Índice

    Índice

Como o margrave de Brandenburg ganhou um lugar na História

Há gente com sorte. Christian Ludwig (1677-1734), margrave de Brandenburg, é uma nota de rodapé da história e viveu na sombra do irmão mais velho, que se tornaria rei da Prússia como Frederico I, e do sobrinho, Frederico Guilherme I, o Rei Soldado. O título de “margrave” (Markgraf) envolvia responsabilidades de comando militar e era inerente à sua condição de príncipe da casa real prussiana, não implicando a posse ou administração do território correspondente, nos dias de hoje, ao estado de Brandenburg. Em 1719, Christian Ludwig terá encontrado, em Berlim, Johann Sebastian Bach, que viera de Cöthen, onde estava ao serviço do príncipe Leopold, para adquirir um cravo para a orquestra da corte, ao construtor Michael Mietke (que era também o fornecedor oficial de cravos da corte prussiana).

Christian Ludwig, margrave de Brandenburg, retratado em 1710 por Antoine Pesne, pintor oficial da corte da Prússia

Christian Ludwig terá ouvido Bach tocar e terá ficado suficientemente impressionado para lhe encomendar música. Pelo menos é o que se depreende da dedicatória constante da partitura, datada de 24 de Março de 1721 e intitulada Six concerts avec plusieurs instruments (“Seis concertos para vários instrumentos”), que Bach fez chegar ao margrave de Brandenburg. A dedicatória, em francês (à data, uma das línguas francas do meio artístico e da alta sociedade, em particular na Prússia) rezava assim, no tom subserviente que os costumes da época impunham:

“Monsenhor, há um par de anos, tive a ventura de, a Vosso pedido, tocar para Vossa Alteza Real, e não pude deixar de reparar que os modestos talentos que o Céu me concedeu para a Música Vos proporcionaram algum prazer e tendo Vós, ao despedir-Vos, honrado a minha pessoa com a solicitação do envio de algumas peças de minha lavra, eis que, dando cumprimentos às Vossas graciosas ordens, tomo a liberdade de apresentar os meus respeitosos cumprimentos a Vossa Alteza Real, mediante estes Concertos, que concebi para diversos instrumentos, rogando-Vos, muito humildemente, que não julgueis as suas imperfeições pelo rigor do fino e delicado gosto que todo o mundo sabe que Vós tendes pela música. Suplico muito humildemente a Vossa Alteza Real que tenhais a bondade de continuar a dispensar-me as Vossas boas graças, sendo certo que nada alegraria tanto o meu coração como poder disfrutar de ocasiões mais dignas para Vos servir”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[I andamento (Allegro) do Concerto Brandemburguês n.º6 BWV 1051, na interpretação (a uma velocidade vertiginosa) da Musica Antiqua Köln]

Não há sinais de que Christian Ludwig tenha recompensado Bach pelos Six concerts avec plusieurs instruments, ou sequer agradecido o seu envio e o manuscrito não exibe qualquer marca que indicie que alguma vez tenha sido tocado: aparentemente, o margrave limitou-se a juntá-lo à sua vasta biblioteca musical. O manuscrito nem sequer teve direito a uma entrada no catálogo da biblioteca, tendo sido arrolado numa colecção de concertos avulsos.

Quando Christian Ludwig faleceu, em 1734, a sua biblioteca foi vendida e dispersa e os Six concerts avec plusieurs instruments só foram redescobertos em 1849 e dados a ouvir pela primeira vez em 1850, quando a redescoberta de Bach ia de vento em popa, após o impulso inicial do jovem Mendelssohn. Mas foi só em 1880, na monumental biografia de Bach por Philipp Spitta, que os ditos concertos receberam a denominação associada ao seu dedicatário – que persistiu até hoje, embora ele pouco tenha feito para merecer tal distinção.

As magras sobras de um espólio fabuloso

A investigação musicológica deixou claro que os Six concerts avec plusieurs instruments não foram compostos expressamente para o margrave – mas se já estavam compostos, porque levou Bach dois anos para os enviar ao dedicatário?

Leopold, príncipe de Anhalt Cöthen (1694-1728), melómano e gambista. Retrato anónimo

Os primeiros anos de Bach como director musical da corte de Cöthen (cargo que desempenhou entre 1717 e 1723) parecem ter sido de idílio, pois o príncipe Leopold era apaixonado pela música: era um competente executante de viola da gamba e dotara o seu minúsculo principado com uma orquestra de primeira linha, que recebera decisivo reforço em 1713, mediante a contratação de alguns dos músicos de elite dispensados pela corte de Berlim, quando Frederico Guilherme I, ao subir ao trono, decidira deixar de gastar dinheiro com frivolidades como a música.

Professando a corte a fé calvinista, que dá pouco espaço à música nos ofícios religiosos, Bach não tinha entre os seus encargos compor música sacra, pelo que canalizou a inventividade para música instrumental de todos os géneros. Porém, o interesse do príncipe por música parece ter-se esbatido com o tempo – um declínio que tem sido atribuído ao casamento, em 1721, com a sua prima Frederica Henriette, que não tinha gosto por música (Bach refere-se-lhe como “Amusa”, no sentido de não ter qualquer afinidade para com as Musas). Mas as culpas não serão todas de Henriette: também a Prússia obrigou os principados vizinhos a aumentar o contributo para as despesas militares, o que forçou a cortes substanciais na orquestra de Cöthen.

Frederico Guilherme I, o Rei-Soldado, rei da Prússia entre 1713 e 1740, preferia o troar dos canhões aos suspiros dos violinos. Retrato por Samuel Theodor Gericke, 1713

Decorre daqui que, no início da década de 1720, Bach começara a ficar irrequieto e a sondar o terreno em busca de melhor emprego – no final de 1720 candidatou-se, sem sucesso, ao lugar de organista em Hamburgo e é possível que pretendesse que o domínio da arte de compor patente nos Six concerts avec plusieurs instruments funcionasse como um convincente curriculum vitae.

Não foi o que aconteceu e o seu novo emprego, como Kantor de Leipzig, a partir de 1723, acabaria por nada ter a ver com música instrumental e apenas com música sacra. O que é de lamentar é que boa parte da música composta em Cöthen se terá perdido: na música orquestral sobreviveram os seis Concertos Brandemburgueses – sendo o manuscrito enviado a Christian Ludwig exemplar único –, quatro suítes e uma quinzena de concertos, a maior parte dos quais só sobreviveram porque, a fim de animar as sessões do Collegium Musicum de Leipzig, Bach fez deles transcrições que atribuem ao cravo o papel de solista, tendo as versões originais desaparecido.

Na sua magnífica biografia, Johann Sebastian Bach: The learned musician (2001, Oxford University Press), Christoph Wolff apresenta argumentos muito persuasivos em prol de um cenário de intensa produção de peças instrumentais de Bach para a corte de Cöthen, estimando que se tenham perdido mais de duas centenas de obras. Quantas peças de génio comparável aos Concertos Brandemburgueses ou às Suítes para orquestra estariam entre elas?

[I andamento (Allegro) do Concerto Brandemburguês n.º5 BWV 1050, pela Orquestra Barroca de Amsterdam, com Roy Goodman (violino), Ricardo Kanji (flauta) e Ton Koopman (cravo e direcção): aos 6’15 inicia-se uma cadenza para cravo solo cuja frescura e espontaneidade só têm par nas mais desenfreadas improvisações do jazz]

https://www.youtube.com/watch?v=bhRL9rwb8Bw

A arte do concerto

Uma das peculiaridades dos Concertos Brandemburgueses é a sua desconcertante variedade, como se Bach quisesse demonstrar tudo o que pode fazer-se com as formas do Concerto grosso e do concerto para solista que tinham vindo a alastrar pela Europa a partir de Itália. O n.º 1 (BWV 1046) destina-se a duas trompas, três oboés, violino piccolo (um violino mais pequeno, com afinação mais aguda), fagote, cordas e baixo contínuo, o n.º2 (BWV 1047) a trompete, flauta, oboé, violino, cordas e baixo contínuo, o n.º3 a três violinos, três violas, três violoncelos, contrabaixo e cravo, o n.º4 a violino, duas flautas (flauti d’echo), cordas e baixo contínuo, o n.º5 a flauta, violino, cravo, cordas e baixo contínuo, o n.º6 a duas violas, duas violas da gamba, violoncelo, contrabaixo e cravo.

A maioria destas combinações instrumentais nunca tinham sido usadas antes – nem voltaram a ser usadas depois. Alguns concertos recorrem a instrumentos em desuso (as violas de gamba como solistas no n.º6), outros dão pela primeira vez protagonismo a um instrumento cujo papel na orquestra se resumira ao baixo contínuo (o cravo no n.º5); uns exploram texturas homogéneas (o n.º3, só com instrumentos da mesma família), outros reúnem um leque de solistas aparentemente inconciliáveis (o n.º2); uns têm um solista óbvio (o violino no n.º4), noutros todos os participantes (com excepção do contínuo) estão em pé de igualdade (o n.º6).

[I andamento (Allegro) do Concerto Brandemburguês n.º1 BWV 1046, pela Musica Antiqua Köln: um colorido instrumental deslumbrante, com oboés, cordas e o som coruscante das trompas naturais; a partir de 3’35 segue-se o II andamento (Adagio), sem trompas e com o violino piccolo em destaque]

A maior parte dos autores presume que os Concertos Brandemburgueses terão sido tocados em Cöthen antes de serem compilados e enviados ao margrave e, com efeito, a  primorosa orquestra de Cöthen, com os seus 18 músicos (mais o príncipe Leopold e o seu versátil maestro), tinha os efectivos e a competência técnica necessários para os executar. Mas Christoph Wolff observa, com pertinência, que não seria bem visto que Bach dedicasse a outro nobre concertos que compusera e tocara na qualidade de director musical do príncipe Leopold.

Os musicólogos identificaram versões “primitivas” de alguns dos Concertos Brandemburgueses, bem como reutilizações posteriores de andamentos em cantatas compostas em Leipzig, e muito se tem especulado sobre a sua génese. Há quem sugira, por exemplo, que o Concerto n.º1 terá sido composto para ser apresentado numa visita de Bach à corte de Dresden, pois a sua orquestração invulgarmente rica e brilhante (duas trompas, três oboés, violino, fagote, cordas e baixo contínuo) corresponde à dos concertos em voga nessa corte e a inédita adição de uma Polonaise ao formato do concerto poderá ser vista como uma homenagem ao rei da Saxónia, que era também rei da Polónia.

[IV andamento do Concerto Brandemburguês n.º1 BWV 1046, pela Musica Antiqua Köln: O Menuetto combina dignidade, cerimónia e elegância; a partir de 1’15, o gracioso Trio I só com oboés e fagote; o Menuetto regressa aos 2’40; a partir dos 3’16, Polonaise, dança polaca alheia à organização usual dos concertos; 4’32, regressa o Trio I; aos 5’08, entra o Trio II para trompas e oboé; aos 6’15, regresso do Menuetto]

Bach regressa a Berlim

A 7 de Maio de 1747, Bach voltou a ter um encontro em Berlim com um membro da casa real da Prússia e também este daria origem a uma obra genial. Bach deslocou-se ao palácio de Sanssouci, em Potsdam, a convite de Frederico II, sobrinho-neto do dedicatário dos Concertos Brandemburgueses, que tinha ao seu serviço como cravista um dos filhos de Bach, Carl Philipp Emanuel.

Frederico II, o Grande, retratado em 1739 por Antoine Pesne. Subiria ao trono da Prússia no ano seguinte e reinaria até 1786. O amor pela música não o impediu de conduzir uma política externa extremamente agressiva

Se o pai, Frederico Guilherme I, concentrara a atenção no exército e desprezara as artes, Frederico II conseguiu, apesar da firme oposição paterna, cultivar a sua paixão pela música – tornou-se num flautista competente e assim que subiu ao poder, fez renascer a orquestra da corte, contratando alguns dos melhores músicos disponíveis. Embora Johann Sebastian Bach fosse, por esta altura, associado a um estilo antiquado, era, ainda assim, uma figura respeitada e Frederico II convidou-o várias vezes a visitar a sua corte. Bach terá tido alguma reticência, pois em 1745, no âmbito das Guerras da Silésia, as forças prussianas tinham ocupado Leipzig, e poderia ser mal compreendido pelas autoridades municipais que o seu Kantor visitasse a corte de um antigo agressor, mas acabou por aceder.

Consta que Frederico II se preparava para iniciar o seu costumeiro concerto perante a corte, entre as 19.00 e as 21.00, mas ao consultar a lista de convidados chegados a Potsdam nesse dia, ao reparar no nome de Johann Sebastian Bach anunciou “Cavalheiros, o velho Bach está cá!”, pôs de lado a flauta e convocou Bach a juntar-se à corte. Frederico II convidou-o a experimentar a sua colecção de pianos (uma novidade, à data) construídos pela oficina de Gottfried Silbermann e desafiou-o a improvisar uma fuga a três vozes sobre uma melodia que lhe forneceu. Bach acedeu e o rei terá subido a parada, propondo-lhe que improvisasse uma fuga a seis vozes, pedido em que pode ver-se alguma malícia, dado que uma fuga a seis vozes requer um árduo labor e um extraordinário esforço intelectual e a melodia fornecida pelo rei era longa, retorcida e não muito graciosa.

“Concerto para flauta em Sanssouci”, uma visão tardia, por Adolph von Menzel, em 1852, do que terá sido um sarau musical no Palácio de Sanssouci, em Potsdam, em meados do séc. XVIII. Frederico II, na flauta, é acompanhado ao cravo por Carl Philipp Emanuel Bach, sob o olhar atento de Johann Joachim Quantz (no extremo direito), professor de flauta do rei

Bach terá pedido algum tempo para atender a solicitação real e, após regressar a Leipzig, enviou-lhe uma partitura datada de 7 de Julho de 1747, intitulada Oferenda musical (Musikalische Opfer) e “humildemente dedicada a Sua Majestade o Rei da Prússia”: “Permiti-me, com toda a modéstia, fazer-vos esta oferenda musical, cujo trecho mais nobre é obra da Vossa mão. Recordo com um prazer pleno de respeito o muito especial favor que Vossa Majestade dignou conceder-me, quando da minha estadia em Potsdam, há algum tempo, ao ter tocado no teclado o tema de uma fuga, pedindo-me que eu criasse uma peça a partir dele […]. Todavia, dada a falta de preparação, não me foi possível na altura fazer justiça a um tema de tal qualidade. Tomei, pois, a resolução de me consagrar por inteiro a este tema real, digno de atenção em todos os aspectos, a fim de o dar a conhecer ao resto do mundo. Eis o resultado desse labor, dentro dos limites dos meus modestos talentos”.

Os “modestos talentos” de Bach deram origem a uma obra sem par na história da música, em que, ao longo de uma hora, o tema de Frederico II sofre as mais variadas e complexas metamorfoses, começando pelo Ricercar a 3 vozes que improvisara em Sanssouci e envolvendo artifícios técnicos de uma sofisticação que passa ao lado da maioria dos leigos e até do musicalmente esclarecido dedicatário da obra. Porém, como é habitual em Bach, a complexidade das engrenagens subjacentes à obra nunca é obstáculo à sua fruição.

[Início da Oferenda musical: O “tema régio” desenvolvido por Bach num Ricercar a 3 vozes. Por Henk Bouman, na versão da Musica Antiqua Köln]

https://www.youtube.com/watch?v=uoH_eJklDa8

O fecho de uma era

A Oferenda musical poderia ter sido um digno remate de uma extraordinária carreira musical, se em 1749, já com a saúde e a visão debilitadas, Bach não tivesse voltado a trabalhar num projecto cujos primeiros esboços datam de 1736-38. A morte, a 28 de Julho de 1750, acabou por impedi-lo de supervisionar a edição de A arte da fuga (Die Kunst der Fugue), pelo que subsistem dúvidas quanto à ordenação das peças, à incompletude do Contraponto n.º14 e à instrumentação. Há mesmo quem sugira que A arte da fuga não fora concebida para ser tocada, sendo apenas um exercício abstracto, “um ensaio de música pura, totalmente desencarnada, para o prazer dos olhos ou do ouvido interior” (Stéphan Vincent-Lancrin, em Tout Bach). Mas sob a sua fachada de austera investigação das possibilidades de tratamento fugado de um tema, está um “soberbo poema, pleno de sensibilidade e de emoção” (Adelaïde de Place, em Guide de la musique de chambre) e muitos têm sido os músicos que, em cravo, órgão, ensemble de violas da gamba e outras combinações de instrumentos barrocos (e também em piano, quarteto de cordas, orquestra de câmara, quinteto de metais, duo de guitarras ou quarteto de saxofones), têm revelado as suas riquezas.

A arte da fuga leva ainda mais longe a experiência radical da Oferenda musical: é um complexo puzzle musical em 22 peças, todas baseadas no mesmo tema e todas na tonalidade de ré menor, que faz “uma demonstração dos recursos inesgotáveis da escrita contrapontística” (Marcel Bitsch). Nas mãos de um compositor mediano, estariam reunidos os ingredientes para um árido exercício académico, nas mãos de Bach nasceu uma obra que é uma súmula magna de cinco séculos de tradição musical europeia.

A Musica Antiqua Köln

Em 1973, o violinista Reinhard Goebel (n. 1952) fundou, com colegas do Conservatório de Colónia, a Musica Antiqua Köln. Ao longo de três décadas, em que gravou quase exclusivamente para a etiqueta Archiv ( a partir de 1978) e sofreu constantes alterações na formação, o grupo afirmar-se-ia como um expoente na interpretação de música instrumental do barroco germânico. Ao contrário de grupos de música antiga, a Musica Antiqua Köln manteve a sua atenção focada num período e geografia circunscritos: 1650-1750, mundo austro-germânico (e, marginalmente, o francês).

A Musica Antiqua Köln nos seus primeiros tempos; à esquerda, com o violino, Reinhard Goebel

Uma das suas vocações foi a revelação de grandes compositores do barroco entretanto caídos no esquecimento, como Johann David Heinichen ou Heinrich Biber (mestres de capela em Dresden e Salzburgo, respectivamente), e de outros bem mais obscuros, como os que constam dos discos Musica Baltica, Sonata pro tabula ou French baroque concertos. No início da década de 1990, após a gravação das Sonatas do Rosário de Biber, um dos cumes da literatura para violino, uma lesão forçou Goebel a reaprender a tocar o violino “à canhota” e a abandonar durante uma década o papel de solista. Em 2006, uma nova lesão afastou definitivamente Goebel do violino, mas antes já ele dissolvera a Musica Antiqua Köln – a derradeira gravação do grupo, em 2004, contemplou sonatas do ignoto Johann Friedrich Meister (1638-1697). O repertório marginal cultivado por Goebel terá sido uma das razões para a perda de visibilidade do grupo e a atestá-lo está que esta derradeira gravação tenha esperado sete anos para ser editada.

Mas além dos compositores obscuros, a Musica Antiqua Köln deixou também um precioso legado de interpretações dos dois colossos do barroco tardio alemão: Bach e Telemann, que acabam de ser compiladas em duas caixas económicas de 12 e 10 CDs, respectivamente.

[Concerto Brandemburguês n.º2 BWV 1047, pela Musica Antiqua Köln]

Bach pela Musica Antiqua Köln

A caixa Bach, além das três obras-primas acima mencionadas – Concertos Brandemburgueses, Oferenda musical e A Arte da fuga – inclui as Suítes para orquestra, o Triplo Concerto, as Sonatas para violino, as Sonatas para viola da gamba, as Sonatas para flauta e as Sonatas em trio, tudo numa qualidade de som imaculada.

Bach pela Musica Antiqua Koln

Há ainda um CD-bónus com uma entrevista a Reinhard Goebel, pontuada por exemplos musicais, mas só servirá para quem saiba alemão. Também o livrete surge apenas em alemão e a informação nele contida é avara: não há listagem dos músicos nem das datas e locais de gravação, nem os esclarecedores textos de contextualização que constavam das edições originais – é inacreditável que música e interpretações desta qualidade sejam servidas por uma apresentação tão descuidada.

As sonatas para viola da gamba e cravo (BWV 1027-1029) são, na verdade, sonatas em trio (duas linhas melódicas + baixo contínuo) para cravo e viola da gamba (a ordem dos factores não é arbitrária), com o cravo a ter papel preponderante, cabendo-lhe ao mesmo tempo uma linha solista (mão direita) e o baixo contínuo (mão esquerda). Datam, como as restantes sonatas desta caixa, do período de Cöthen e a viola da gamba terá sido tocada pelo príncipe Leopold ou pelo virtuoso Christian Ferdinand Abel (que tomaria o lugar de Bach quando este partiu para Leipzig). Nesta versão, a interpretação é de Henk Bouman (cravo) e Jaap ter Linden (viola da gamba).

[III andamento (Andante) da Sonata para cravo e viola da gamba BWV 1027, por Henk Bouman e Jaap ter Linden]

As sonatas para violino BWV 1014-1020 são, na verdade, sonatas em trio para cravo e violino, com o cravo a conduzir os eventos e a assegurar também o baixo contínuo. As sonatas BWV 1021, 1023 e 1024 são genuínas sonatas para violino, tendo este o papel solista e sendo o baixo contínuo confiado ao cravo e violoncelo. As sonatas para cravo e violino são inovadoras, ao darem papel de relevo ao cravo, anteriormente remetido ao papel de acompanhamento, e prefiguram o papel central que o piano irá assumir na música de câmara do período clássico. A interpretação é de Reinhard Goebel (violino), Henk Bouman (cravo) e Jaap ter Linden (violoncelo).

[I andamento (Allegro e Adagio ma non tanto) da Sonata para violino e baixo contínuo BWV 1023, por Reinhard Goebel, Henk Bouman e Jaap ter Linden]

https://www.youtube.com/watch?v=1JVx-gGMzek

As sonatas para flauta e cravo (BWV 1030-1032), que na verdade são, mais uma vez, sonatas em trio para cravo e flauta, e as sonatas para flauta e baixo contínuo (BWV 1033-1035) são confiadas a Wilbert Hazelzet (flauta), Henk Bouman (cravo) e Jaap ter Linden (violoncelo).

As interpretações das sonatas são de alto gabarito, mas é na música orquestral que estão os maiores triunfos desta compilação. As Suítes (ou Ouvertures, como eram então denominadas na Alemanha) são de datação incerta, podendo ter sido compostas em Cöthen e revistas em Leipzig para os concertos de música orquestral no Café Zimmermann pelo Collegium Musicum, instituição para a qual Bach canalizou muita da sua energia quando os atritos com o conselho municipal de Leipzig o levaram a desinvestir no trabalho como Kantor (ver artigo sobre a Paixão segundo S. João de Bach).

Além das usuais quatro Suítes (BWV 1066-1069), a Musica Antiqua Köln gravou também a Suíte BWV 1070, de atribuição duvidosa (e que poderá ser da autoria do filho mais velho de Bach, Wilhelm Friedemann).

[A festiva Gigue que encerra a Suite n.º3 BWV 1068, pela Musica Antiqua Köln]

A arte da fuga BWV 1080 é aqui interpretada por diversas combinações de instrumentos de cordas (apenas um instrumento por parte) e cravo, o que permite uma melhor percepção das várias linhas polifónicas. É complementada por várias obras breves devotadas à escrita contrapontística que lhe são afins: os Cânones BWV 1072-1078 e os 14 Cânones sobre o tema das Variações Goldberg (BWV 1087), um dos quais corresponde ao Cânone triplex a 6 vozes BWV 1076, que surge no retrato de Bach por Haussmann, o que revela o apreço em que o compositor tinha esta composição.

Johann Sebastian Bach aos 61 anos, por Elias Gottlob Haussmann. O compositor fez-se retratar com o Cânone BWV 1076 na mão

Os seis Brandemburgueses, também trazem um extra, o Triplo Concerto para flauta, violino e cravo BWV 1044, irmão gémeo do Brandemburguês n.º5 no que diz respeito à instrumentação e que resulta de uma hábil reciclagem de peças para cravo e órgão.

A gravação dos Concertos Brandemburgueses tem 30 anos, mas não ganhou uma ruga e mede-se com as muitas e excelentes versões editadas desde então. Tem as marcas distintivas da abordagem da Musica Antiqua Köln, entretanto adoptada por muitos outros ensembles barrocos: tempos rápidos, articulação muito clara e incisiva, dinâmicas contrastadas. “Tempos rápidos” e “articulação muito clara e incisiva” são expressões que não fazem justiça ao III andamento do Brandemburguês n.º3 pela Musica Antiqua Köln, um irresistível turbilhão sonoro que nenhuma outra gravação conseguiu até hoje igualar em ímpeto, adrenalina e virtuosismo – é a experiência mais próxima que pode ter-se de ser arrebatado por um tornado, sem deixar o conforto de um sofá.

[III andamento (Allegro) do Concerto Brandemburguês n.º3 BWV 1048, pela Musica Antiqua Köln]