tempo dos malandros e a malandragem era jogar às cartas, fumar, deitar-se tarde. Só até há bem pouco tempo é que o jogador de futebol se valorizou na sociedade. Antes, era mal visto uma menina interessar-se por um jogador de futebol. Os pais delas não achavam piada. Nenhuma. Para eles, o jogador não trabalhava, era só um indivíduo que passava o tempo a jogar à bola e deixava muito a dizer sobre o aspeto intelectual. Entre os meus amigos, ouvia dizer ‘este gajo não sabe dizer duas palavras seguidas’. Ouçam lá, dizia-lhes, nós não somos contratados para fazer discursos. A maior ofensa foi a construção da aculturação à volta daquela frase sobre o Eusébio, de que ‘o melhor marisco é o tremoço’. O Eusébio sabe muito bem o que é marisco, ele veio da terra do marisco. Ora, isso não se faz, é falso e enganador. O jogador tem uma cultura específica, a arte de bem jogar futebol. Ponto. E o Eusébio fazia-o como ninguém. Dessa história entre cultura, discurso e desporto, guardo só mais esta declaração do Sócrates. Perguntaram-lhe um dia porque é que não celebrava os golos e ele respondeu ‘a mim, contrataram-me para marcar golos; para os celebrar, têm de pagar mais’.

É bicampeão mundial de juniores em 1991. E agora, o que fazer?
Estou de férias no Algarve e recebo uma chamada do João Rodrigues, presidente da federação, porque a seleção AA fica órfã do Artur Jorge, a caminho do PSG. Chego à Praça da Alegria e digo-lhe que não, não quero. E o João Rodrigues diz-me ‘você tem de pagar nisto’. Nem pensar, respondo-lhe. Venho do Algarve para lhe dizer não. Tenho de levar os miúdos ao Mundial 1993, na Austrália. É esse o objetivo. E o João Rodrigues a insistir, ‘você tem de pegar, é agora o momento’. Estávamos no gabinete do presidente e ele pede-me desculpa mas tem de ir lá fora. Passados uns 15 minutos, ele entrou no gabinete e disse ‘eu já disse à imprensa ali fora que você é o selecionador nacional; se quiser ir dizer que não, vá lá.’ Fiquei incrédulo. ‘Está a brincar comigo?!’ E ele: ‘Se tem alguma dúvida, vá lá fora, experimente.’ Mal meto um pé fora do gabinete, já há jornalistas ‘prof, finalmente chegou a sua oportunidade’.

Estamos em que fase?
Na parte final da qualificação para o Euro-92, faltam dois jogos, um com a Holanda, outro com a Grécia. Perdemos o primeiro [1-0 em Roterdão] e ficamos de fora do Euro, ganhamos o segundo [1-0 de JVP] já sem contar para o totobola. No Verão de 1992, quando saio com a seleção para o torneio quadrangular da US Cup, já tenho o acordo para treinar o Benfica em 1992-93. A minha ideia era fazer o torneio, voltar a Portugal e pedir a demissão à federação para entrar no Benfica.

Como é que isso acontece?
O presidente é o Jorge de Brito e quem me convida é o Gaspar Ramos, um grande senhor do futebol. Quando estou nos EUA, já com o acordo feito, um conjunto de amigos do Jorge de Brito vai a casa dele e fazem do Ivic o treinador do Benfica. No dia seguinte, Jorge de Brito acorda e tem dois dois treinadores: eu e Ivic. Começava aquela fase em que as pessoas achavam mesmo que tudo o que tinha dado certo no Porto também dava certo no Benfica.

Ainda bem que não apresentei a demissão antes da viagem aos EUA, senão chegava a Portugal sem a seleção nem o Benfica. Com este panorama, continuei como selecionador dos AA. O objetivo era o Mundial 1994.

E agora?
Posso dizer-lhe que o senhor Gaspar Ramos recusou fazer parte da lista de Jorge de Brito para as eleições presidenciais seguintes. Como foi enganado no processo, rejeitou continuar como chefe de departamento de futebol do Benfica.

E o Queiroz?
Ainda bem que não apresentei a demissão antes da viagem aos EUA, senão chegava a Portugal sem a seleção nem o Benfica. Com este panorama, continuei como selecionador dos AA. O objetivo era o Mundial 1994. Mas não ia agarrar a seleção num momento propício. Era uma equipa muito híbrida. Por um lado, uma seleção sem grandes soluções: não havia ponta esquerda, nem ponta de lança nem defesa esquerdo; na baliza, às vezes era o Silvino, outras o Neno. Por outro lado, subia aquela fornada de jogadores talentosos do Mundial sub-20 em 1991, ainda sem experiência nem maturidade para aquele mundo. Só para se ter uma ideia, o Figo que é o Figo não era titular do Sporting em 1994. Ou seja, dois anos depois do arranque da qualificação para o Mundial 1994, quando cheguei ao Sporting, o Figo era suplente e diziam-me que estava sempre a atirar-se para o chão. A isto acrescente-se uma crise diretiva complexa, com três presidentes naquele ano e meio: João Rodrigues, Lopes da Silva e Vítor Vasques. Nem sabia a quem responder e, mesmo assim, levámos a equipa até ao último jogo.

É até um grupo acessível, com Suíça, Malta, Estónia, Itália e Escócia.
Olhe Rui, nós é que colocámos um ponto final na história dessa geração da Escócia. Em Glasgow, empatámos 0-0 com um Futre endiabrado e ainda nos roubaram dois penáltis. Em Lisboa, na Luz, foi 5-0. Nunca mais me esqueço do ambiente, do McCoist ter partido a perna num lance dividido com o Oceano e ter sido o último jogo do Andy Roxburgh. A partir daí, nunca mais treinou. Foi tão enxovalhado na Escócia que mudou de vida e passou a ensinar treinadores.

Falhámos onde?
A nossa falha é a derrota em casa com a Itália. Nunca me hei-de esquecer desse jogo nas Antas. Cheguei ao banco e percebi que não conseguia ver um lado da baliza por culpa de uma câmara de televisão. Fui lá e pedi ao senhor da câmara para recuar. Ainda nem tinha chegado ao banco e já nos tinham metido um golo. O 2-0 foi logo a seguir. Perdemos 3-1. O problema nem é esse. O erro inesperado é a queda da Itália com a Suíça: empata 2-2 em casa e perde 1-0 fora, num jogo que eu fui ver em Berna. Quando a Itália falha com a Suíça, compromete-nos e passa a haver três galos para dois poleiros.

Qual a diferença de jogar nas Antas e na Luz?
Vou dar este exemplo: a melhor coisa que nos aconteceu no Mundial sub-20 em 1991 foi o jogo de abertura ter sido nas Antas. Se fosse em Lisboa, o pessoal diria ‘ok, jogo de abertura’ e não comparecia em massa. Nas Antas, o estádio estava cheio e isso deu-nos uma força extra para o resto da competição. Na qualificação para o Mundial 1994 escolhi o Portugal-Suíça nas Antas para sentir o apoio dos adeptos do Porto. Eles nunca nos falhavam nos jogos intermédios. Na Luz, os jogos do tudo ou nada eram cruciais, porque o estádio é maior e dá outro ar.

O Portugal-Estónia, a uma semana do Itália-Portugal, foi na Luz e…
Estava bom [como quem diz, nada de especial]. Devíamos ter marcado esse jogo para o Bessa, era um estádio com um ambiente mais intimidante.

Portugal tinha de ganhar 4-0 e ficou-se pelos três.
Há coisas que não acontecem por acaso, nós não estávamos a jogar dentro das quatro linhas. Quando a Estónia estagia em Itália, o nosso adversário direto na qualificação, e quando a Estónia, com a conivência do árbitro [o belga Blareau], perde à vontade uns 15 minutos com anti-jogo, é porque qualquer coisa não está bem. Ironia do destino, a Itália só nos elimina com um golo fora-de-jogo do Dino Baggio.

Um jogo em que tudo acaba mal.
Perdemos, somos eliminados do Mundial e eu digo o “varrer a porcaria”. Quem não merecia ouvir aquilo era o Vítor Vasques, presidente da federação. Ele gostava de futebol, não era um político ali no meio. Só que as circunstâncias vividas antes do jogo com a Itália ultrapassam o surreal. Tivemos um potencial Saltillo, tivemos um virar de camisolas por parte dos jogadores no último treino em Portugal. Por falta de agilidade, inteligência e modernização, repetimos os mesmos erros de 1986 em 1994. Lá dentro, os dirigentes diziam ‘nós somos dirigentes com 20 anos de experiência’. Não, dizia-lhes eu, ‘você teve foi a mesma experiência repetida durante vinte anos’, é diferente. Quando os tempos eram outros e já havia diálogo, a federação assinou um contrato com o Joaquim Oliveira, que não tem culpa nenhuma no processo, e ignorou os jogadores. Isto é perfeitamente inacreditável. Tudo isso afetou. Mesmo com estes problemas todos, chegámos ao último jogo. Olhe lá, ò Rui, se tivéssemos um ambiente tranquilo a rodear-nos.

O regresso em 2008 é mais tranquilo?
Começámos mal. Aliás, comecei mal. Quando voltei para Portugal, depois de não sei quantos anos no estrangeiro, pensei que voltava para o país que conhecia, para o meio das pessoas que conhecia. E, afinal, não conhecia nada. O país tinha mudado e eu tinha mudado. Ao princípio, não me apercebi disso.

O que falhou?
Se temos tido a sorte daquele jogo do Portugal-Dinamarca, em que perdemos 3-2 com dois golos nos últimos instantes, a derrota no Brasil [6-2] não seria passada a pente fino como foi. A partir desses dois jogos, foi o cabo dos trabalhos para dar a volta. Esses jogos foram em outubro/novembro e até ao próximo jogo, em março, foi bater no ceguinho. Daí para a frente, fizemos um ano 2009 perfeito [nove vitórias e três empates] e chegámos ao Mundial como terceiros classificados no ranking da FIFA. Calhou-nos jogar com a Espanha, a melhor selecção do mundo, os futuros campeões.

O que se passou depois do jogo?
É curioso: todas as manifestações de carinho foram dos jogadores espanhóis. Já estava sentado no nosso autocarro quando entraram lá dentro o Hierro e o Casillas a desejar-me força e “suerte”.

É também o jogo do “perguntem ao Queiroz” do Ronaldo.
Fiquei naturalmente incrédulo. Ainda hoje continuo a pensar que não era merecedor desse comentário, injusto, incorreto e desadequado, principalmente vindo do Cristiano. Por muito que o queira fazer, o capitão da equipa não pode tomar aquela atitude. Há pouco falei-lhe sobre o meu disparate da porcaria e já pedi desculpa ao Vítor Vasques.


É minha obrigação estar um patamar acima dessas coisas. O Rui sabe que as nossas carreiras, minha e do Ronaldo, são muito maiores do que um episódio. Adiante. As pessoas têm memória, mas quando se focam muito nesse episódio sinto-me tentado a dizer que a minha passagem no futebol português é um pouco maior do que isso. Por outro lado, quero guardar do Cristiano outras coisas, mais importantes e significativas. Além da responsabilidade direta da forma como ele chega ao Manchester, trabalhei seis anos com aquele menino. Sabe que a passagem do Cristiano para o Real tem uma história desenhada na minha casa?

De Manchester?
De Lisboa. Juntei os dois, o Alex e o Cristiano, e ficou ali garantido que o Cristiano só sairia no ano seguinte.

Essa novela é uma página vergonhosa de falta de rigor e profissionalismo de alguma imprensa. Tenho de o dizer com clareza e frontalidade. Provámos com factos, com radiografias e, mesmo assim, uma determinada imprensa – por sinal, muito empenhada também numa certa contestação pessoal – não teve escrúpulos e avançou que o Nani estava envolvido num caso de doping. 

O Mundial-2010 é também o do doping.
Esse é um processo encerrado, por mim e pelo Tribunal Europeu, que me deu a vitória no caso. Ò Rui, o texto da convenção internacional sobre a análise do controlo anti-doping diz que qualquer pessoa é julgada se perturbar a recolha de amostras, isto é, está escrito se ‘disturb the collection of samples‘. Sabe o que diz o texto em português, assinado pela Assembleia da República? Só “disturb“. Habilidosamente, ‘collection of samples‘ não está lá. E esta? Toda a gente percebeu o que tentaram fazer, mas como se sabe e foi provado, eu não perturbei qualquer recolha de amostras.

Sentiu o desamor em Portugal?
Um jornal, não sei se o Record, fez uma sondagem e a larga maioria do país desportivo estava comigo. Achava que havia condições para continuar. Tudo o resto é um enredo e é melhor enterrar o assunto. Só digo isto: foi um filme de piratas e eu apareci vestido de cowboy.

Ao doping, acrescenta-se o Deco.
O comentário do Deco teve mais repercussão lá fora do que cá dentro. É o normal no futebol, um jogador descontente por ter sido substituído. Ele vinha de uma lesão e não estava capaz de jogar os 90 minutos. Na altura própria, optei por tirá-lo. Foi um comentário normal. No treino do dia seguinte, o Deco até me pediu para falar com a equipa, à minha frente. Disse o que tinha a dizer, pediu desculpas pelo sucedido e a equipa continuou unida. O problema nasceu e morreu ali.

Mas o Deco não joga com a Coreia do Norte.
Por opção técnica. Não jogou porque não o achava essencial, era mais importante poupá-lo para o último jogo da fase de grupos, com o Brasil.

E com o Brasil, o Deco joga?
Não, porque depois apareceu lesionado para esse jogo.

Para acabar, o caso Nani?
Essa novela é uma página vergonhosa de falta de rigor e profissionalismo de alguma imprensa. Tenho de o dizer com clareza e frontalidade. Provámos com factos, com radiografias e, mesmo assim, uma determinada imprensa – por sinal, muito empenhada também numa certa contestação pessoal – não teve escrúpulos e avançou que o Nani estava envolvido num caso de doping. É uma página negra, bem negra. Porquê? É vergonhoso terem deixado passar esta mensagem mentirosa, falsa, construída numa leviandade sem explicação. Nós temos um caso de fractura grave, na clavícula esquerda, no último treino aqui, em Massamá.

O Queiroz estava lá, em Massamá?
Estava lá, sim. Foi em Massamá porque o Benfica tinha levantado a relva, o Sporting não sei o quê e o Belenenses tinha-se comprometido com alguém naquele dia. Fomos então para o campo de treinos do Massamá. Era um treino de finalização, o cruzamento saiu, o Nani quis apanhar a bola de bicicleta e caiu mal. A relva não estava macia. Foi o nosso último treino, repito, e o Nani veio connosco para a África do Sul para ser observado pelos médicos da FIFA.

E?
O regulamento só permite uma substituição fora do prazo se o jogador for visto pela FIFA. Até hoje é um caso que deveria ser estudado nas faculdades de jornalismo, um fenómeno incompreensível. Como é que alguns jornalistas puderam pensar que a federação pudesse engendrar um complot internacional para convencer um grupo de médicos da FIFA de várias nacionalidades com uma situação de doping positivo?! O Nani era o jogador mais em forma de todos os atacantes, era o jogador número um do ataque português, só que estava lesionado. Tínhamos de operar a substituição. Falei com o Luís Filipe Vieira e o Ruben Amorim interrompeu as férias para entrar na equipa.

Há o pormenor do Nani chegar a Lisboa e dizer que está bem.
Aquele era o Mundial do Nani, era a grande oportunidade dele na seleção. Só que ele recusa-se a aceitar a lesão e estava tão obcecado em querer jogar que tive de o deixar treinar para o convencermos de que aquela dor era impeditiva. Em condições normais, era tiro e queda: não jogas e está feito. Fiz tudo para que ele jogasse e fosse, mas não dava. Era uma fratura da clavícula.

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