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Catarina Wallenstein: "Não me apetece fazer de mulher amochada, ingénua, bonitinha. Estamos em 2019"

Tem 32 anos. Já fez teatro, cinema, televisão e concertos. Realizou o primeiro filme, há-de gravar um disco. Entrevista à atriz de "Selvagens", que decidiu há muito que "não ia ser medida por likes".

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Nem a fotografia principal que ilustra este texto nem a transcrição de uma conversa com Catarina Wallenstein a decifram na totalidade. Não se explica textualmente como diz tantas frases de sorriso aberto, como pontua tantos finais de frases e respostas com o riso, às vezes forte, outras vezes curto, como sorri depois de dizer uma frase como “às vezes temos medo” ou a determinação e convicção quase torrencial com que se expressa quando aquilo de que fala lhe causa frustração e indignação: por exemplo, o investimento do Estado na cultura, que considera parco, ou o estereótipo a que gente como ela ainda é associada por uma parte da população — “pessoas que trabalham pouco, ‘artistas’, marginais, malucos, excêntricos”.

Catarina Wallenstein tem 32 anos e um percurso nas artes que começou com aulas de canto e cimentou-se com a entrada num ateliê de teatro ainda adolescente. Na altura queria ser cantora de ópera, mas da adolescência aos atuais 32 anos fez muita coisa: começou a trabalhar em televisão e teatro como atriz, foi estudar para Paris, voltou a Portugal para fazer um filme de Manoel de Oliveira (“Singularidades de uma Rapariga Loura”), fez peças de teatro (algumas das quais com a companhia Artistas Unidos, de Jorge Silva Melo), trabalhou com realizadores como João Botelho e Sérgio Tréfaut e pensa agora em produzir e realizar filmes, acentuando uma faceta de criadora e autora (sobre a qual brevemente haverá novidades) sem perder a de intérprete.

Talvez o percurso tivesse sido diferente se Catarina Wallenstein não tivesse posto em prática alguns conselhos que ouviu da mãe com 16 anos, que lhe deram “um poder enorme: o da página em branco, o de poder fazer em palco o que quisesse”. Talvez. Ou talvez aquelas lições de vida que ouviu (que somos todos feitos de incongruências, que somos mais complexos do que simples) lhe chegassem de outro modo. Intérprete, há muito cativada com a ideia de “estar a ser dirigida e tentar perceber como é a cabeça do outro”, de ser “um instrumento do sonho de outro pessoa” (seja ela realizador, escritor de canções ou encenador de teatro), diz que está numa fase “nómada” de “andar rápido”, de fazer muitas coisas o mais diferentes possível. Se tudo correr como se espera, ainda vai realizar vários filmes, ser atriz em muitos outros, porventura até encenar alguma peça, gravar um disco ainda não sabe bem de quê (tanto pode ser de fado como de pop-rock ou outra coisa qualquer). E tanto mais, mesmo que hoje continue a “fazer castings como toda a gente”, a “levar ‘nãos’ como toda a gente”, a “cair ao chão, levantar-se e aprender — como toda a gente”.

“Selvagens” é o seu filme mais recente. Rodado em Portugal “com uma equipa microscópica”, falado em francês, realizado por um norte-americano que vive em França há muitos anos, exibido no último Lisbon & Estoril Film Festival e possível de ser visto em sala em Lisboa (no cinema Monumental) é “um filme de guerrilha”, em que redescobriu “uma selvajaria ou liberdade muito jovem, onde já não estava há algum tempo”. E logo a seguir acrescenta, a propósito dessa arte de interpretar uma personagem desalinhada e imprevisível: “Muitas vezes até me defendo e sou insegura, mas ultimamente tenho pensado muito sobre o medo. Não me interessa ter medo, é aquilo que não podemos mesmo ter, é a origem de tudo o que é mau”. Nem sempre é fácil, mas talvez seja também para isso que cá estamos. Só não lhe peçam para representar mais personagens femininas “amouchadas, ingénuas, bonitinhas”. Afinal, “estamos em 2019” e a Catarina Wallenstein apetece-lhe “andar rápido”, não andar para trás.

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[o trailer de “Selvagens”:]

“Há um estigma sobre o cinema português”

É uma das protagonistas do “Selvagens”, que chega agora às salas de cinema. Foi fácil convenceram-na a fazer o papel e entrar no filme?
Foi bastante fácil por causa do teor meio selvagem do filme, ser um filme mais de guerrilha, por assim dizer. Foi feito com uma equipa microscópica. Fiquei logo muito interessada, por ser um papel grande num filme feito por meia dúzia de pessoas que lutam para continuar a fazer cinema, apesar de hoje em dia ser complicado fazê-lo. Apeteceu-me logo entrar nesta aventura. Já estava há alguns anos com alguma vontade de representar em francês porque sempre pensei que pudesse trabalhar um pouco no mercado francês.

É um mercado de maior dimensão, onde se fazem mais filmes…
Sim. E é um país que percebeu que a cultura é parte da sua riqueza. Isso é uma coisa que cá ainda estamos a perceber devagarinho. Sinto que agora há talvez um pequeno aumento da curiosidade dos portugueses pelo produto nacional. Nesta coisa da globalização, habituámo-nos muito a consumir o que vem de fora, a acharmos que o que vem de fora tem selo de qualidade garantida. É absolutamente mentira. Nem sequer havia curiosidade de saber o que é que andava a ser feito cá e por isso [o cinema português] ficou um pouco conotado com uma coisa mais hermética e inacessível. Mas não é sempre o caso. Quanto mais se produz, mais variedade existe. Tem de se continuar a produzir para se produzir mais e melhor. É preciso manter o investimento e a resistência na produção e é preciso incentivar as pessoas a fazerem filmes e a verem as coisas que se fazem cá. Não só filmes, também música, espetáculos. Este filme foi inteiramente filmado aqui, apesar de ter uma atriz francesa e de ser um realizador [norte-americano] que vive em Paris há muitos anos.

O facto de não haver mais público em sala nos filmes portugueses deve-se a quê? Aos próprios filmes, a uma perceção errada sobre o cinema português, a falhas na explicação e promoção dos filmes?
Acho que se deve a uma forma errada como o público vê o cinema português. Lembro-me de ter tido uma conversa com um amigo há muito pouco tempo sobre isso. Vi alguns filmes em casa recentemente porque fui jurada de um prémio, ele é meu vizinho e apareceu, acabou por ver dois ou três filmes. Ficou agradavelmente surpreendido. Não é um cinéfilo, muito menos faz parte do meio, por isso até foi giro ver a reação de uma pessoa que consome muito audiovisual nas plataformas digitais e vai ao cinema ver os grandes filmes estrangeiros. Ficou surpreendido por se fazerem aqui coisas como as que se fazem.

Acho que há um estigma que também não ajuda a captar dinheiros para se fazer mais. Estamos neste momento a tentar uma alteração da lei do audiovisual e a resistir contra todos os erros na atribuição de subsídios, no teatro e no cinema. Quem quer produzir, quem tem ideias e até diz “vamos fazer um filme muito pequenino com muito pouco dinheiro”, tem dificuldades porque não há garantias de bilheteira. Hoje é complicado havê-las também por causa das plataformas digitais: neste momento os cinemas não estão cheios, não é só uma questão do cinema português. Mas existindo esse estigma, as pessoas ficam pouco curiosas sobre o que se anda a fazer.

"Há uma coisa que nos acontece muito: passamos uma data de meses sem nada e depois quando as coisas aparecem, aparecem todas de uma vez. "

Como é que escolhe em que filmes participa? Quando está em dúvida, o que pesa mais: a personagem, o realizador, a equipa de produção, os outros atores?
Tenho tido muita sorte porque muitas coisas acabam por ser escolhas naturais. Há coisas que às vezes quero fazer e não posso: ou não sou escolhida, não fico num casting ou não tenho agendas e é impossível. Há uma coisa que nos acontece muito: passamos uma data de meses sem nada e depois quando as coisas aparecem, aparecem todas de uma vez. Aí há uma seleção natural, seja de manter a palavra com uma pessoa com quem já assumimos um compromisso…

Às vezes custa, não?
Custa, às vezes custa! Mas para mim é uma questão de espinha dorsal: tento honrar esses compromissos mesmo que às vezes custe muito. Em geral escolher não tem sido uma coisa assim tão complicada: tenho vontade de fazer cinema, tenho vontade de fazer cinema de autor e não surgem assim tantas oportunidades. Houve uma data de anos em que houve um monte de filmes com histórias de homens, de guerra, essas coisas. Acabei por estar parada no cinema algum tempo. Curiosamente foi a altura em que também estive mais tempo com os Artistas Unidos [companhia teatral] a fazer teatro. Aí tive a sorte de experimentar papéis grandes, de fazer digressões. E isso incompatibiliza procura de trabalhos noutras coisas porque são períodos de trabalho mais extensos. Portanto tem sido uma coisa bastante orgânica, não tem sido um grande sofrimento.

Ainda relativamente a este novo filme: há sempre pessoas que não se conhece quando se entra num filme novo, com quem se vai trabalhar pela primeira vez. Neste caso, houve alguma pessoa envolvida no filme que a tenha deixado especialmente impressionada ou surpreendida?
Fiquei agradavelmente surpreendida com toda a gente. Éramos uma equipa de oito pessoas a fazer tudo. Fiquei surpreendida com a energia e a juventude do Dennis [Berry, o realizador], a dirigir e a embarcar connosco em dias loucos, com uma energia inesgotável. Fiquei surpreendida com a Nadia [Tereszkiewicz, que contracena com Catarina Wallenstein], dado que era a primeira longa-metragem que ela estava a fazer e agora está a fazer um monte de coisas, estou muito feliz por ela. Lembrei-me logo de quando fiz a primeira longa-metragem, da vontade que também tinha de ser esponja, de aprender tudo de uma vez. Acabei por ajudá-la em coisas pequenas, práticas, técnicas. “Senta-te devagarinho para não fugires de quadro”, “mantém a distância da câmara quando estivermos a fazer um travelling“, coisas assim. Dei-lhe essas dicas técnicas por me lembrar de serem coisas que foram novidades para mim quando fiz a primeira longa-metragem, com o Nuno Melo no filme “Lobos”, do José Nascimento. Lembro-me perfeitamente de nessa altura ter sido tudo mágico e novo, de haver milhares de coisas que entretanto já sei, que já percebi que são regra e fazem parte do dia-a-dia de uma rodagem. Lembrei-me desse período quando se está a começar ao trabalhar com a Nadia. Foi refrescante.

Catarina Wallenstein e Nadia Tereszkiewicz, no filme "Selvagens" (@ Steven Herteleer)

Steven Herteleer / Sauvages

A Léa, a sua personagem, é cheia de contradições, difícil de decifrar. É difícil perceber como é que ela se posiciona em vários campos — social, político, sexual…
Sim. Foi muito curioso porque este não é um filme de guião, é um filme de energia, de aventura. Há um décor, duas atrizes e as coisas foram sendo escritas. Havia uma ideia base que o Dennis tinha que foi aquilo que me contou de início. Depois as cenas iam surgindo, iam sendo escritas no dia. Quando nos vestíamos, ele passava as coisas escritas à mão para o computador e depois mostrava-nos. Foi tudo muito rendilhado na hora. Uma das coisas que já aprendi a fazer e que sinceramente me dá bastante gosto é não ter medo das incongruências. Às vezes pensamos que por uma questão de continuidade a personagem não diria isto, não falaria assim, mas as incongruências fazem parte do nosso quotidiano como seres humanos. Não estando inteiramente por dentro do filme por não ser um filme de guião, de “historinha”, tinha de haver uma confiança absoluta no realizador. Fazer o que nos pede sem pensar duas vezes.

Isto também me deu liberdade: sabia que queria jogar com as questões do poder e do abuso de poder que as pessoas exercem muitas vezes sobre as outras. O abuso de poder não depende sempre da posição hierárquica, da classe social, do dinheiro que cada um tem — pode também acontecer quando se percebe que inspiramos alguém, quando estamos a florescer e a sair da adolescência e a perceber qual é o poder da nossa sexualidade sobre o outro. Queria jogar um bocadinho com isso, não com um lado perverso e mau, mas com a questão do poder, de como uma pessoa que está na fossa se pode alimentar da energia do outro para vir ao de cima. Não queria que fosse tudo visto como certo ou errado, bom ou mau.

Usava a expressão “na fossa” e a personagem tem ali um lado muito radical de isolamento, de afastamento, de marginalidade face ao que a rodeia. Onde que é que se vai buscar inspiração para isto? A fossas próprias, histórias alheias?
A minha visão do mundo é a única base com a qual posso criar. As pessoas que viveram perto de mim, as histórias que me contam, os livros que leio, as minhas próprias fossas que vou vivendo, tudo isso serve de base. Tenho uma grande curiosidade com a piscologia e com o modo como ligamos isso ao que já sabemos da neurociência, do funcionamento humano. É uma das minhas geekices, uma das coisas sobre as quais gosto de ler e perceber. Como é que uma pessoa isolada pode ir buscar poder? No filme refere-se que a personagem pagava a homens para dormirem com ela. Qualquer forma de se exercer poder que permita à personagem não estar numa posição de dependência e submissão é o sítio onde ela se agarra, a boia de salvamento naquela solidão toda. Não é uma personagem tão cândida como a outra, a Nora, que está na sua solidão mas procura uma coisa mais generosa, menos perversa, menos egoísta.

"Muitas vezes até me defendo e sou insegura, mas ultimamente tenho pensado muito sobre o medo. Não me interessa ter medo, é aquilo que não podemos mesmo ter, é a origem de tudo o que é mau."

Sendo um filme muito escrito dia a dia, quão próxima estava a ideia que tinha do filme daquilo em que ele se veio a tornar?
Fiquei um bocado confusa [risos]. Por um lado tinha uma ideia dos traços gerais do filme, mas não tinha ideia de como é que a história ia ser contada e organizada. Acho que foi falta de capacidade minha para, não tendo um guião que me ajudasse a visualizar, perceber no que é o que filme se ia tornar. A rodagem do filme foi bastante brutal, nem sequer dava para me preocupar com projetar o resultado final. Foi uma rodagem de uma certa redescoberta de uma selvajaria ou de uma liberdade muito jovem, onde já não estava há algum tempo. Muitas vezes até me defendo e sou insegura, mas ultimamente tenho pensado muito sobre o medo. Não me interessa ter medo, é aquilo que não podemos mesmo ter, é a origem de tudo o que é mau — da agressividade à defesa. O realizador dizia-me: “vais por ali disparada e arrastas-te nas paredes, gritas e passas-te”. Tenho medo de representar isso mal, mas não tenho outra hipótese se não fazer.

“Vou fazer castings como toda a gente e levo nãos como toda a gente”

A sua personagem neste filme “Selvagens” tem uns momentos em que canta. A sua ligação à música é uma coisa de que nem toda a gente estará a par. Mas até quis ser cantora de ópera antes de ser atriz — e foi para um ateliê de teatro do liceu francês, onde estudava, um bocadinho por causa da música. Foi assim?
Sim, por uma questão muito concreta: estar em palco é estar em palco e trabalhar o corpo e a interpretação é necessária. A voz é importante, mas no trabalho da ópera é preciso fazer um trabalho de personagem e de palco. A ida para o teatro amador nesse ateliê ou para as aulas de corpo ainda antes de entrar no Conservatório de teatro foi nesse sentido. Os meus pais são os dois músicos e estudei música desde pequenina. Até descobrir o teatro, a música era o que queria fazer.

Também canta nos coros da “Sempre Bem”, uma canção nova da banda do seu irmão [Tomás Wallenstein], os Capitão Fausto. Segue muito o que ele faz, têm muita proximidade? E convive com a banda?
Sou uma absoluta groupie [risos]. Estou muito com eles, são meus irmãos, todos. Foram muito meus amigos em alturas chave da minha vida. Estamos todos a crescer ao mesmo tempo, porque apesar de termos alguma diferença de idade, não é muita. O meu irmão é só dois anos e meio mais novo, a diferença para eles é só um pouquinho mais. Fomo-nos acompanhando e fomo-nos vendo crescer. Sempre que posso vou a um concerto — não “faço estrada” com eles sempre, como é óbvio, mas não quero deixar de saber o que é que o meu irmão está a escrever e a pensar, como é que ele se expõe, como é que está a voz, como é que estão os arranjos, como é que eles estão a pensar o mundo via música este ano.

Ao contrário também tem esse acompanhamento? Não só do seu irmão, de toda a sua família. O seu tio [José Wallenstein] é ator, os seus pais trabalham no meio artístico… foi recebendo conselhos deles, ao longo destes anos de atriz?
O meu irmão vai ver os filmes, vai ver as estreias. O meu primo Vicente também é ator, esteve agora com uma peça no Teatro Nacional [D. Maria II]. Mas nunca fomos paternalistas uns com os outros. No início obviamente o meu tio acompanhou a minha vontade de me tornar atriz, as provas ao Conservatório, mas nunca foi paternalista a ponto de achar que eram os conselhos dele que iam condicionar as minhas escolhas. Sinto-me protegida, acompanhada. Os meus pais vão ver, os meus primos vão ver, o meu irmão vai ver. Há um clã que se apoia. Nem vão tanto para dar opinião, vamos é vendo no fundo dos olhos uns dos outros se estão orgulhosos ou não. E há espetáculos em que já vi os olhos deles brilharem menos [sorri]. Há alturas em que eles pensam “está mais apagada” ou “encostou-se” e há outras alturas em que dizem “boa, está certo, é isto”. Tem a ver com a capacidade de nos abrirmos e de arriscarmos e de não termos medo de mostrar quem somos. Há alturas em que temos medo [sorri].

Tendo um apelido que é conhecido no meio e um tio que é bastante reconhecido enquanto ator, sentiu no início que as outras pessoas a viam de maneira diferente? Havia alguma expectativa diferente dos outros sobre o seu trabalho?
Não senti um peso, senti mais uma curiosidade. “Quem é mais esta Wallenstein que vem aí?”, algo assim. Aconteceu comigo como obviamente aconteceu com o Vicente [primo], como vai acontecer se continuarmos a enveredar pelo mundo dos artes. Há uma curiosidade natural, mas não senti nenhum peso e responsabilidade, desde logo porque também não há nenhuma relação direta como haveria com uma mãe. A minha mãe não é atriz. Se fosse uma relação mais direta e entre pessoas do mesmo género — pai e filho ou mãe e filha — acredito que fosse mais complicado, poderia haver mais comparações. Sinto que as pessoas têm curiosidade mas vou fazer castings como toda a gente e levo nãos como toda a gente. E caio ao chão e levanto-me, e aprendo — como toda a gente.

Já deu um concerto com a Ana Moura e o Pedro Moutinho para o Wim Wenders, não foi?
Sim. De vez em quando cantava fados, não é uma coisa que faça assim tão regularmente. Gosto de cantar e de explorar sonoridades, já explorei mais os fados do que qualquer outra coisa. Gosto de ir cantando. Nessa altura o Paulo Branco [produtor de cinema] pediu-me para fazer essa homenagem ao Wim Wenders com um concerto fechado para ele. Cantámos os três. São coisas em que não se pensa muito, porque é a Ana Moura, o Pedro Moutinho e eu ali a tentar fazer jus ao fado e a um certo purismo de não transformar demasiado as coisas. Uma música tradicional é uma música tradicional, não me apetece transformá-la noutra coisa que ela não é. Faço à minha maneira, com a maior honestidade que consigo.

Alguma vez vamos ouvir um disco da Catarina Wallenstein?
Certamente. Não sei ainda o quê nem quando, mas acontecerá, de certeza. Quero cantar e quero deixar um registo, fazer um disco e alguns espetáculos. Como não componho e não escrevo sinto-me um bocado dependente e ainda não decidi bem quem é a minha equipa, qual é a identidade, que música é que quero cantar. Exploro tantas coisas, oiço tanta música diferente… Não me apetece fazer um produto para agradar a alguém, não vou fazer uma coisa encomendada. Tenho de encontrar uma equipa e uma sonoridade que queira defender, mas não vou sentar-me com um manager a decidir um projeto que funcione no ano de 2019. Não é assim que acho que as coisas funcionam, para mim pelo menos.

"Lembro-me de ter tido uma conversa com a minha mãe em que ela me deu alguns conselhos: 'não tenhas medo das incongruências' ou 'ok, a personagem está zangada, mas se calhar não diz todas as frases zangada'. Quando pus aquilo em prática senti um poder enorme, devo ter decidido ser atriz logo a seguir."

E atriz, quando é que percebeu que queria e podia mesmo sê-lo? As duas coisas aconteceram em momentos diferentes ou na mesma altura?
Nunca parei muito para pensar no que é que não conseguiria fazer. Ou seja, se há uma coisa que vai marcando o meu percurso é: ponho-me a fazer uma coisa, não vou duvidar porque isso já é travar o caminho antes de o começar. Mas na altura em que estava a fazer o ateliê de teatro do Liceu Francês, fiz o primeiro ano e achei divertido. O segundo era muito difícil. Lembro-me de ter tido uma conversa com a minha mãe em que ela me deu alguns conselhos de coisas dramatúrgicas baixas: “deixa-a crescer” [à personagem], “não tenhas medo das incongruências” ou “ok, ela está zangada, mas se calhar não diz todas as frases zangada”. Uma coisa muito básica. Eu tinha 16 anos. Quando pus aquilo em prática no espetáculo seguinte senti um poder enorme, o poder da página em branco, de poder fazer em palco o que quisesse. Tendo um texto para dizer, uma peça para fazer e uma combinação com o encenador para honrar, podia ainda assim tomar a decisão de ser personagem como quiser. Achei isso tão divertido que devo ter decidido ser atriz logo a seguir, fui fazer provas ao Conservatório e entrei. Não pensei: quero ser atriz mas se calhar não consigo. Pensei: vou-me propor a fazer isto. E fiz.

Como é que foi o ano em que foi depois estudar para o Conservatório de Paris? Mudou-a muito?
Foi uma experiência muito enriquecedora, para já porque é importante sair-se de onde se está para ir para outro sítio qualquer em alguma altura da vida. Acho que é muito importante porque temos de nos adaptar, ver que há outras formas diferentes de viver, um sentido de humor que funciona de forma diferente consoante o sítio [sorri], que há outros ritmos. Obviamente, a vida em Paris é parecida [com a de Lisboa], não fui viver para o Senegal ou para outro sítio longínquo. Mas com aquela idade — tinha 21 ou 22 anos — só sair, ir para uma escola que tem regras diferentes, onde por exemplo não se dá notas… Tudo isso foi enriquecedor, mais que não seja porque nos faz sentir crescidos. Coisas como ter de viver lá fora, tratar da casa sozinhos, descobrir amigos, encontrar uma maneira de nos relacionarmos com o mundo e sermos aceites.

"Não vivi nada Paris, não saí à noite, não fiz vida de universitária. Era muito escola-casa e casa-escola porque ensaiávamos durante a noite para apresentar exercícios durante o dia. Estava lá com o objetivo de arranjar um agente mas chamaram-me para fazer o ‘Singularidades de uma Rapariga Loura’, do Manoel de Oliveira”

Em termos de personalidade, mudou alguma coisa?
Talvez [tenha ficado] menos insegura e menos competitiva. Era a estrangeira de qualquer maneira mas não deixava de ser tudo muito natural, porque a minha relação com a língua e com a cultura francesa foi sempre muito próxima, li sempre as obras literárias que eles estudam nos liceus, tive sempre contacto com a história geral básica e com a história da arte do país. Senti-me bastante entrosada, não foi violento. Só foi violento por se trabalhar muito — não vivi nada Paris, não saí à noite, não fiz vida de universitária. Era muito escola-casa e casa-escola porque ensaiávamos durante a noite para apresentar exercícios durante o dia. E tinha aulas de canto, tinha uma boa professora de canto em Paris. Foi uma das condições que coloquei para ir, só ia se pudesse continuar a estudar canto.

Nunca pensou aquilo que por vezes se pensa quando se passa uma temporada fora: “e se ficasse aqui?”
Sim. Estava a ficar lá justamente com o objetivo de arranjar um agente, tentar aproveitar o facto de ser bilingue, de ter feito lá o conservatório. Mas chamaram-me para fazer o [filme] “Singularidades de uma Rapariga Loura” do Manoel de Oliveira. Voltei e acabei por ficar aqui. Nessa altura lá já estava numa fase de fazer umas aulas de yoga, fazer babysitting, enquanto esperava para ver se arranjava um agente, para ver se arranjava trabalho. Pensava em como aguentar-me por uns meses, mas aconteceu três meses depois das aulas acabaram chamarem-me para fazer esse filme. E acabei por não viver mais em Paris.

Catarina Wallenstein em “Sauvages”, filme que chegou há poucos dias às salas de cinema

Se pudesse o que é que importava daquela realidade para cá? Sejam costumes, maneiras de pensar, algum modo de trabalhar…
Há uma coisa: eles têm imensos conservatórios de bairro e escolas de artes. Quem entra normalmente num conservatório nacional já passou por essas experiências, ou já passou um ano a pagar a um coach [formador] privado. Então vi ali uma coisa interessante: trabalho é trabalho, ninguém brinca quando trabalha, pelo menos naquele meio em que estudei. Isso é uma coisa que aqui nem sempre acontece: somos menos, conhecemo-nos todos… As coisas lá não são necessariamente mais competitivas, é uma questão muito objetiva: se não apanho este comboio, ninguém o vai apanhar por mim. Não há tempo para desculpas, para medo, para minudências estilo “estou constipada”.

Recorda-se de algum exemplo que mostre isso?
Lembro-me de ficar admiradíssima quando aconteceu uma greve. Não havia transportes para uma pessoa se mexer em Paris mas não houve uma pessoa a faltar à aula das 9h. Cheguei e já estava lá toda a gente. Uns alugaram uma bicicleta, houve quem andasse uma hora e um quarto a pé… uma coisa impensável cá! E ninguém estava de mau humor. Era uma aula prática e a aulas práticas não se faltava. Não havia faltas formalmente, não havia um número de faltas que se pudesse ou não dar, pressuponha-se que as pessoas não faltam. Se deres muitas faltas és chamado à direção e eventualmente convidam-te a sair, porque estás a ocupar espaço e há mais gente que quer estar ali. É menos paternalista, não fazem tantas regras para os meninos, veem-te como um adulto.

Também já disse uma vez que sentiu que em Paris os jovens da sua idade interessavam-se mais por questões políticas. Nesse aspeto era muito diferente?
Eram mais participativos. Lembro-me de uma amiga dizer-me “não posso ir tomar um brunch no domingo porque vou ao meu partido ver o que é que estão a fazer”. Não era sequer tanto uma coisa de “o meu partido” quanto de ir ao equivalente à junta de freguesia saber o que é que se andava a fazer no bairro dela. Havia uma assembleia de moradores aos domingos e era importante ir para poder dizer mal do que se estava a fazer no bairro [risos]. Havia vontade de ouvir e uma ideia de comunidade que passava pela participação, mais do que cá. Temos de ser mais participativos e eu própria não participo tanto como deveria. Há órgãos de participação para o fazer. Mas é aquela coisa: estamos aqui nesta ponta da Europa, a salvo, tranquilos… se bem que acho que estamos cada vez menos a salvo.

"Parar para pensar é uma coisa que já fazemos pouco. Estamos a ficar habituados a reagir às coisas imediatamente, com um clique: lemos uma coisa e ou concordamos ou discordamos, "gosto" ou "não gosto", partilho ou não partilho, faço parte deste clube ou não faço."

Estamos mais vulneráveis ao contágio?
As eleições no Brasil trouxeram um monte de conversas entre famílias e amigos para cima da mesa. Acho que se acendeu uma luz qualquer de preocupação. Não foi uma coisa só de “coitadinhos”, mas de preocupação em tentar pensar nos sistemas, no que está a acontecer, porque é que acontece. Lembro-me de chegar a Portugal na altura das eleições e ver de repente um monte de gente com quem nunca tinha conversado sobre política ou sobre o meu país a comentarem coisas sobre a vida, o seu quotidiano em Portugal. Isso é interessante, querermos ser mais conscientes.

Parar para pensar é uma coisa que já fazemos pouco. Estamos a ficar habituados a reagir às coisas imediatamente, com um clique: lemos uma coisa e ou concordamos ou discordamos, “gosto” ou “não gosto”, partilho ou não partilho, faço parte deste clube ou não faço. Numa fração de segundos tomamos uma data de decisões: pertenço ao clube dos que fazem esta afirmação, não pertenço, partilho e vou fazer-me de interessante a mostrar à comunidade o que pensei. Já fazemos isto automaticamente. Se falarmos de gestão de preconceito, de conhecer pessoas, já estamos a reagir imediatamente a um monte de coisas sem parar sequer para pensar. Por exemplo, as pessoas saem de um espetáculo já cheias de opinião, já sabem se gostaram ou não. Sentimo-nos obrigados a ter muitas opiniões muito rápido.

A atriz na encenação de Jorge Silva Melo da peça "Gata em Telhado de Zinco Quente", de Tennessee Williams

JORGE_GONCALVES

“Ainda não fiz raízes, não sou mãe. Não me importo nada de andar de um lado para o outro”

Tendo feito também televisão, tem feito mais cinema e teatro, pelo menos se compararmos a dimensão de cada um destes mercados…
… sim, embora também tenha feito novelas. Aliás agora estou a fazer uma participação numa novela, que ainda não estreou. Fiz outra há dois ou três anos. Como não tenho filhos, não tenho famílias para alimentar, prefiro fazer projetos de duração mais curta porque posso fazer mais coisas e mais diversificadas. A ideia de estar até dez meses só num projeto causa-me uma certa ansiedade. Até quando estou muito tempo com uma peça de teatro a sinto, tenho a impressão que as estações do ano mudam lá fora e estou no mesmo metro quadrado a dizer a mesma frase. Mas isso é a fase da vida em que estou, não é qualquer preconceito concreto contra fazer teatro seis meses, porque é um luxo e um privilégio podermos fazer um bom projeto durante muito tempo. Nesta fase é que estou a sentir que… estou a andar rápido [risos].

"Neste momento fico um bocadinho ansiosa com ter de dizer 'não' logo à partida a um monte de coisas durante um monte de meses. Coisas que ainda por cima não sei o que são. Ainda não fiz raízes aqui, não sou mãe, que é algo que muda muito as coisas. Neste momento sinto-me bastante nómada, não me importo nada de andar de um lado para o outro."

Que prejuízo é que lhe traz ter um compromisso com alguma coisa mais prolongada?
Aparecer um convite para um filme destes. Ou uma participação, nem que seja pequenina, de três sessões, em alguma coisa em italiano, que me faça ir a Itália, viajar, conhecer equipas diferentes, falar outra língua… Neste momento fico um bocadinho ansiosa com ter de dizer não logo à partida a um monte de coisas durante um monte de meses. Coisas que ainda por cima ainda não sei o que são. Ainda não fiz raízes aqui, não sou mãe, que é algo que muda muito as coisas. Neste momento sinto-me bastante nómada, não me importo nada de andar de um lado para o outro. Estes anos de digressões de teatro de um lado para o outro e conseguir viajar um pouco mais têm-me feito bem, gosto de sentir que não tenho  raízes. É a razão pela qual tento fazer menos coisas prolongadas.

Esteve apenas uma vez no elenco fixo de uma telenovela, certo? Em 2015.
Sim, agora estou a fazer outra.

Viu a “Sara” [série de Marco Martins, Bruno Nogueira e Ricardo Adolfo, com Beatriz Batarda como protagonista]?
Não estava cá e quando cheguei já só tinha na “box” dois ou três episódios. Vi os últimos, só. Por acaso ainda não fui ao RTP Play ver tudo, mas tenho vontade de ver do início. Pareceu-me extraordinário, mas como não consegui seguir…

A atriz no filme "Raiva", de Sérgio Tréfaut

Daquilo que viu, sentiu que retratava bem os meios em que se move?
Como não vi tudo, seria um bocadinho imprudente comentar a fundo. Mas acho que sim, acho que sentimos todos coisas semelhantes. Medos semelhantes, também.

Parte da crítica viu ali uma possibilidade de um futuro um pouco diferente para a ficção nacional. Mas acabou por ser uma série remetida para a RTP2. O que é que falta para haver mais projetos destes?
Não existe mais porque se calhar as pessoas nem sempre se propuseram a fazê-los. Estas pessoas propuseram-se a fazer a série e ela foi feita, agora se calhar foi feita com mais tempo e possivelmente com mais dinheiro. Não estou por dentro dos orçamentos e não sou especialista em produção, mas sei que não é com planos de 55 cenas por dia que fazemos boas coisas. Não é nem aqui nem em lado nenhum mundo, é impossível.

"Nas telenovelas se calhar acontece um erro de conjugação de português e pode passar, ou uma incongruência estilo 'mas estou a sair de cama de roupão quando na cena anterior estava de outra maneira'. Normalmente [digo] que temos de refazer e fica tudo com as mãos na cabeça. É o que dá fazer rápido."

A telenovela é exaustiva por isso?
Entre uma série e uma telenovela há uma grande diferença na quantidade de cenas diárias. Nas séries é preciso um cuidado diferente em fazer cenas em interiores ou exteriores por uma questão de luz, por causa dos barulhos, por causa das estradas, tudo isso. Em estúdio são planos de trabalho extremamente carregado e faz-se a uma velocidade que nem sei… se calhar acontece um erro de conjugação de português e pode passar, ou uma incongruência estilo “mas estou a sair de cama de roupão quando na cena anterior estava de outra maneira”. Normalmente [digo] que temos de refazer e fica tudo com as mãos na cabeça. E depois temos de dizer: mas é o que dá fazer rápido. É assim, não se pode ter tudo, não se consegue atingir a mesma qualidade querendo fazer à pressa. Tempo é dinheiro, é verdade. Se calhar é preciso investir mais tempo e mais dinheiro para fazermos coisas melhores.

“É bom ter o apoio de artistas em campanha eleitoral” mas “a cultura nunca é prioridade”

Tudo isto pode desaguar na discussão sobre as políticas culturais, também. No meio em que a Catarina se move, houve muitas críticas ao modelo de financiamento do Estado às artes…
Ao modelo de financiamento, à quantidade de financiamento… está muito errado. Há promessas e intenções que depois não se traduzem na realidade.

"Os anos passam e a cultura nunca é prioridade. A cultura deve ser também uma prioridade. É enriquecimento, cria capacidades de discernimento, capacidade de sonhar, de trabalhar emoções... Andamos todos de cabeça baixa a olhar para os telefones, mal conversamos uns com os outros. Estamos a perder capacidade de exprimirmos aquilo que estamos a sentir, de entender o outro, tudo porque nos ouvimos cada vez menos."

Revê-se portanto nessas críticas?
Absolutamente. Há anos sem fim que existe o movimento “1% para a Cultura”. Todos os anos desço a Avenida da Liberdade a lutar pelo mesmo. Mas os anos passam e a cultura nunca é prioridade. A cultura deve ser também uma prioridade. É enriquecimento, cria capacidades de discernimento, capacidade de sonhar, de trabalhar emoções… Andamos todos de cabeça baixa a olhar para os telefones, mal conversamos uns com os outros. Estamos a perder capacidade de exprimirmos aquilo que estamos a sentir, de entender o outro, tudo porque nos ouvimos cada vez menos. Acho importantíssimo ver espetáculos e despertarmos emoções porque somos também somos matéria prima da afetividade. É muito enriquecedor ter a possibilidade de ir ver um espetáculo, para entender ou não, ou para ficar dois ou três dias a pensar em porque é que aquilo mexeu connosco, ou para nos revermos e nos definirmos por oposição, desenvolver sentido crítico, ter mais assuntos  para conversar uns com os outros. É mais uma forma de nos construirmos. É muito rico. Acho que está tudo muito estéril, com as pessoas a levarem-se muito a sério… numa vida muito aparvalhada. Não é?

E quanto à posição deste Governo, em específico? As expectativas chocaram com o que depois se verificou?
Chocaram. É importante termos um Governo considera que a cultura é importante e que o demonstre no investimento. Enquanto não apoiarem suficientemente a cultura nós continuaremos a ser conotados como as pessoas que trabalham pouco. Como “os artistas”, os marginais, os malucos, os excêntricos. Depois aparecem séries como o “Sara”, mas as equipas que trabalham nos “Saras” estão aqui há muitos anos, a lutar para produzir coisas com qualidade, com conteúdo, com pensamento e sobretudo com vontade de fazer as coisas de forma diferente, com tempo, ou seja com mais dinheiro. A única maneira de o fazer é fazendo, mas para acontecer é preciso haver investimento do Estado. Tem de ser. É obrigação, está na Constituição.

DGArtes. Que polémica é esta que uniu as companhias de teatro contra o Ministério da Cultura?

Este defraudar de expectativas também terá a ver com alguma ilusão que poderia haver? Em campanha eleitoral houve encontros de candidatos com artistas, por exemplo. Criou-se a ideia que as coisas iriam ou poderiam ser diferentes?
Claro. Os artistas também têm alguma visibilidade, funcionam também como veículo de exposição e é bom ter o apoio de artistas em campanha eleitoral. Mas acho que continuam a existir coisas por fazer. Houve algumas injeções sobre os orçamentos, mas continua a não ser suficiente. Não sou ingénua a ponto de achar que vamos chegar ao investimento de 1% do PIB na cultura de um dia para o outro, embora achasse que deveria acontecer porque é preciso. Claro que também é preciso injetar dinheiro num monte de outras coisas e que é muito complicado administrar um país, mas as expectativas no que toca a considerar a cultura não foram inteiramente cumpridas. Infelizmente a cultura nunca foi prioridade. não é de agora. As pessoas resistem porque acreditam naquilo que fazem, acreditam que é importante para si e para os outros. E vamos continuar a criar… mas à custa de quê?

É curioso que há alguns anos o então ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho saiu do Governo alegando não ter meios para continuar. E hoje o peso que a cultura tem na despesa do Estado é menor…
Pois, também porque os conceitos de cultura e entretenimento são diferentes e acho que há hoje alguma confusão sobre isso. Há cultura com visibilidade e há cultura com retorno para o investimento, mas não é só isso que conta. Cultura e entretenimento não são exatamente a mesma coisa, pelo menos não são sempre a mesma coisa. Pensar que tudo tem de ter retorno ou receitas de bilheteira… não é só isso que conta. Haverá casos em que hoje podemos ter seis pessoas na sala e amanhã termos oito. Aliás, depois cruzamo-nos na rua com pessoas que nos dizem coisas extraordinárias sobre como a possibilidade de aceder a cultura muda os seus dias. Isto não é um discurso inspiracional e emotivo da tanga, é de facto importante porque não são assim tantas as oportunidades dentro da nossa vidinha quotidiana numa cidade de ter umas ilhas de sentimento e de emoções, de abstração. Fora criar condições para descentralizar a cultura, para podermos andar na estrada. Há montes de sítios que estão sedentos de receber espetáculos, exposição, performances ou concertos e que merecem tanto quanto Lisboa e Porto.

"Vi pessoas fecharem portas porque não sabiam se iam ter financiamento no ano seguinte. Vi pessoas a candidataram-se a coisas, terem dinheiro e depois não receber. No cinema igual, subsídios que foram atribuídos mas ficou tudo congelado, demorou não sei quanto tempo, o que muda um ano inteiro de produção porque fica tudo encalacrado. Obviamente que as pessoas ficam com a vida em suspenso."

Também houve muitas queixas sobre atrasos no financiamento. Viu colegas ou encenadores com a vida suspensa?
Vi pessoas fecharem portas porque não sabiam se iam ter financiamento no ano seguinte. Vi pessoas a candidataram-se a coisas, terem dinheiro e depois não receber… No cinema igual, subsídios que foram atribuídos mas ficou tudo congelado, demorou não sei quanto tempo, o que muda um ano inteiro de produção porque fica tudo encalacrado. Obviamente que as pessoas ficam com a vida em suspenso. Já muitas vezes vivemos com a vida em suspenso independemente das atribuições: andamos dois ou três meses a tentar gerir o que ganhámos com o último trabalho, não sabemos quando é que vamos ser chamados para o próximo, se vai aparecer em duas ou três semanas ou em dois ou três meses. Já é complexo, mas com essa instabilidade vivemos mais ou menos ok.

Precisamos de um Estado que entenda que há este estatuto de intermitente. Isso então está a milhas de distância, só se começa agora a rever a questão da segurança social, de se perceber que não podemos ter uma coisa calculada de um ano para o outro porque a nossa vida muda de dois ou dois meses. Está a ser revisto, continua a não ser perfeito mas já melhora um bocadinho a nossa vida. Agora, com a instabilidade que escolhemos conseguimos viver porque também é parte inerente àquilo que fazemos, porque para estarmos a criar e pensar sobre as coisas podemos não ter uma rotina tão marcada. Mas mais instabilidade que essa? Seria bom que não houvesse.

"Gosto muito da ideia de ser intérprete, de estar a ser dirigida e tentar perceber como é a cabeça do outro, 'o que é que queres que diga? como é que queres que entenda o teu sonho?'. Porque também sou um instrumento do sonho da outra pessoa."

Essa instabilidade que se escolhe e que já se esperam somada à que se tem mais dificuldade em engolir, alguma vez a fizeram repensar tudo? A carreira, o futuro?
Sou uma privilegiada, tenho noção disso. Tenho tido trabalho suficiente para me governar. Também comecei muito nova e durante parte do meu início de carreira não estava completamente independente, a viver sozinha. Consegui poupar uns dinheiros. Nunca repensei, percebi sempre que queria estar em palco, a cantar e a representar. Gosto muito da ideia de ser intérprete, de estar a ser dirigida e tentar perceber como é a cabeça do outro, “o que é que queres que diga? como é que queres que entenda o teu sonho?”. Porque também sou um instrumento do sonho da outra pessoa. Depois haverá uma parte da maturidade que tem a ver com ser criador, com pensar sobre o que é que estamos a ver no mundo e de que é que queremos também nós falar.

Essa parte de criação poderá acentuar-se nos próximos anos?
Sim. Comecei agora uma aventura maluca que foi realizar um filme com um realizador brasileiro que conheci cá em rodagem, noutro filme brasileiro feito em co-produção com Portugal. Entretanto fui filmar um filme nosso “de guerrilha” para o Rio de Janeiro, que vai estrear para a semana em Roterdão. É um filme experimental, uma média-metragem maluca, divertida, escrita e realizada por nós. Ele [o realizador brasileiro] chama-se Filipe Bragança.

E o filme, como se chama? 
Chama-se “Tragam-me a cabeça de Carmen M.”

Oliveira, Botelho e ser Lídia em “O Ano da Morte de Ricardo Reis”

Falávamos de ser uma intérprete. Teve alguns modelos de atrizes e cantoras que admirasse especialmente, na infância, na juventude ou mesmo agora?
A Gena Rowlands é um fantasma amiguinho [risos]. A Elis Regina é um fantasma amiguinho. E por aí vai, não sei, hei-de ter mais referências, mas estas são duas “abuelitas” [risos].

Começou primeiro a ver filmes ou a ver concertos?
Estive mais presente na música no início por uma questão prática de estudar música, de fazer concertos, de o meu pai tocar na ópera e de a minha mãe dar aulas de canto e fazer recitais. O meio da música clássica estava muito presente. Em criança vi muito teatro infantil, no fim da adolescência vi bastante teatro e algum cinema. Depois vieram os concertos rock. Comecei a ir para os festivais de música e assim já com 22, 23 anos. Tenho visto menos cinema, agora estou a voltar a ver mais. É assim por vagas.

Alguma vez teve alguma alternativa às artes, algo que pensasse “se não puder fazer isto, posso fazer aquilo”?
Nunca pensei concretamente nisso…

O diálogo é interrompido por uma chamada da mãe de Catarina Wallenstein. Dizemos que pode atender, que está tudo bem, ela ri-se: “Não posso nada”

Nunca pensei em fazer outra coisa. Penso às vezes que posso produzir [filmes]. Agora estou a fazê-lo, sei que tenho capacidades para isso e que é algo que me dá gozo. Mas se fizesse outra coisa talvez fosse estudar psicologia, interessa-me imenso. Sou assim meio científica, a parte da neurociência interessa-me muito, toda a vertente da anatomia. Órgãos, ossos, tendões, gosto de saber como é que funciona o corpo.

Já fez filmes com vários realizadores nacionais de prestígio. O que é que cada um tem ou tinha de mais especial, mais distintivo? Começando por exemplo com o Manoel de Oliveira.
A coisa importante para mim ao filmar com o Oliveira foi a questão da aprendizagem no plateau, a forma específica de ele dirigir e a descoberta que foi para mim ser dirigida daquela maneira. Dirigia-nos como quadros em movimento, ou seja, havia uma questão muito plástica de tempos de movimentos e do desenho do corpo e do gesto, era tudo pensado de uma forma muito detalhada. Isso se calhar para mim que era novinha… acho que houve ali um milésimo de segundo em que aquilo me espartilhou de alguma maneira. E era tipo: “espera dois segundos, vira a cabeça para a esquerda, vira para a direita”. Acabei por perceber que ou virava isso a meu favor ou ia estar em luta e isso não tinha interesse nenhum. Percebi que podia pôr o tom, as intenções e a psicologia que quisesse dentro de um corpo que ele dirigia. Foi muito engraçado porque pela primeira vez separei as duas coisas: “vou-me mexer assim apesar de querer ser perversa” ou “vou fazer de cândida apesar de…”. Foi muito interessante separar as ferramentas.

E quanto ao João Botelho, com quem tem filmado muito regularmente nos últimos anos?
O João sabe muito bem o que quer e tem uma comunicação muito fácil. Gosto muito de filmar com ele, para mim é bastante simples. Há um voto de confiança muito grande de parte a parte. Já sei que ele gosta de mim e ele já sabe que gosto dele, portanto não estamos com rodeios e não há coisas paralelas, estamos a trabalhar. É uma coisa muito frontal e muito eficaz. Na maneira como ele filme é muito ágil, sente-se que está a montar na cabeça enquanto está a filmar. É super eficaz e é super boa onda.

Já fizeram juntos “O Filme do Desassossego”, “Os Maias”, “A Peregrinação”…
E agora o próximo [sorri].

E agora o próximo. Vai começar a ser filmado brevemente, não é?
Muito brevemente, creio eu [risos].

A atriz no filme “Peregrinação”, de João Botelho

Ouvi falar em abril, será assim?
Foi o que ouvi falar também!

Como é que vai ser interpretar a “Lídia” [personagem de ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’, de José Saramago, que vai ser adaptado ao cinema]?
Ainda não sei, tenho de me sentar com eles a delinear estratégias. Mas é uma honra enorme fazer um papel grande de uma obra da literatura com essa envergadura. E com o João [Botelho] outra vez. Ainda para mais tenho feito uns papéis mais pequenos com o João, que deixam muita vontade de podermos passar mais tempo a construir juntos. Chegou a hora, estou feliz!

“Decidi que não ia ser medida por ‘likes’ há muito tempo”

Mudando um pouco de assunto: falámos do “Sara”, onde se fazia um paralelismo grande entre parte dos atores de telenovela e as redes sociais, onde se abordava a ideia de figura pública, de se ser personagem também nas redes sociais. A Catarina expõe-se pouco — não tem “página de artista”, tem o acesso às suas contas restrito. Porquê?
Decidi que não ia ser medida por “likes” há muitos anos. Não é de agora, nunca o fiz. Tenho os meus amigos que são meus amigos e tenho uma agência, se quiserem encontram-me. Não vou estar a ser medida por “likes”, por ter mais ou menos seguidores do que outra pessoa qualquer. Não quero fazer parte disso.

"Não me interessa essa coisa de me definir, dizer que sou assim, mostrar na internet que tenho estas fotografias, que tenho X amigos, que gosto destas coisas e não gosto daquelas. Prefiro falar com as pessoas diretamente, descobrir o meu próprio pensamento numa conversa, ouvir o que o outro diz, inspirar-me por uma pergunta ou pela conversa das pessoas. Definir-me num perfil estático com um layout igual para toda a gente... não tenho interesse, não tenho interesse em conhecer ninguém dessa maneira, portanto também não invisto muito em ser conhecida dessa maneira."

É uma vontade de separar pessoa e atriz?
Se as pessoas quiserem conversar comigo, gosto imenso de conversar. Ainda para mais sou bastante conversadora… e sento-me e conto coisas, sou uma desbocada. Rio-me, faço amigos com facilidade, mas não confundo nada disso com o meu trabalho. Quem quiser ir ver o meu trabalho vê, quem quiser conversar comigo à partida sou bastante disponível, mas não percebo a ideia de figura pública. Não me interessa essa coisa de me definir, dizer que sou assim, mostrar na internet que tenho estas fotografias, que tenho X amigos, que gosto destas coisas e não gosto daquelas. Prefiro falar com as pessoas diretamente, descobrir o meu próprio pensamento numa conversa, ouvir o que o outro diz, inspirar-me por uma pergunta ou pela conversa das pessoas. Definir-me num perfil estático com um layout igual para toda a gente… não tenho interesse, não tenho interesse em conhecer ninguém dessa maneira, portanto também não invisto muito em ser conhecida dessa maneira. Mas lá está, se quiserem conversar comigo, converso [sorri].

Um momento de que ainda não falámos foi da sua participação em “A Gaiola Dourada”. Sentiu a reação das pessoas por causa daquela participação [a cantar fado]? Foi um filme bastante visto.
Pois foi. Sim, as pessoas gostaram. Recebi muitas mensagens e um retorno muito grande, tanto por um lado afetivo de histórias e vivências de emigração, concretamente de emigração em França, como pelo lado emotivo da música. As pessoas perguntaram-me porque é que não cantava mais. Mas essa explicação já dei: quando descobrir o que é que posso cantar e o que é que vou defender, defendo com toda a força. Até lá, gosto de ter oportunidades: no filme da Margarida Gil que há-de estrear pediram-me para cantar uma canção, neste filme “Selvagens” também. Isso não me importo, gosto dos desafios de cantar, seja numa peça de teatro ou noutro projeto qualquer. Mas ter um disco meu de um projeto, de uma banda… não sei, não consigo pensar ainda [risos].

"Não tenho a ambição de trabalhar com o realizador X ou interpretar a história Y. Só não me apetece fazer de mulher amochada, chata, ingénua e bonitinha porque acho que já passámos essa fase, já se discutiu isso tudo. Não faz sentido, estamos em 2019."

Tem algum tipo de personagem que ainda não tenha feito e lhe apeteça fazer?
Quero fazer todas menos as ingénuas [risos]. Não tenho a ambição de trabalhar com o realizador X ou interpretar a história Y, não tenho mesmo isso. Só não me apetece fazer de mulher amochada, chata, ingénua e bonitinha porque acho que já passámos essa fase, já se discutiu isso tudo. Não faz sentido, estamos em 2019, isto é 2019. Pronto, é só isso. Mesmo na mais ingénua vou encontrar uma ponta de perversão para lhe dar a volta [risos].

Contradições e incongruências, não é?
É isso, é.

Muito obrigado.
Muita obrigada.

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