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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Catarina Wallenstein: "Andamos todos de boca tapada, mas queremos e precisamos de dizer tudo"

Em entrevista, a atriz de "Um Animal Amarelo", que encerra o IndieLisboa, e "O Ano da Morte de Ricardo Reis", que chega em Outubro, fala do medo, da mulher que (já) não é e do disco que quer gravar.

Estávamos em 2019 e Catarina Wallenstein dizia ao Observador que andava a pensar muito sobre o medo. E sobre a vontade que não tinha em fazer de menina “bonitinha, amochada e ingénua”. Andava pelo Brasil a realizar, ao lado de Filipe Bragança, o “tragam-me a cabeça de Carmen M”. Pelo meio, também andou, com o mesmo parceiro, a cozinhar o “Animal Amarelo”, uma fábula que redesenha o eixo da colonização, entre Brasil, Portugal e Moçambique, à procura de um tal ideal paradisíaco que ficou noutro tempo mas que pode muito bem meter-nos a todos a discutir essa carga histórica. Não em jeito de rede social. Cara a cara. Mano a mano. Ainda que a Covid-19 vá limitando um pouco essa ambição.

Mais de um ano depois, eis que se dá uma pandemia, um período de confinamento, o respetivo contrário e a atriz aterra no Festival IndieLisboa para mostrar as entranhas obscuras do nosso passado, em jeito surrealista, com o tal “Um Animal Amarelo”. Feitos os 34 anos há poucos dias, Catarina Wallenstein parece feliz da vida. Mas, sobretudo, alguém que já não quer muito pensar no medo, porque quer arriscar mais. Quer falar. Meter o dedo na ferida. Partilhar ideias com criadores, mostrar filmes — ainda vem aí “O Ano da Morte de Ricardo Reis” de João Botelho, a adaptação da obra de José Saramago com estreia marcada para dia 1 de outubro –, debater, refletir e, caso “deixe de engonhar”, lançar um disco, com música gravada no Brasil.

Quer puxar as pessoas para uma discussão sobre o colonialismo, para que a memória não desapareça. E mesmo não tendo muita esperança no mundo, por andar tudo muito zangado, raivoso, tem vontade de batalhar a sua perceção de que andamos todos muito “eurocêntricos”. “Cada vez que volto do Brasil tenho a sensação de que existe uma cultura absolutamente eurocêntrica e que me começa, devagarinho, a fazer comichão. Achamos, de facto, que temos uma cultura superior às outras”.

Nos intervalos, quer-se despir da capa de perfeição que a indústria do cinema e da televisão lhe deu. Mostrar que também pode ser desinteressante. Ou que pode não ter vontade nenhuma para ser seja o que for. Procurar mais o erro, pois é aí que surge a “surpresa e o crescimento”. E dançar, se a deixarem (pelo menos um pouco de “baguncinha”…). No fundo, tirar a máscara. Envelhecer. Aprender. Ser política e deixar que a política entre na sua representação. Resta saber se vai conseguir: é que o mundo anda todo de máscara enfiada, cabisbaixo a olhar para o telemóvel, com pouca vontade de refletir.

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[o trailer de “Um Animal Amarelo”:]

No ano passado a Catarina falou com o Observador e disse que andava a pensar muito na questão do medo. Estamos a viver no meio de uma pandemia, onde o medo convive connosco diretamente. Como é que está essa relação?
É muito engraçado porque pensei muito sobre o medo durante dois ou três anos, mas não tenho pensado agora. Neste tempo de pandemia, claro que tive medo. Mas penso na forma como estamos afastados uns dos outros, no sentido prático e no sentido da conexão mais profunda. Não haver partilha de ideias. É o que tenho pensado mais nestes últimos tempos. Esta ilusão de proximidade, com todas as alternativas que criamos, a comunicação e a partilha de ideias, é perigosa. Estou um bocado irritada com a internet [ri-se].

Mas não tem uma certa distância em relação à internet?
Tenho, mas na verdade essa distância não existe. Faço reuniões no Zoom, estou nas redes sociais a ver o que se passa. Há uma distância que é mais uma embirração do que uma não-utilização. Tento gerir para que não se vire contra mim. Perceber quando é demasiado tóxico, quando as notícias vêm em excesso, quando a mesquinhez me faz mal. Andamos todos de boca tapada, mas queremos e precisamos dizer tudo.

É mais difícil gerir isso porque é atriz?
Fico a desejar ter papéis onde possa escoar ideias e partilhá-las com outros criadores, que estão a pensar sobre coisas que eu não estou a pensar. Vou ser enriquecida por outros pontos de vista. Já estou a pensar é em escrever o próximo filme porque não posso estar só à espera que me chamem. Tenho de ir inventando coisas a partir de mim.

Vai andando, procurando novos projetos…
Voltando ao tema do medo: é difícil sair da zona de conforto e fazer algo que, no meu caso, porque sou ultra perfeccionista, ache que não saiba fazer. Uma das provas de maturidade é deixar-me de merdas nesse sentido. É fazer as coisas independentemente de querer ser muito boa. Tenho de fazer. Está na altura de arriscar.

Mas imagine, tem 33 anos não é?
Fiz 34 agora, já viu?

Certo. A verdade é que este “Um Animal Amarelo” não é previsível, não no sentido de “zona de conforto”. E é um filme que procura destapar o passado colonial, um tema desconfortável, e numa altura em que “racismo” é uma palavra em destaque. O que é que lhe interessou mais neste processo? Um filme destes pode ajudar ao debate?
Sim. Temos essa obrigação, agora que não se estão a promover tantos encontros físicos, fazemos tudo sozinhos dentro do quadradinho. Há uma simplificação do discurso e há uma incapacidade de falar das coisas. O que tenho sentido mais quando tento conversar sobre as feridas e a carga histórica que carregamos às costas, quer venhamos de uma família impecável ou não, é esta ideia de ser bom e de ser mau, de que não é possível trocar uma ideia com uma pessoa que lhe diga que vive num país incrível com muitos defeitos. Devia conseguir falar da minha pátria assim: Portugal é um país com uma cultura e um povo incríveis, podia ser mais rico, mais inteligente, e podia, também, ter tido uma história diferente. Só que não teve. Claro que estas idas sucessivas ao Brasil enriqueceram muito o meu pensamento.

Mas quando volto a sensação é a de que existe uma cultura absolutamente eurocêntrica e que me começa, devagarinho, a fazer comichão. Não porque os portugueses tenham dificuldade em falar do seu país. Talvez fiquem até aliviados por lhes dizerem “não se preocupem, somos nós e o resto da Europa”. Somos muito eurocêntricos, achamos, de facto, que temos uma cultura superior às outras. Pensávamos que estávamos aqui a produzir pensamento no século das luzes e que as outras pessoas nos outros continentes andavam a viver de forma selvagem. Está-nos incutido culturalmente ao longo de séculos. Portanto, vindo do macro para o específico, falando da nossa história, Portugal deu o tom sobre como se deveria lidar com África a todos os outros países europeus. Há aqui um assunto que tem de ser discutido. Quantas e quantas famílias não conseguiram e não conseguem falar da guerra colonial dentro das suas casas?

"As pessoas estão assustadas, com pressa, mas não podem ir a lado nenhum. Estamos a conversar pouco, a acreditar em tudo o que nos dizem. Ter um filme que faz muitas perguntas, mas que não dá respostas, e que dá espaço para refletir e não para ter resoluções, é essencial."

E quer trazer isso para o seu trabalho?
Não tenho outra hipótese, quando me apercebo que tenho a responsabilidade de ir falando. Achava que Portugal não era um país muito racista. É tão mais racista quanto mais penso nisso. Estamos sempre numa lógica de competição, atiçada das formas mais básicas, através do futebol, da bandeira, de 30 anos de ditadura e de uma exaltação permanente da “pátria”. Como se fosse traição olhar para a história tal como ela se passou. Depois, há muito a discussão de que não se pode olhar para a história com os olhos de hoje. Temos de ser capazes de falar sobre a carga e o nosso papel no desenvolvimento da humanidade.

Como é que o Brasil a ajudou a entender tudo isto desta forma?
O Brasil é extremamente marcado pela lógica do colonizado. Da submissão e de uma cópia da Europa. Dos ricos. Vê-se a herança em pequenas coisas, até na construção das coisas. Classe média que tem quarto e serviço de empregados. A ideia de que haverá sempre alguém a trabalhar para ti. É um país construído com a estrutura toda a funcionar por causa da escravatura. E nós temos um papel nisso. Muitas vezes os brasileiros, que são muito agressivos a falar das coisas, perguntam de onde é que sou, e, se digo que sou portuguesa, respondem-me: “aaah, colonizadora..”. Não me importo. Sim, país colonizador, pronto.

Inicia esse diálogo com os outros assim.
Claro. Temos de conseguir falar sem ficarmos ofendidos. Se uma brasileira me disser isso, não me sinto diretamente afetada. Eu, como portuguesa, tenho a responsabilidade de pensar nisso. E temos que transportar isso nas nossas cabeças, com consciência e pensamento, caso contrário estamos só a transportar o que não seremos. Nos tempos que correm é muito perigoso não nos questionarmos de onde vimos e para onde vamos.

“Um Animal Amarelo” deambula entre o Brasil, Moçambique e Portugal, sobre esse passado colonial. Acha que os portugueses vão estar recetivos?
Este filme não reflete só a história de um brasileiro. Também o é, mas passando-se na Beira, no Rio de Janeiro e em Lisboa, é sobre o eixo da colonização. Tem toda uma parte passada cá, que dá muito bem para irmos buscar metáforas, para refletirmos sobre a nossa história. A minha personagem (Susana) personifica a velha Europa, das trocas comerciais, e onde não se fala das coisas “sem nostalgias e sem memória”, porque assim é que mantemos a boa saúde. Isto é Portugal. É a Europa.

Uma valente provocação, diga-se.
Isso é o que é incrível em trabalhar com o Filipe Bragança. Poder contar uma história, com tantas camadas, em formato de poesia e fábula, numa altura em que o mundo está tão literal.

Está pouco poético?
Sim. O sentido de humor caiu em desuso. As pessoas estão assustadas, com pressa, mas não podem ir a lado nenhum. Estamos a conversar pouco, a acreditar em tudo o que nos dizem. Ter um filme que faz muitas perguntas, mas que não dá respostas, e que dá espaço, dentro de uma fábula, para ir buscar aquilo que nos fala, para nos ajudar a criar as nossas imagens, para refletir e não para ter resoluções, é essencial.

"O que quero? Saber melhor o que não quero. Quero que o tempo passe e me traga sabedoria, pessoas inteligentes e abraços"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Seria estranho que, ao ver o filme, as pessoas não sentissem nada, presumo…
Sim. Há pessoas que estão mais prontas para falar do que outras. É um caminho que tem de ser feito. Os artistas têm o seu papel no tempo contemporâneo.

Este filme chega numa altura em que se discute, mais uma vez, se Portugal é ou não racista. Manifestações anti-racistas, manifestações que negam que sejamos assim. O cinema pode ter que papel neste conflito de identidade?
Todas as artes vão dar-nos pontos de vista. Vão-nos desdobrar possibilidades de ângulos para olharmos para as coisas. Os artistas não têm a obrigação de dar respostas, mas têm a obrigação de se questionarem e de fazerem muitas perguntas. O cinema tem a força das imagens e estamos numa sociedade absolutamente gerida pela imagens. Mas também estamos numa época em que a uniformização do tipo de coisas que são aceites e que as pessoas vão vendo passa um bocadinho pela ideia do que está certo e do que está errado. Está tudo muito simplificado.

Não se reflete sobre as áreas cinzentas, então.
Exatamente. A dimensão trágica das coisas. Não é só o herói que faz bem, ou alguém que teve um percurso muito difícil. É tudo um bocadinho mais falhado do que isso. Mais trágico.

Interessa-lhe mais explorar esses caminhos.
Sim. É nesse sítio do erro que se dão as trocas, as surpresas e o crescimento. Como atriz também penso nisso. Estamos sempre a demonstrar-nos felizes, solares, inteligente, bonitos, sempre disponíveis.

A tal “ditadura da felicidade”.
É. Se calhar às vezes sou desinteressante, ou não estou com vontade nenhuma. Tenho muita falta de jeito, sinto-me meio alien quando chego aos sítios e não me sei exprimir. Também tenho esse lado. Claro que exercitamos o outro.

Mas quer que o público conheça também esse lado?
Sim. Sobretudo que me possa despejar o mais possível, dando acesso às pessoas. A exposição desde muito nova, com um lado mais perfeccionista, foi-me pondo umas capas de exigência que não me tornam mais rica, interessante ou acessível. Quero falhar mais em frente a toda a gente.

Vai procurar mais a falha, projetos experimentais…
Não é só isso. Por exemplo, estar num átrio, à entrada de um cinema ou num hall. Desmontar o máximo possível a persona.

"Senhor primeiro-ministro, não acha que a democracia precisa dos artistas? Precisamos de pôr esta maquininha a trabalhar. Se não, daqui a 4 ou 5 anos quem é que vai estar a comentar o tempo presente? Vamos estar só a trabalhar para plataformas?"

Que a Catarina foi construído.
O que é natural, ao entrar no mercado de trabalho muito rápido, com muita exposição, dizem como se faz e é assim que é feito. A certa altura é preciso voltar a ser humana, nas relações com as pessoas, nos projetos. Há sempre reciclagens de carácter e de disponibilidade a fazer.

Estamos a assistir a uma certa metamorfose sua?
É um passar natural do tempo. Não tenho medo nenhum do tempo a passar, gosto de ficar mais velha. Estou a gostar.

O que é que isso significa?
Não me sinto velha, atenção. Só me sinto melhor. Mais tranquila, menos ansiosa. Sei mais o que quero.

E o que é que quer?
Saber melhor o que não quero [ri-se]. Quero que o tempo passe e me traga sabedoria, pessoas inteligentes e abraços.

Falando do Indielisboa. Quando chegámos, sentia-se muito feliz por este regresso ao cinema. No entanto, sabemos bem que vivemos um período extremamente difícil para o setor. Continua esta relação eterna e amarga entre os agentes culturais e o Ministério da Cultura. Tem refletido sobre isso?
Há algo que não entendo: o nosso primeiro-ministro fez toda uma campanha muito voltada para os artistas e para quem apoiava e neste momento não percebe que somos um altifalante de uma época, em que é preciso falar. A democracia precisa dos artistas. Não percebo que projeto político é este, em que se está a enfraquecer cada vez mais quem precisa de ter voz.

Senhor primeiro-ministro, não acha que a democracia precisa dos artistas? Precisamos de pôr esta maquininha a trabalhar. Se não, daqui a 4 ou 5 anos quem é que vai estar a comentar o tempo presente? Vamos estar só a trabalhar para plataformas? O dinheiro vai ser canalizado para aí e para as grandes empresas ou produtoras grandes, que têm uma curadoria , que vão decidir o que se vê e o que se produz. A produção independente vai derreter? Porque se derrete, derrete a diversidade, a pluralidade do pensamento. E grande parte da liberdade de pensamento da sociedade contemporânea portuguesa. Portanto, não percebo o projeto. Falo de democracia, não é uma questão de direita ou de esquerda. E a democracia precisa dos artistas e dos jornalistas, que são as áreas de resistência quando os regimes opressivos carregam em cima das pessoas. São essas as duas forças, quando se olha para a história. É o que se estuda, para ler ou para escutar, é o que fica como testemunho e memória para que não se repitam os erros.

Estamos, portanto, a chegar ao limite.
Acho que este sistema está a falhar. Estamos numa crise de valores brutal. As pessoas não têm ambição nenhuma em aprender e saber mais. Há muito acesso ao conhecimento, mas somos facilmente manipulados na era das fake news. Queremos as soluções para amanhã. O que nos vendem são receitas fáceis que resolvem o problema em um ou dois anos. Não é que sejamos burros, mas o que queremos, dão-nos em fatias muito pequeninas. Tudo isto nos vai afastando da questão da memória. De repente, já não queremos saber quem somos, porque é que isso não é fundamental para todos nós? E quantas pessoas somos. Sou esta pessoa e todas as outras que não sei. Sendo portuguesa, sendo mulher…

[o trailer de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”:]

Se por cá está difícil para a cultura, pior estará no Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro condiciona todo o setor.
O Bolsonaro não gosta do Brasil, para ele não é um Brasil que deu certo. Da pluralidade, da rua, da liberdade, não lhe interessa. Quer um país neoliberal e da produção. Cheio de brancos a produzir imenso.

Mas é engraçado, porque neste momento de maior fricção entre um governo e a sua cultura, saem filmes como “Bacurau”, que foi um sucesso lá. Que espeta a agulha nas feridas do Brasil, assim de forma fantasiada, mas provocatória. Ou seja, quanto mais se tira o tapete à cultura, mais ela responde.
É quando as pessoas se dão conta. A arte no Brasil é muito mais engajada. Aqui em Portugal sinto que desde que o Bolsonaro foi eleito, falou-se muito mais de política. É para entendermos o poder que aquele país tem no mundo: económico, inspiracional como cultura e como força de povo. Acordou-nos para falar de política, depois do Brexit e do Trump. Os brasileiros são mais engajados, posicionam-se, são mais desbocados. Eles têm uma expressão e uma cultura muito ligada às pessoas, ou seja, claro que, por exemplo, no teatro, vemos muito mais o comentário, a crónica ou a crítica do momento presente. É muito incrível. Reparamos agora porque se vive uma crise brutal. A arte no Brasil é sempre um comentário político, com uma capacidade grande de autodeboche.

Nós não temos nada. Uma das coisas de que mais gosto, e que descobri há pouco tempo, é de saber que há pessoas que gozam comigo. Adoro que gozem comigo, porque, de repente, estou a rir-me de mim. Não nos levarmos demasiado a sério, é um exercício para mim. Os brasileiros têm isso. Não precisam de se achar um máximo, por isso é que são. Riem-se do seu falhanço.

O nosso fado…
A Europa! Voltamos ao eurocêntrico. Não é exclusivo do português. Até temos uma ginga do sul porreira, não fosse o peso da igreja católica que dos dá essa coisa da culpa. A Europa leva-se muito a sério. Temos os filósofos! Os livros! Os pintores! Mandamos construir Notre Dame! Depois mete-se aqui a Inquisição, pessoas com fome, sem escola, sem poderem falar. Temos a herança disto tudo. Da culpa, da vergonha, de não podermos falar senão alguém vai falar de nós.

Uma outra questão: e com os mais velhos, como se faz? Como se explica? Viveram outro tempo, sentiram de outra forma…
Como se explica isto? Espero que os mais velhos saibam que temos estas heranças todas. Preocupa-me é os mais novos [ri-se].

Expliquei-me mal. Se falarmos com alguém ligado à guerra colonial, talvez não seja fácil ter este diálogo que estamos aqui a ter agora. Como se resolve?
Não, não é fácil. Não se resolve. É pensar no futuro. As gerações vão-se renovando. O conservadorismo de pensamento não é só das ideias, mas também o conservar o património em certo sítio e em certa família. Está altamente ligado à economia. O não querer que o património saia da família, por isso vamos casar uns com os outros e pensar de forma igual. Fica ali numa panelinha. Somos um país de herdeiros, conseguimos manter essas panelinhas com muita eficácia. Utopicamente, se mudássemos a cabeça dos ricos, mudávamos muita coisa. Mas duvido.

Resta-nos a nossa juventude. Temos de ir devagarinho. Não se pode deixar morrer a história, tem de se saber o que aconteceu. Aí temos a fotografia, a pintura, os debates, o cinema, os jornalistas, as tias-avós a contar histórias, os encontros numa sala de teatro. É como ter uma tia mais velha incrível a contar uma história e gravá-la antes que desapareça. Isto acontece com a história dos países. Em conversa com historiadores que voltaram a pensar no tempo da I República, porque a minha família, do lado da minha mãe, está ligada a esse período, ou seja, o Afonso Costa é meu trisavô, disseram-me: durante o regime de Salazar, não se quis contar a história dessa República. Branqueou-se. O que aprendemos na escola é: foi uma grande confusão, matavam-se uns aos outros, mandaram Portugal para a guerra e pronto. É o que sabemos.

"Estamos cheios de raiva porquê? Porque é que não estamos com raiva das coisas que têm de ser mudadas? As pessoas estão más, mas não há força para mudar. É qualquer coisa como: estou com raiva. O que é que fazes com isso? Pouco."

Do que me lembro, sim.
Mas sei que fez a separação da Igreja do Estado, a lei da adoção, das crianças e mais outras coisas. É uma época que não nos vai ser ensinada. A tal história da tia velha. Se não é gravada, se não é mostrada aos sobrinhos, desaparece.

Entendo essa preocupação com a falta de pensarmos o mundo em conjunto. Só não sou tão otimista…
Eu também não. Sou um bocado solar, mas estou pouco otimista.

Parece-me que este diálogo que estamos aqui a ter vai ser cada vez menos recorrente. Vivemos em bolhas.
Sim. Do que depender de mim, vou chatear toda a gente. Talvez me digam que sou muito chata e que falo da mesma coisa [ri-se]. Mas neste momento é o que me preocupa. Não me vou sentar a falar de generalidades. Não tenho paciência. Falar de séries não é? Todos a ver a mesma coisa na mesma plataforma…

Parece-lhe que as pessoas estão com vontade de voltar ao cinema?
Fiquei muito comovida ao este festival de uma forma mais comovente. Estava muito sequiosa de sair de casa, de parar de ver coisas em telas pequeninas, de ter uma curadoria tão diversificada. Ver colegas e amigos. Está tudo muito emotivo.

Está quase como uma criança.
É. De ver tantas pessoas…

As pessoas reagem bem quando veem a Catarina Wallenstein a agir normalmente?
Não há nada. Em princípio só não me encontram no meio da rua a beber copos, porque não há sítios. As pessoas sempre me viram terra a terra. Tento o mais possível.

Só não se pode é dançar, como falávamos antes da entrevista.
Estávamos a falar do quanto o mundo não está poético, já não se pode dançar! Mas sim, estou pouco otimista. Adorava ter esperança de que as coisas vão melhorar.

Para o cinema?
Estava mais a falar na reeleição do Trump. O mundo ficava muito melhor se ele não vencesse outra vez. Mas estamos todos uns pequenos robôs. As pessoas estão mesmo zangadas. E vivemos 20 ou 30 anos de paz. A nossa geração não vem de um momento de vida horrível. Estamos cheios de raiva porquê? Porque é que não estamos com raiva das coisas que têm de ser mudadas? As pessoas estão más, mas não há força para mudar. É qualquer coisa como: estou com raiva. O que é que fazes com isso? Pouco.

E a classe artística?
Acho que há artes mais vivas do que outras. Umas que têm mais vontade do que outras. O teatro está mais acordado do que o cinema, por exemplo.

"Estamos sempre numa lógica de competição, através do futebol, da bandeira, de 30 anos de ditadura e de uma exaltação da 'pátria'. Como se fosse traição olhar para a história tal como ela se passou"

Faz-me pensar na questão do espectáculo “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, de Tiago Rodrigues. As pessoas estão raivosas só com o título.
Eu só com o título queria ser a protagonista! É o que quero fazer. As pessoas em vez de estarem irritadas porque o patrão não lhes paga o suficiente ou porque não há direitos laborais, ou porque vivem num sítio onde as rendas são inatingíveis, estão chateadas com uma peça que tem aquele título. Não percebo. Nós trabalhamos infinitamente para outras pessoas e não damos conta. Preciso de fazer teatro. Quero muito.

Já há alguma coisa em vista?
Não. Agora estou a mostrar filmes. Primeiro o “Um Animal Amarelo”, a seguir vai estrear o “Ano da Morte de Ricardo Reis” [de João Botelho], que é justamente na época da subida dos fascismos, Franco em Espanha, o início de Salazar por cá. Curiosamente, filmes que dialogam um com o outro. Com linguagens completamente diferentes, mas são duas formas de fazer um comentário sobre a nossa história.

Mas quer ser uma voz ativa, uma espécie de embaixadora de tudo isto que estamos aqui a falar?
Acho que não. Gosto como estou. Este ano andamos todos de boca tapada e eu quero falar de outras coisas. Se tivesse feito filmes agora que não suscitassem esta conversa, como “boy meets girl” e depois atravessam a ponte, dão beijinhos, zangam-se… OK, pode-se falar, é bonito, mas não aconteceu. Neste caso não, estes filmes permitem trocar ideias.

Mas se for preciso, volta para esses papéis?
Preferia que não. Preferia trabalhar com criadores que estivessem a questionar o seu lugar. Não precisa de ser político. Podemos ser políticos sem sermos literais. A nossa atitude uns com os outros é política. Não é preciso ser militante ou partidário. Há uma ética em tudo. Gosto de não planear e decidir tudo. Depois não sei quem vai trabalhar comigo. Até lá vou inventando umas coisas.

E realizar um filme em nome próprio?
O ano passado estreámos aqui o “Tragam-me a cabeça da Carmen M.”, que co-realizei e co-escrevi com o Filipe Bragança. Mas não estou a pensar nisso. Gosto mesmo de trabalhar em equipa. Do lado de comunidade, sinto-me melhor com outros. Nem sei se tenho vontade, tenho ideias. Gosto deste cadáver esquisito de um começar, depois outro escreve. Um braço de ferro. Assim sozinha… também posso dizer coisas assim. E como gosto muito de representar, uma das coisas que consigo, trabalhando em parceria, é saltar para o outro lado e nessa altura ser só atriz. Dá para fazer um pouco de tudo.

Mas e recusar algum papel? Estabelecer os seus limites, mostrar o que não aceita ou o que não quer explorar?
Não sei, agora não tenho nada para dizer se aceito ou não. Estou a mostrar trabalho e a ver se alguém fica curioso para trabalhar comigo. Estou completamente no vazio, sem saber bem o que vai acontecer no mercado de trabalho aqui. Quem avança, quem não avança.

Agora está por cá?
Sim. Gostava muito de ir ao Brasil, mas está complicado ainda. Está uma série em pós-produção, que espero que saia, justamente sobre a memória. E o papel do cinema na conservação da memória. A única maneira de viajar e enriquecer agora é na troca com as pessoas.

Mudando o chip à conversa. Li que gosta muito de festivais. Essa ausência fez-lhe muita falta durante a quarentena?
Não me afetou nada, mas já estou a decidir onde vou para o ano [ri-se].  Quero ir a todos. Quero ir a Paredes de Coura, às festas tradicionais, ver o regresso das pessoas às ruas. Ocupar o chão das nossas culturas. Não é só o festival de música.

Pois, agora, agora só poderia ir ao Avante.
[faz uma pausa]… já não consigo falar sobre isso. Acho um absurdo, as pessoas estão todas a enlouquecer. E com muito pouco para fazer.

"Estava com medo pelas pessoas mais velhas, que amo. E do que nos vai fazer enquanto sociedade. E o desenvolvimento dos miúdos, os que não foram para a cama com ninguém pela primeira vez no verão? Os que não dançaram, que não viram os amigos? O que é que isso faz no desenvolvimento do ser humano?"

Muito bem. Então demos a volta e regressemos aos dias de confinamento. Como os viveu?
Estive a gostar de estar em casa. A cozinhar coisas que não cozinhava, a habitar o espaço de outra forma. O lado social passou muito pela família. Estou a gostar imenso disso. E também tenho de me estimular para encontrar outras pessoas, porque, de repente, sinto-me muito sozinha. Mas vesti essa malhinha caseira e andei pelo meu nicho. Mas não chega. Não é vida. Temos de ir voltando e deixar-nos surpreender. Só que, por exemplo, fiz anos agora, não quis ver muita gente. Pensei que não conseguiria falar com todos.

Está-se a ambientar ao “novo normal”.
Sim. Escalonei as visitas dos amigos. Não fiz festa. Vi dois amigos de cada vez, entre as cinco da tarde e as cinco da manhã. Consegui matar saudades. Agora precisava de uma baguncinha aí…

O vírus não lhe deu para grandes introspeções?
Deu-me para imensas! Não notei o medo, mas o meu maxilar travou e não conseguia abrir a boca. Dizia que estava ótima, mas não abria. Não devia estar muito ótima. O medo do contágio também não tive. Fiz recolha de donativos para centros de acolhimento e fiz turnos em centros de sem abrigo. Poucos, por causa da minha mãe. Só que percebi que não ia conseguir ficar fechada em casa. Estava tudo a ter um papel, os médicos, o governo, a Proteção Civil e eu fechada em casa. Não podia. Estava a enlouquecer. Estava com medo pelas pessoas mais velhas, que amo. E do que nos vai fazer enquanto sociedade. O desenvolvimento dos miúdos.

Agora vão para a escola.
Sim, mas e os miúdos que não foram para a cama com ninguém pela primeira vez no verão? Os que não dançaram, que não viram os amigos? O que é que isso faz no desenvolvimento do ser humano? Deste hábito de estar muito tempo com os pais e deixar de estar. É tudo uma grande maluquice. Já não nos tocávamos. Sinto que o Brasil me devolve o corpo quando lá vou. De me habitar e de me exprimir. Aqui nós já temos esta coisa europeia, não há muito chão ou sexualidade. Estamos assépticos.

Aproveitou para explorar mais esse interesse pela psicologia?
Estou sempre a ler muita coisa sobre isso. Confesso que gostava de estar a ler mais. A teoria. Só que pesquiso muito, leio exaustivamente o artigo sobre o artigo, o comentário do comentário.  Sou um bocado cientista. Apanho as teses. Estou na internet imenso tempo.

Lê as teses?
Vou buscar, sim. No outro dia estava a ler padrões de sonos dos bebés. Não tenho filhos nem estou a pensar ter. Pronto, isto interessa-me. O meu irmão e a minha mãe é que me estão sempre a dizer para voltar a estudar. Que sou cientista.

"Esta ideia de que os atores não são autores é uma estupidez, sou co-autora das cenas onde estou"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Pode acontecer.
Pode, pode mesmo. Não sei se será um curso. É uma ótima ideia. Quero é fazer o meu disco.

Que disco é esse?
Tenho de parar de engonhar.

Mas que engonhanço é esse?
Traduz-se em infantilidade, medo de não ser perfeito. Tenho de fazer rápido, não quero saber como vai cair.

Que género?
Vou gravar no Brasil.

Tem praticado?
Sim. O que tenho cantando mais é a brincar um pouco com os amigos da Roda de Samba de Lisboa. Vão ter concerto no domingo. Samba na era Covid. Vai ser curioso. Não sei se me vão deixar dançar, mas vou ao Coliseu ouvir sambas.

Que lugar é que cantar ocupa na sua vida?
Um lugar grande. Uma das coisas que me fez bem no confinamento foi voltar a ter aulas de canto. Fico com menos ansiedade. A expelir o ar com notas musicais em vez de ser com palavras. Há quem vá correr, para mim é a vibração da voz e do corpo, a maneira como se gera, como se liga aos sentimentos sem pensamento. É algo mais orgânico. Fisicamente faz-me bem. A minha mãe, além de ser inacreditável, é muito pedagoga, perguntou-me se não queria ter aulas de canto.

É difícil ser ensinada pela mãe?
Muito difícil, mas trabalhamos bem. Desde os 15 anos que tenho essa experiência. Há um desmimalhar, foi difícil de gerir. Agora é diferente. Mas trago essa carga de treino. Trabalhar com uma distância onde se arriscas e se aceita aquilo que o professor propõe, sem resistência.

Mais uma vez a trabalhar em parceria.
Tive muitas professoras, mas, e não é mesmo por ser minha mãe, é a melhor de todas. Mesmo.

Fala com o seu irmão [Tomás Wallenstein, vocalista dos Capitão Fausto] sobre o canto?
Procuro, mas é muito necessário que façamos os nossos caminhos em separado. Lembro-me que na altura em que ele começou, eu estava a trabalhar muito e ele queria fazer o caminho dele, bem destacado do da irmã. Foi boa ideia. Entretanto, não temos feito colaborações. Quero fazer este disco sozinha, mas não sou compositora. Trabalhamos os dois bem juntos, só que não falei com ele ainda. Porque tenho de me debruçar primeiro comigo, antes de o chamar. Mas falamos sobre tudo. Somos muito próximos.

"Há muito por fazer no combate à desigualdade em todos os âmbitos. Não estou certa que estejamos a fazer da melhor maneira. Mas acho os movimentos necessários e as reivindicações também. Não estou certa deste modelo de ativismo, mas também não posso dizer que não se pode fazer."

Para terminar, tenho um desafio. Apanhei um raro momento em que a escritora Elena Ferrante falou em público, neste caso penso que terá sido mais para o mundo da literatura, e não tanto aos jornalistas. Diz ela que escrever “é rodar a faca na ferida”. E o cinema, o que faz?
Li isso também. De facto, tenho assistido muito aos processos de escrita do Filipe Bragança, onde há uma proximidade com o ator, do sítio onde nos conectamos para falar das coisas. Nós, atores, procuramos a verdade, ou o sítio mais desconfortável para encontrar uma emoção ou uma ideia, fazer existir aquela pessoa. Não escrevo naturalmente, é outra cobardia. Cada personagem tem as suas tramas, maneira de falar, uma voz. Um escritor liga-se também intimamente ao que conta. Quanto mais violenta for a história, mais estamos a rodar a faca, porque estamos a viver tudo. Esta ideia de que os atores não são autores é uma estupidez, sou co-autora das cenas onde estou. A ideia das musas que estavam pousadas num cantinho e vinha um génio que as filmava, não é? Elas estavam ali a fazer com eles. E isso ainda existe. Falar disto é perceber que a ideia da musa é altamente ofensiva para um artista. Já falamos das mulheres que foram caladas, de que os homens assinaram as suas obras. De repente, as mulheres começam a ter um grande papel e passam a ser musas. Não. São artistas fazedoras daquela realidade.

Como é que vê este passar para a frente da mulher, do seu papel, do que foi sendo revelado e de movimentos como o #metoo?
Há muito por fazer no combate à desigualdade em todos os âmbitos. Não estou certa que estejamos a fazer da melhor maneira. Mas acho os movimentos necessários e as reivindicações também. Não estou certa deste modelo de ativismo, mas também não posso dizer que não se pode fazer.

Até porque se inclui nele.
Sim, mas irrita-me a forma internética. Meter tudo num slogan. Estamos a fazer todos os ativismos ao mesmo tempo. Como é que isso chega à cabeça das pessoas que não querem, de facto, ativar? Será que estes gritos raivosos ajudam? É assim? A falar das coisas, claro, não deixar calar nem deixar que sejamos pisados nunca, nunca mais.

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