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D. R.

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César Mourão: "As pessoas esperam que as faça rir. Mas mesmo entre amigos nem sempre estou para 'macacadas'"

Podia ter sido desportista, mas repetiu o secundário para fazer o Chapitô. Não bebia, não fumava e era um "rato de biblioteca". Entrevista de vida a César Mourão, o homem sem medo do improviso.

Sabe que a televisão tanto constrói ídolos – como agora é, com um programa em nome próprio em horário nobre na SIC, o D’Improviso, aos domingos à noite — como os destrói. E é por isso que diz, aos 39 anos, sentir-se sempre em “late checkout”. Caso deixe de ser ator um dia – e hoje é, apesar do cansaço que vai sentindo amiúde, no teatro como no cinema, na TV ou na rádio –, ver-se-ia a ser treinador de futebol ou preparador físico. O desporto foi a primeira vocação de César Mourão. “Era bom em quase tudo: ténis de mesa, voleibol, futebol, sei lá, tanta coisa, corfebol também, natação também.”

Concluído o secundário, voltou atrás na vocação, recomeçou do zero e foi estudar representação para o Chapitô. “No Chapitô, era quase obsessivo quanto a aprender, a trabalhar. Quando não tinha aulas, por exemplo, punha-me a ler coisas sobre ilusionismo na biblioteca. Queria ser versátil enquanto ator.”

Orgulha-se do que faz. “Hoje tenho o orgulho de dizer, por exemplo, que os Commedia à la Carte são um fenómeno.” Mas o que faz, seja a comédia de improviso ou projetos mais “comerciais” no cinema ou televisão, nem sempre é respeitado em Portugal – mais até pelos seus pares e a crítica do que pelo público. E as portas fecham-se. “Ainda estou muito estereotipado. Porque trabalho em televisão ou fiz coisas mais comerciais — e é verdade que fiz –, sou logo mal visto, parece que não sei fazer mais nada bem. É óbvio que queria fazer muito mais cinema. Mas as oportunidades também não aparecem. Já rejeitei umas quatro novelas. Quero fazer mais coisas com ‘conteúdo’ e não só comédia.”

Pode vir a fazê-las no Brasil — para onde foi estudar depois de, há quase vinte anos, ter saído do Chapitô. “Vou ao Brasil quase todos os anos. Sei que improvisaria lá na boa. E o mercado lá é muuuuuito grande. Obviamente, já pensei nisso. Mas outra das coisas em que tenho que pensar é na minha filha [Mariana, de oito anos]. Já houve convites, sim. Convites da Porta dos Fundos, por exemplo. Mas são convites que me obrigariam a viver lá. Não é uma porta que feche. Quero mesmo fazer isso.”

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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Passaram dezassete anos desde que os Commedia à la Carte começaram, no Chapitô, a fazer comédia de improviso. O público era muito diferente nessa altura do que é hoje? A forma como recebia o vosso trabalho, como interagia, era diferente?
Sim. Nós tivemos a sorte e o privilégio de também ter um papel muito ativo na educação do público para este tipo de espetáculos. Creio eu. Hoje em dia, o público que vê Commedia à la Carte está nos antípodas do público que via Commedia à la Carte no início. Porque, no início, não tinham aquela realidade, nunca tinham visto um espetáculo de improvisação — não existia Facebook, Instagram, YouTube, não existia nada disso, não havia a divulgação que há agora. Portanto, era muito complicado naquela altura as pessoas terem acesso ao que é um espetáculo de improvisação. Hoje em dia, não. Isso faz com que o público já esteja muito educado para este tipo de espetáculos — e que vá a espetáculos de uma maneira diferente e vá a saber, cirurgicamente, onde participar e como participar.

No início quase que se encolhiam nas cadeiras para que vocês não os procurassem na plateia…
Completamente! Lembro-me de lhes perguntarmos por três personagens e as pessoas não sabiam o que é que aquilo queria dizer. Tinham tendência de dizer “Cavaco Silva”. “Não, o Cavaco Silva não é um personagem…” [Risos] Queríamos personagens, estereótipos de pessoas, pessoas do dia-a-dia. Chegámos a tentar — como nos chamávamos Commedia à la Carte — ter um menu com várias opções, centenas de opções para as pessoas escolherem um personagem. Mas as pessoas encolhiam-se, sim. Hoje em dia não. Hoje o público sabe perfeitamente ao que vai.

Tu próprio também sentes que estás diferente? A comédia de improviso que hoje fazes também se alterou, evoluiu?
Sim… Bastante. Não só porque sou mais velho mas, também, porque nós tivemos a oportunidade de ver outros grupos de improvisação, como é que trabalhavam. Cheguei a ir a Nova Iorque pesquisar alguns grupos e ver alguns espetáculos ao vivo. Mas não estávamos assim tão atrasados em relação a eles. Depois de conversar com eles percebi que não estávamos. Nós trabalhámos com um sonoplasta na altura, um sonoplasta que improvisava connosco. Usávamos aquele fatinho dos calções — que continuamos a usar. Habitualmente, e concretamente em Nova Iorque, vestiam-se todos com a roupa casual — ou só com umas t-shirts com cores . Nós tentámos criar um espetáculo dentro da improvisação que não era muito usual. A improvisação noutros sítios é vista mais como: “Estamos aqui, vamos improvisar com o que temos, vestidos como estamos…” Nós não. Mas respondendo à tua pergunta: evoluí, obviamente, bastante. Mas evoluí no palco. Foi com um trabalho que fomos aprimorando, tentativa-erro, tentativa-erro, tentativa-erro… E foi isso que fez com que chegássemos aqui sem ter problema nenhum em subir a palco sem saber o que fazer.

"Nunca me sinto nervoso em palco. E acho que isso resulta de duas coisas: técnica... e falta de consciência. Normalmente digo isto: 'Mesmo que um espetáculo corra mal, o que é que me pode acontecer? Nada...' Ao dizer isto, ao pensar isto, há logo um 'descomprometimento'. A improvisação realmente pode correr mal. Isso é uma possibilidade, ponto final. E não só é uma possibilidade como é uma vantagem. A partir do momento em que sei utilizar aquela 'desgraça' a meu favor, isso vai fazer com que tenha cada vez menos medo."

Só é possível “subir sem saber o que fazer”, improvisar assim, quando confias muitos no atores que estão a partilhar o palco contigo. Certo?
Sim. Tínhamos que nos conhecer muito bem. Já na altura, quando os Commedia à la Carte começaram, nos conhecíamos há muito tempo. Mas hoje em dia é possível fazer um espetáculo sem esse conhecimento, antenção. Por exemplo, neste espetáculo novo eu improvisei com o Gustavo Miranda, que é colombiano, e com o Marco Gonçalves, que é do Brasil. E nós não trabalhamos todos juntos todos os dias. Mas funcionou.

Isso já é outra coisa, presumo: empatia.
Empatia, sim. E química no palco. Isso é muito, muito importante. E, depois, claro: a técnica. Porque nós sabemos que um improvisador é um improvisador; não é um ator qualquer que faz improviso — por melhor ator que seja, possivelmente até muito melhor ator do que nós. O improviso é uma técnica. E há técnicas que têm que se respeitadas no improviso.

Por exemplo?
Por exemplo o facto de não dizer “não”. Se eu pergunto: “O senhor tem horas?” E o outro ator responde: “Não, não…” Isso invalida tudo o resto. Fecha uma porta. Bloqueia. Isso é importante. Mas ele pode responder: “Não, não… Acabaram de me roubar o relógio nesta paragem de autocarro!” É como um jogo de ténis. Tenho que ter confiança que de lá vem uma possibilidade para improvisar. Agora, também tenho que ter muita confiança em mim. Quando pergunto a alguém se tem horas, tenho que ter vinte opções preparadas para o que ele me vai responder. Mas, atenção, tenho que esperar sempre pelo que ele me diz. Seria estúpido num jogo de ténis eu jogar a bola para um lado e desatar a correr para o lado que acho que ele me vai mandar. Eu tenho uma opção, posso até ter o corpo inclinado para o lado direito, mas ele pode-me fazer um contra-pé. E isso é igual no improviso. Tenho que ter muita confiança em mim. Se ele me fizer um contra-pé, sei que vou apanhar a “bola”. Mas só posso reagir depois de ele jogar. Percebes? Porque muitas vezes o desespero de um ator que não tem experiência no improviso é desatar a correr para coisa nenhuma. “Então, mas eu ainda nem joguei e já estás a correr?! Ainda nem joguei a bola, ainda nem te disse que horas são…”

Na comédia de improviso, tal como num espetáculo de comédia que não seja de improviso, tanto faz, há tempos para respeitar, silêncios. E só há humor quando os tempos são respeitados…
Sem dúvida! O humor é o silêncio, ponto final. Na minha opinião é timing e silêncio. Não existe música sem silêncio. E humor também não. As mesmas respirações, os mesmo timings, têm que ser feitos na improvisação como se de um texto se tratasse. Ao ponto de as pessoas, e essa é a melhor crítica que nos podem dar, dizerem assim no final: “Vocês estavam combinados, não estavam?!” Muita gente neste programa novo [“D’Improviso”, na SIC] que estou a fazer me diz isso. “Vocês já sabem quais são as profissões…” É maravilhoso quando as pessoas nos dizem isto. Mas, realmente, não sabemos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Falavas ainda agora da confiança que precisas de ter em ti. Nunca te sentes nervoso? Afinal, não tens “rede”…
Não me sinto nervoso, não. Mas maior parte dos atores fica. E acho que isso, o não me sentir assim, resulta de duas coisas: técnica… e falta de consciência. Normalmente digo isto: “Mesmo que um espetáculo corra mal, o que é que me pode acontecer? Nada…” Amanhã se calhar aquelas pessoas não voltam, OK. E estamos a falar de trezentas pessoas num universo de dez milhões. Ao dizer isto, ao pensar isto, há logo um “descomprometimento”. A improvisação realmente pode correr mal. Pode mesmo, mesmo correr mal. A partir do momento em que há esse risco, o público fica. E mais atento ainda. É curioso… [Longa pausa] É a mesma coisa que te dizer agora: “Vou cantar uma música do Chico Buarque…” E tu respondes: “OK, já te ouvi tocar, sei que sabes, não vai correr mal, toca lá…” Ouves, até gostas, mas está tudo bem. Não há risco. Se te disser que vou saltar deste sofá para aquele, com esta mesa pelo meio repleta de copos de água, tu vais pensar que se cair me vou partir todo. “Deixa-me lá ficar a ver…” E não ficas só tu; a senhora que vai a passar no corredor fica também, o outro também, o outro também… E, de repente, tens dez pessoas para me ver saltar de um sofá para o outro. Pode correr mal? Pode. Agora, tenho é muita experiência de saltar de sofá em sofá. E não fico nervoso pelo o facto de vir a correr mal. Isso é uma possibilidade, ponto final. E não só é uma possibilidade como é uma vantagem. A partir do momento em que sei utilizar aquela “desgraça” a meu favor, isso vai fazer com que tenha cada vez menos medo.

Ouvi-te falar em trezentas pessoas. Mas já estiveste a atuar para sete mil. Sozinho em palco, num monólogo. Mesmo assim não “tremes”?
Não. É a tal inconsciência…

Mas quando o espetáculo termina, sei que sentes uma certa insegurança — palavras tuas. Porquê?
Sim, sim. Sinto. O improviso tem isso: muitas vezes esqueço-me daquilo que disse no segundo anterior. Quando é um texto, aquilo já te sai mecanicamente. E sabes: “Olha, aqui as pessoas vão rir, aqui vão chorar, aqui vão rir outra vez…” E riem. E choram. Sabemos que é assim. E depois sabemos que correu bem ou mal porque esperávamos que rissem e não riam, que chorassem e não choraram. No improviso, não; é imediato. Vou dizer algo que não sei se vai resultar ou não. E quando digo algo, já estou a pensar no que vou dizer a seguir. Nunca tenho a certeza se correu bem. Mas sei quando corre mal. Quando corre mal, digo logo: “Não foi bom…” E quando é bom… [pausa] fico sempre na dúvida, eternamente na dúvida. E nunca sei se foi o espetáculo ideal. Nunca sei nem nunca soube.

"Vejo-me a fazer mutíssima coisa se não tivesse sido ator. Acho que provavelmente gostaria de ser músico. Mas também me imagino a ser professor de educação física. Ou desportista. Ou treinador de futebol. Ou preparador físico... Imagino-me perfeitamente -- e estava tudo certo na mesma. Acho que um ator está apto a fazer quase todas as profissões -- porque é quase interpretar aquele papel."

Voltas para casa e ficas a revolver no que correu mal, é isso?
Fico! Fico, fico, fico. Fico a pensar, a pensar. E fico infeliz quando corre menos bem. Digo sempre isto ao meu grupo: “Nem sempre quando o público se ri isso significa que foi bom o espetáculo”. Mesmo que o público se tenha rido a bandeiras despregadas. Porque nós é que temos que saber se, realmente, o humor que lhes oferecemos foi o ideal para nós. É muito fácil eu dizer uma patetice, dizer três asneiras seguidas, e a plateia vir abaixo a rir. Claro que é. Mas isso faz de mim um bom improvisador?! E daquele um grande espetáculo?! Não faz…

Hoje, as pessoas já se riem contigo mesmo que não estejas sequer a querer ter graça.
Sim…

Claro que é mérito teu…
Como é lógico. Mas nós é que temos que ter a consciência se foi bom. E, chegando ao fim, dizer: “Malta, foi mau, foi muito mau!” É indiferente se as pessoas adoraram ou não.

Já te aconteceu isso? Chegar ao fim e ter a certeza que não correu bem?
Já, já. Já…

Por exemplo…
Vou-te explicar: é impossível em cinquenta e dois espetáculos — creio que é o número que fazemos por ano — correrem todos muito bem. É impossível. Agora, as pessoas saem satisfeitas? Saem. Umas porque nunca viram, outras porque acham mágico como é que de repente me lembrei de “Amamentar” numa palavra começada por “A”, e as pessoas saem satisfeitas. Mas nós sabemos que correu mal. E quando corre mal é quando dizemos a primeira hipótese e não a sabemos engolir. Porque um bom improvisador nunca diz a primeira. Se me perguntares agora: “O senhor tem horas?” A minha primeira hipótese é: “Sim, sim. São quatro da tarde”. Tenho que engolir esta. Esta é má. “Olhe, são horas de o senhor se ir embora!” Está também é…

Num dos espetáculos de 2013

D. R.

Isso exige um raciocínio muito, muito rápido.
Tem que ser. Porque se a minha primeira opção for a fácil, não estou a improvisar bem. “São horas de ir visitar a minha mulher, que tem um problema grave…” Isto é bom. Mas tenho a certeza que se disser que são horas de ir embora, a plateia vai rir. Mas sei que foi a primeira opção. E se dei a primeira opção — e cada um der a primeira opção –, então é porque estamos a fazer um espetáculo mau. Percebes? Temos que saber colocar de lado as primeiras opções e dar as restantes.

Vamos recuar um pouco. Perdeu-se um professor de educação física ou um desportista federado? Era a tua primeira vocação.
Sim, foi.

E eras muito bom em variadíssimos desportos…
Sim, muitíssimo bom. Ainda hoje, dás-me um desporto qualquer para aprender e atino à primeira.

Chegaste a ser federado em algum?
Vários, vários: ténis de mesa, voleibol, futebol, sei lá, tanta coisa, corfebol também, natação também. Adoro fazer desporto. E estou apto para qualquer coisa. E adorava, sim. Agora, se se perdeu?… Perdeu. Mas não sei se perdeu um ótimo professor de educação física. Acho que um ator está apto a fazer quase todas as profissões. Sendo que não podem ser profissões que te exigem um talento incrível: pintor não seria de certeza absoluta, cirurgião não seria de certeza absoluta. Mas aquelas profissões mais do quotidiano, um ator está apto a fazê-las — porque é quase interpretar aquele papel. E vejo-me a fazer mutíssima coisa se não tivesse sido ator. Acho que provavelmente gostaria de ser músico. Mas também me imagino a ser professor de educação física. Ou desportista, sim. Ou treinador de futebol. Ou preparador físico. Imagino-me perfeitamente — e estava tudo certo na mesma.

"No Chapitô, era quase obsessivo quanto a aprender, a trabalhar -- mais até do que sou agora. Quando não tinha aulas, por exemplo, punha-me a ler coisas sobre ilusionismo na biblioteca. Para quê? Qual a razão? Por nenhuma razão. Apenas porque queria ter esse 'skill'. Malabarismo? A mesma coisa. Sei fazer tudo e mais alguma coisa que envolve malabarismo. Queria ser versátil enquanto ator."

No início do teu percurso como ator chegaste a fazer mais alguma coisa?
Não. Nunca, nunca, nunca… Infelizmente não. Devia ter feito. Dava-me uma bagagem de vida melhor do que aquela que se calhar tenho. Mas nunca fiz. Sempre fui muito focado no desporto quando estudava desporto e treinava muito. Depois, passo para o teatro e foi igual: sempre focado.

Eras adolescente quando trocaste o curso de desporto pelo de teatro, no Chapitô. Porquê a troca?
Era adolescente, sim. Fazia teatro amador e os meus encenadores diziam-me que tinha que seguir teatro. Terminei o secundário e resolvi voltar para trás para fazer artes — porque o curso no Chapitô equivale ao ensino secundário. E não me arrependo.

Foste para o teatro, antes mesmo de entrar no Chapitô, por vontade tua? Ou influenciado?
Por vontade minha, sim. Alguém me desafiou, não me lembro exatamente quando ou como é que foi, a fazer aulas de teatro porque essa pessoa também fazia. E fui. Fui porque era para curtir. E correu-me muito bem. Então, resolvi fazer o secundário todo outra vez no Chapitô.

Em 2004, no programa das manhãs da SIC de Fátima Lopes, onde começou na TV

D. R.

Mas nunca pensaste seguir artes circenses, por exemplo.
Não, isso não. Sempre a representação em primeiro lugar. O Chapitô dá-te uma versatilidade incrível. Mas, mesmo assim, nunca me deixava ficar só pela versatilidade do Chapitô: queria mais e mais e mais e mais. Era quase obsessivo quanto a aprender, a trabalhar — mais até do que sou agora. Quando não tinha aulas, por exemplo, punha-me a ler coisas sobre ilusionismo na biblioteca do Chapitô. Para quê? Qual a razão? Por nenhuma razão. Apenas porque queria ter esse skill. Malabarismo? A mesma coisa. Sei fazer tudo e mais alguma coisa que envolve malabarismo. Sabia que não queria aquilo. Mas queria ser versátil enquanto ator. A mesma coisa com os instrumentos musicais: toco guitarra, fui autoditada na guitarra, “arranho” no piano e toco saxofone. Treinei muito para conseguir estas coisas.

Portanto, com vinte anos tinhas consciência que essas mais-valias te poderiam ajudar a vingar na profissão de ator. E a verdade é que isso te aconteceu muito recentemente, no filme “A Canção de Lisboa”. É verdade?
Sim. O Leonel Vieira disse-me: “Epá, tu devias ser malandro, fazer umas coisas com o chapéu, mandar o chapéu ao ar e não-sei-quê…” E disse-lhe que sabia fazer algumas coisas. E fiz: rodei no dedo, mandei para o pé, do pé para a cabeça. E ele ficou impressionado: “Epá, mas sabes fazer isso?! Ótimo, ótimo!” E lembrei-me que aprendi aquilo no Chapitô. Mas não é a primeira vez. Com o ilusionismo também. Era preciso fazer qualquer coisa, estavam a pensar num duplo para fazer os truques com as mãos, e acabou por não ser preciso duplo porque sabia fazer. Agora, sou ilusionista? Não. Mas sei a “manha” — porque treinei, treinei, treinei muito. Lembro-me de andar na escola com uma moeda de cinquenta escudos, entre os dedos, e passava a moeda de um lado para o outro nas aulas todas. Só a treinar. E perguntas-me: para quê? Para nada. [Risos]

Mas isso era prática comum no Chapitô, essa obsessão por saber fazer de tudo um pouco? Ou eras um aluno “diferente” dos outros?
Era meio-meio. Cada um tinha a sua paranoia de treinar aquilo ou treinar aqueloutro. Agora, embora nunca tivesse fumado nem bebido álcool, não tinha essas distrações da juventude, nunca deixei de me dar com os outros alunos. Eu estava sempre no grupo. E dizia palhaçadas. Mas, curiosamente, não me vestia como a maior parte dos alunos se vestia. [Risos] E logo aí já era “o” estranho. Lembro-me de ser o primeiro no Chapitô a ter telemóvel. Duas semanas depois toda a gente tinha — mas fui o primeiro. E houve colegas que ficaram quase ofendidos: “Materialista, materialista…” Mas depois aceitavam-me, não era excluído do grupo. Mantinha-me sempre no meio deles e era muito líder — ainda hoje sou — de projetos, de ideias. Era muito trabalhador, sempre fui. E nunca me viram como o “maluquinho” que foi para a biblioteca e não foi beber copos. Não. Até porque tanto ia para a biblioteca como ia beber copos — eu Coca-Cola e eles álcool. [Risos]

Em grupo, na altura como hoje, rodeado de amigos, rodeado de gente da tua confiança, és o mesmo César que vemos na televisão: engraçado, com à-vontade. Mas basta aparecer uma pessoa estranha ao grupo e vem logo uma certa timidez. É assim?
Sim, sim, sim. Sempre me aconteceu isso. Odeio aquelas coisas: “Pessoal, vamos jantar entre amigos? Vamos… Mas vai um colega do trabalho…” Eishhhhh, esquece. Para mim é um inferno. E se conseguir libertar-me logo do jantar, liberto.

Porquê?
É a minha maneira de ser. Muita gente confunde e acha que é porque me vão pedir fotografias, autógrafos. Não é. Já era assim antes de ter popularidade. Fico mais introvertido. E fico “na minha”. As pessoas pensam logo que estou triste ou que sou arrogante. Não tem a ver com isso. Fico é mais “na minha”, observador.

Confessa: estão sempre à espera que digas uma piada, que os faças rir? E não estás para isso…
As pessoas esperam sempre isso, sim. Mesmo entre amigos. Às vezes, mesmo esses, dizem: “O que é que tens?!” Não tenho nada. É só um dia normal. Com amigos, quando estou para brincar, estou para brincar. Mas isso acontece raramente — nem sempre estou para “macacadas”. Então, normalmente as pessoas tendem a dizer que sou arrogante ou antipático. Não me acontece muitas vezes. Mas acontece algumas.

Depois de teres estudado no Chapitô, vais estudar para o Brasil. Porquê o Brasil? O teatro e, nomeadamente, o improviso eram mais “evoluídos” nessa altura no Rio de Janeiro?
Não. Em termos de improviso não acho que estivesse mais evoluído. A escolha do Rio de Janeiro é meio sem querer. Fui estudar Teatro, Televisão e Cinema. Acho, honestamente, que foi uma má escolha. Mas prende-se com o facto de ter um “chamamento” em relação ao Brasil meio estranho. Sempre me senti bem lá. E sempre achei que o Brasil era um país onde gostava de experimentar viver. E aconteceu meio sem querer. Claro que, se calhar, se tivesse ido estudar para Londres, teria tido outras oportunidades, seria melhor para mim. Talvez. Mas tinha um amigo que estudava teatro em Londres e me dizia que era muito ostracizado — ele falava muitíssimo bem inglês mas, só pelo facto de o sotaque não ser o britânico, não podia subir a um palco para fazer uma peça de teatro. Então, fiquei logo com reticências em relação a Londres. França não era um chamamento. Estados Unidos até podia ser. Mas eu tinha aquela coisa de ir para o Brasil viver. E fui experimentar.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Durante um ano.
Ano, ano-e-pouco.

Evoluíste enquanto ator? Ou o tempo foi pouco?
Não aprendi assim tanto. Com alguns professores, sim. Mas não aprendi assim tanto porque, primeiro, cheguei à faculdade uns passos muito à frente do que aqueles alunos que lá estavam. Porque tinha vindo do Chapitô — e tinha três anos de formação. E muitos dos meus colegas era a primeira formação que estavam a ter enquanto atores. A minha professora de dança era argentina. E quando a professora não podia ir, ligava-me para dar a aula na vez dela. “Então, mas sou eu que estou a dar a aula?! Devia estar a aprender mais coisas…” Podia ter aprendido mais. Agora, foi ótima a experiência enquanto ator, mais que não seja por ter vivido noutro país.

Viste certamente muitos espetáculos. E participaste em algum?
Não, só na escola. Mas consumi muita coisa, aprendi muita coisa. Ao viver num país diferente, mais a mais com aquela idade, aprendes coisas que não se aprendes nas aulas: aprende-se a viver, a experenciar, a descobrir. E isso é sempre bom para um ator.

Mas viver no Brasil — ou noutro país estrangeiro –, sozinho, com vinte anos… Há muitas tentações, não?
[Risos] Há. Há… Mas sempre fui muito focado. Esse motivos de distração comigo não existiam muito. E foi realmente benéfico para mim ter lá estado — e agradeço aos meus pais que me ajudaram bastante nessa altura. Como seria benéfico, hoje, viver aqui um mês, outro mês acolá. Era bom. Mas são opções que fazemos na vida. Hoje em dia tenho uma filha e isso não me permite tanto grandes aventuras.

"Sempre fui tímido. Odeio aquelas coisas: 'Pessoal, vamos jantar entre amigos? Vamos... Mas vai um colega do trabalho...' Eishhhhh, esquece. Para mim é um inferno. As pessoas pensam logo que estou triste ou que sou arrogante. Não tem a ver com isso. Fico é mais 'na minha'. As pessoas esperam que as faça rir. Mas mesmo entre amigos nem sempre estou para 'macacadas'."

Acabas por regressar por causa de um convite para participar no “Programa da Maria”, com a Maria Rueff. Mas a segunda temporada do programa, onde participarias, acaba por ser cancelada.
Fiz o casting fora do tempo de casting. E ligaram-se a dizer que para uma primeira série não era possível, o elenco estava escolhido, mas que contavam comigo para a segunda. Fiquei bastante contente, tranco a matrícula no Brasil e fico cá. E o programa não tem segunda temporada. Foi cancelada.

Teria sido certamente bom para ti trabalhar com aquele elenco: o Nuno Lopes, o Dinarte Branco, o Pedro Tochas, a própria Maria Rueff.
Claro, claro. Obviamente. Era um programa muito bem feito — e adorava ter feito o programa. Infelizmente, não surgiu a oportunidade.

Foi frustrante?
Não.

A verdade é que abriu outras “portas”.
Abriu a dos Commedia à la Carte. Estava cá e pensei: “Já que cá estou, vamos fazer uma coisa…” E fizemos. E foi ótimo. Agora, nunca me vou muito abaixo quando as coisas não acontecem. Vou momentaneamente. Fico triste. Mas é uma coisa que depois passa. E parto para a próxima. E ainda bem, por um lado, que não aconteceu — porque se calhar não existiriam os Commedia à la Carte.

Vocês não eram todos da mesma geração no Chapitô. Como é que se conheceram?
Da seguinte forma: eu estudava no Chapitô, o Ricardo também estudava — e pertencia à companhia — e o Carlos foi convidado para a companhia para ser assistente de encenação do John Mowat. Na altura conheço o Carlos, tinha acabado de vir do Brasil, e o proprietário do restaurante do Chapitô, que era belga, disse-nos: “Há uma coisa na Bélgica que é match d’improvisation, vocês podiam fazer isso, pá: improvisação…” Nós fomos pesquisar o que seria, eu e o Carlos. Nisto, o Ricardo tinha voltado de Nova Iorque — onde tinha feito uns workshops de improviso — e resolvemos experimentar. “Commedia à la Carte” foi o Ricardo que inventou. E fizemos por brincadeira, só no Chapitô. Começou um boca-a-boca, um bate-boca incrível, passámos a fazer uma vez por semana, sempre cheio, sempre cheio, e começaram a convidar-nos de outros sítios. E foi por aí fora, a esgotar sempre cada sítio onde íamos. E hoje tenho o orgulho de dizer que os Commedia à la Carte são um fenómeno.

É por causa desse “fenómeno” que, a certa altura, os produtores do programa das manhãs da SIC, que vão ver um espetáculo vosso, vos convidam para integrar o programa. Verdade?
É mais engraçado do que isso. Os produtores foram ver e surge um convite para irmos só como convidados ao programa da Fátima Lopes, só para fazer um bocadinho de comédia de improviso. E nós pensámos que seria bom. Depois, nesse mesmo dia em que vamos ao programa, íamos à noite ver “O Homem que Mordeu o Cão” ao teatro Tivoli, porque o Markl queria que fossemos fazer também uma coisa no espetáculo, de improvisação. Fomos de manhã à Fátima Lopes, vamos à noite ao Markl, estamos sentados, antes mesmo de falar com o Nuno Markl, e liga-nos o produtor das manhãs e das tardes da SIC. E liga-nos com uma proposta incrível para ficarmos. Todos os dias de manhã. Era incrível em termos monetários, não podíamos dizer que não. E, estupidamente — não podemos dizer que alguma coisa foi estúpida porque ainda cá estamos… –, não aceitámos o convite do Markl ao invés do do day time. Se calhar a vida tinha sido outra coisa. Mas fomos, talvez, gananciosos. Era muito dinheiro por cinco minutos por dia — o outro era uma vez por semana. Mas termos ido para as manhãs também nos deu muita bagagem. E até nos desfizemos enquanto grupo no programa — e fiquei nas manhãs sozinho. Não posso dizer que foi mau para mim. Obviamente que não.

Não foi. Mas o humor que se fazia nas manhãs não era próximo do teu — e nem estou a falar do improviso mas, sim, dos personagens que depois criaste. Tiveste que, tal como com os Commedia à la Carte, “educar” o público?
Era totalmente disruptivo o que fazia. Fazia uma empresa de limpeza que era contra a minha vontade, por exemplo. Mas sabia que tinha que dar com uma mão para ir buscar com outra. O Carcaça, por exemplo, que comia pão e não se percebia o que ele dizia, era algo de que gostava.

"As pessoas já vieram ter comigo a chorar, a dizer que sou como família para eles, porque a mãe só se ria nos últimos dias de vida com os meus com o que fazia em televisão. E gosto muito de ter essa consciência, de que posso ajudar de certa forma com o humor. Ajudar as pessoas a serem mais felizes -- ou a, por momentos, esquecer das amarguras que estão a passar."

É verdade que esse personagem surgiu no refeitório da SIC?
Surge, surge. [Risos] O realizador pergunta-me: “O que é que vais fazer amanhã?” Estava comer, pego num bocado de pão por brincadeira e respondi-lhe com ele na boca. E eles começaram a rir, a rir, a rir. E pensei: “Vou fazer isto!” E fiz. Ao início foi uma batalha. O realizador adorou mas o editor odiava: “Epá, não se percebe nada do que dizes!” A ideia era precisamente essa. Foi difícil fazer vingar esse personagem. Mas tornou-no no personagem mais conhecido da manhã. E toda a gente queria que fizesse. Mas quando toda a gente queria que fizesse, já não queria eu.

Havia um ator em concreto que te “invejava” esse personagem: o Raul Solnado.
O Raul, sim. Ele veio muito sério dizer-me: “Preciso de lhe dizer uma coisa sobre o Carcaça…” E pensei: “Pronto, vai dizer que detesta!” “É que me irrita esse personagem…” “Pronto, senhor Raul Solnado, desculpe…” “Irrita-me não ter sido eu a inventá-lo!” E isso foi incrível. Mas eu fazia outros personagem de que gostava, como o marido da Barbie, o Ken…

Que tinha uma vida totalmente desgraçada…
[Risos] Desgraçada! Também fazia um anjinho das rotundas, no Natal. Fazia um humor muito “fora” do que era o humor da manhã — que era muito o “bêbado” e a “empregada de limpeza”. Tentei fugir disso. E consegui.

Nessa altura começas a ter uma maior notoriedade pública. Começava a ser difícil sair à rua sem ser abordado a toda a hora? Hoje deve ter “piorado”…
Hoje é pior, é. Bastante. Mas felizmente que é — significa que o público reconhece meu trabalho. E naquela altura também era difícil. Foi tudo estranho, novo. Mas fui-me adaptando. Não sou muito dessas coisas, não adoro entrevistas, não sou de me “vender” muito — há dois anos que não tenho Facebook –, não partilho a minha vida privada, não tenho essa abertura. Não condeno quem tem. Eu é que não tenho muito à-vontade para ter. Não gosto. E não consigo.

Mas concretamente na rua: deixaste de fazer alguma coisa que fazias antes da tal notoriedade pública?
Não. Não, não, não. Faço tudo igual, faço tudo absolutamente igual. Claro que com alguma calma. Não há nada que me lembre de ter deixado de fazer por causa disso. Se tiver que ir seja onde for, a um festival de música, vou. E não vou para a parte VIP; vou para onde ia antes. Estou com os meus amigos no meio das pessoas. Às vezes é mais chato, às vezes é menos. Mas é o preço que tu pagas. Respondo a toda a gente, nem que seja um obrigado, no Instagram, por exemplo — a não ser que seja para me convidar para participar numa lista de uma escola secundária. [Risos] E sou mesmo eu a responder. E faço questão de responder porque as pessoas assim o merecem. Há uma coisa que me acontece muitas vezes…

Então?
As pessoas às vezes escrevem-me a dizer: “César, o espetáculo de Commedia à la Carte está esgotado, prometi à minha namorada que comprava os bilhetes e não comprei…” Já safei esses pedidos. Desde que tenha possibilidade, safo. E luto com a minha produção. “Mas sabes quem é essa pessoa?!” “Sei lá, um gajo qualquer no Instagram…”

Mas porque é que o fazes?
Adorava ir ver um espetáculo do Bruce Springsteen a Nova Iorque. E adorava que fosse ele a arranjar-me os bilhetes se não conseguisse. Às vezes nem é “arranjar” — porque as pessoas muitas vezes até pagaram –, mas facilito. “O Bruce safou-me dois bilhetes?!” É incrível. Por muito que, no fim, não me receba. Nem tem que receber. Mas vou ficar a simpatizar para sempre com ele. Não o faço para simpatizarem para sempre comigo. Faço-o porque quando percebo que é honesto o pedido, que as pessoas realmente querem ir ver e não conseguem, sinto-me bem a fazê-lo.

Sei que há algo que também te faz sentir bem: quando és abordado na rua por espectadores, da televisão ou do teatro, que estão a viver situações complicadas e te agradecem. Acontece muito?
Sim… [Pausa] Acontece-me bastante. O humor aí tem um papel importante. O humor tem um papel importante seja no que for. Tanto é visto como o parente pobre da representação como é muito importante em várias áreas. E uma dessas áreas é a saúde. Nós esquecemo-nos muitas vezes que, quando aparecemos na televisão, a televisão tanto pode estar ligada na sala de um senhor que é milionário como pode estar ligada na sala de um senhor que não tem o que comer amanhã, como pode estar ligada no quarto de um hospital. E é muito importante aquele momento. E as pessoas já vieram ter comigo a chorar, a dizer que sou como família para eles, porque a mãe só se ria nos últimos dias de vida com os meus sketch, com o que fazia em televisão. E gosto muito de ter essa consciência, de que posso ajudar de certa forma com o humor. Ajudar as pessoas a serem mais felizes — ou a, por momentos, esquecerem das amarguras que estão a passar.

Tu dizes sempre que és ator e não humorista. Mas deixaste-me uma deixa, passe o pleonasmo, muito interessante: “O humor é o parente pobre da representação”. Porquê?
O humor é o parente pobre da representação mundialmente. Desde sempre. É claro que também há humor e… humor. Explico: há humor mais fácil e há humor mais acessível — que não tem que ser fácil. Por exemplo, considero, modéstia à parte, que interpretei muito bem um personagem [Esperança] no teatro da Trindade, num monólogo meu, de humor. O monólogo não era só humor — mas a grande dose era. Agora, que está bem interpretada a personagem, não tenho dúvida. Honestamente. Mas é mal visto, porque acham que é um teatro comercial, porque se calhar esgotou desde a primeira sessão até à última. Mas isso não faz daquele monólogo um péssimo monólogo. Ainda estou muito estereotipado em Portugal. Porque trabalho em televisão ou fiz coisas mais comerciais — e é verdade –, sou logo mal visto, parece que não sei fazer mais nada bem. É difícil…

Mas isso já te incomodou mais do que incomoda hoje. Não?
Já me incomodou mais. Mas ainda fico triste com algumas decisões. Já tive esse incómodo todos os dias. Hoje em dia não. Sou fã de muita coisa “séria” que se faz em teatro. E vou ver — e faço questão de pagar e não arranjar bilhetes. E admiro muito alguns atores, que nem sequer fazem comédia, e adorava um dia poder improvisar com eles. Agora, se o humor já é visto como o parente pobre, o humor de improviso, então, ainda é mais pobre. “Ah, os gajos chegam lá e fazem umas ‘macacadas’…” Eles perceberem a dificuldade. Mas acham mal feito. É despretensioso, sim. Isso é verdade. Não é um humor erudito — e também gosto desse tipo de humor. Mas, depois, em Portugal é muito fácil rotularem-te. Sei lá… [pausa] Claro que há coisas mais comerciais, claro que há coisas menos comerciais, acho é que não podemos ser rotulados logo. “Isto é humor em televisão e é mau!” Não. Porque há coisas que são muito boas dentro desse espectro.

"Ainda estou muito estereotipado em Portugal. Porque trabalho em televisão ou fiz coisas mais comerciais -- e é verdade --, sou logo mal visto, parece que não sei fazer mais nada bem. É óbvio que queria fazer muito mais cinema. Mas as oportunidades também não aparecem. Já rejeitei umas quatro novelas. Quero fazer mais coisas com 'conteúdo' e não só comédia."

A verdade é que, com o Leonel Vieira, mais até no segundo filme [“Canção de Lisboa”] em que ele foi produtor e não realizador, tens um personagem que, sendo cómico, é também mais “denso” — e tem alguma carga dramática. Era o que querias fazer? O desafio que querias?
Sim, sim. Embora o filme tenha sido transversal, leve. Mas isso também se deveu muito a quem o dirigiu e o realizou, que foi o Pedro Varela — que é muito ligado aos atores e dirige muitíssimo bem. E o Pedro Varela puxou muito esse lado. É óbvio que queria fazer muito mais cinema, com muito mais “conteúdo”. Mas as oportunidades também não aparecem.

Já rejeitaste, por exemplo, novelas. Porque o convite era para integrar o núcleo cómico…
Já rejeitei. Umas quatro. Quero fazer mais coisas com “conteúdo” e não só comédia. Nem sempre surgem essas oportunidades. Ter feito um personagem mais denso na “Canção de Lisboa” deve-se muito a quem dirigiu o filme. Mas continua a ser um filme leve. Claro que tive colegas, não ligados ao humor, que me deram os parabéns e que gostaram. Mas tenho que provar mais e fazer mais.

Ouvi-te dizer, a propósito de televisão e de audiências — a “luta” pela audiência –, que é o mesmo que “querer ir a um concerto de rock sem apanhar pó”. É assim, certo? Porquê? O teu programa foi líder de audiência logo na estreia…
Penso zero nisso. Zero, zero. Em nenhuma altura penso nas audiências. Digo sempre que a televisão, e quem está na televisão sabe que isto acontece, é o veículo que mais tritura, mais expõe, mais constrói e mais destrói. Esta é a verdade. Tanto constrói como no minuto a seguir te destrói. Porque se ao quarto programa for um desastre de audiência, cai. Acabou. E o programa, mesmo continuando a ser bom e divertido, deixa de o ser porque a audiência caiu.

A tua audiência está, em média, próxima do milhão de espectadores.
O que é ótimo, estou muito satisfeito. Mas não alterou uma vírgula ao projeto, ao conceito, por causa da audiência. Quando digo que é impossível não apanhar pó, é porque sei que a partir do momento em que trabalho num canal que é privado tenho que respeitar aquele canal. E aquele canal quer ser transversal, deposita a confiança em mim para que eu possa trazer pessoas para o nosso canal que não são do nosso canal. Tenho que ter essa consciência e fazer um produto em que me reveja, sim, mas que seja transversal o suficiente para um domingo à noite. Tenho que ter essa consciência. Não posso ser convidado para um programa ao domingo à noite e fazer um programa umbiguista. Não posso. Mas também não posso fugir àquilo em que acredito, mesmo dentro do lado mais comercial da televisão. Estive três anos sem fazer televisão. Nada estava de acordo com aquilo que queria fazer. E, agora, senti que tenho quase este dever para com a improvisação, que tudo me deu: o de mostrar a improvisação ao país.

Estás numa das fases mais produtivas da tua vida. Mas tens sempre a consciência de uma certa finitude. Até utilizas uma frase curiosa: “Sinto que estou sempre em late check-out“. Porquê?
Sim, sim. Aconteceu com a toda a gente. O Herman continua a fazer coisas, a renovar-se, mas também teve altos e baixos.

Vives um bocado por antecipação? Sofres por antecipação?
Vivo, vivo. Vivo bastante. Agora, tento estar sempre uns pontinhos à frente daquilo que eu acho que consigo ser. E, portanto, agora estou a tentar fazer coisas na área digital, porque sabemos que o futuro é o digital. E fazer com que isso seja, daqui a uns tempos, talvez, a prioridade da minha vida.

Estamos a falar de um projeto, ainda meio secreto: o “Cavalinho da Chuva” — com o Rui Unas, o Salvador Martinha e o Frederico Pombares. Qual é o conceito?
Nós sabemos para onde é que queremos ir mas ainda estamos a trabalhar nisso. É uma coisa que para o ano vamos realmente querer fazer — e fazer bem.

Só digital?
Só digital. Mas estamos a tentar não fazer mais do mesmo. Agora, e respondendo à pergunta anterior, sei que o humor pode, se te desleixares, chegar ao fim. O país é pequeno — numa semana fazes uma digressão de norte a sul — e é fácil as pessoas dizerem: “Epá, já não acho graça ao gajo como antigamente achava!” É muito fácil.

E tens esse cuidado de não desgastar a tua imagem? Também por isso deixaste de apresentar programas durante aqueles três anos…
Tento ter esse cuidado. Se calhar devia ter mais. Mas ao mesmo tempo também não posso. Há pessoas que fazem isso muitíssimo bem. O Nuno Lopes é alguém que faz muitíssimo bem essa gestão de imagem. Mas também tenho uma filha, não posso fazer totalmente esses anos sabáticos que as pessoas às vezes dizem que devemos fazer. A ideia é criar outros projetos que não são tão comerciais, tão visíveis, para continuares a poder dizer não a determinadas coisas.

Questiono-me se não sentes o cansaço? Fazes rádios, televisão, teatro, cinema. Períodos há em que fazes tudo ao mesmo tempo.
Esse período é agora! Novembro e dezembro é um período caótico para mim — e ainda mais agora com a estreia do programa. Não tenho um dia em que não tenha nada. Felizmente. Mas sinto-me muito cansado, sim. Depois, em janeiro, quase me obrigo a parar. Mas, para teres a noção, já estou a pensar no que vou fazer em setembro, outubro e novembro do próximo ano, a pensar no espetáculo novo de Commedia à la Carte. Estamos a preparar toda a nova temporada. Estou a preparar, também, outro projeto para televisão, por exemplo. E sei que em março vou fazer uma coisa muito disparatada, salvo seja, porque é novidade, ao vivo e com três músicos. Tenho o próximo ano quase totalmente preenchido.

Daí perguntar-te antes se vivias por antecipação. Vives…
Sim, vivo. Sei perfeitamente o que é que quero e o que é que vou fazer até ao final do próximo ano. Tenho perfeitamente a noção.

Por falar em saber o que é queres. Tendo tu estudado no Rio de Janeiro, tendo colaborado com a Porta dos Fundos, tendo sido convidado do programa do Jô — e a visibilidade aí é tremenda –, nunca pensaste em “internacionalizar-te” para o Brasil? Houve convites?
Já pensei, já. Vou ao Brasil quase todos os anos — e sou muito feliz no Rio de Janeiro. Sei que improvisaria lá na boa. E o mercado lá é muuuuuito grande. Obviamente que já pensei nisso. Mas outra das coisas em que tenho que pensar é na minha filha. Já houve convites, sim. Convites da Porta dos Fundos, por exemplo. Mas são convites que me obrigariam a viver lá. Não é uma porta que feche. Quero mesmo fazer isso mais cedo ou mais tarde.

Falaste da tua filha, a Marina. Tem oito anos. Ele tem mesmo mais piada do que tu? Ela diz que sim…
Tem mesmo. [Risos] Tem, tem, tem. Ela tem um timing impressionante de comédia.

Que não lhe ensinaste…
Não lhe ensinei, não. Ela era pequenina, tinha quatro anos, e diz-me: “Pai, dá-me água…”; chamo-a à atenção: “Mariana: se…” E ela responde: “-túbal”. [Risos] Tem mesmo muita piada. Tenho um orgulho enorme em que ela tenha muita piada. Agora, se me perguntares se gostava que ela fosse atriz, respondo-te que não adorava. Ele pode ser aquilo que quiser ser. Mas não adorava.

Mas os teus pais “adoravam”, por exemplo? Ou pensavam como tu pensas?
Adoravam! Quer dizer, não sei se adoraram. Mas mentiram muito bem… [Risos] Não houve nenhuma altura em que me dissessem: “Vê lá, que isso não é futuro nenhum, tira antes um curso!” Nunca me disseram, antes pelo contrário. Eu acreditava tanto naquilo que eles passaram a acreditar. “Vendi-lhes” a coisa de uma forma que acho que em nenhuma altura eles duvidaram que me ia dar bem. A minha mãe diz que nunca mais se esquece de uma frase que disse, antes de ir estudar teatro: “Ainda me hão-de ver nos maiores palcos deste país e depois eu quero ver se continuam a gozar!”

Gozar?
Ah, sim! Porque eles gozavam comigo quando fazia teatro amador. Chegava a casa e a minha mãe e a minha irmã gozavam comigo, compravam umas plumas, punham à volta delas, faziam de bailarinas — a gozar comigo, por querer ir para o teatro. Os meus pais são muito divertidos. E a minha irmã também. Então, gozavam muito comigo. E lembro-me de dizer aquilo, em miúdo — mas com uma confiança que a minha ainda hoje não se esquece de cada vez que me vai ver ao Coliseu ou ao Tivoli ou ao Trindade.

E a Mariana, também já tem essa “confiança”?
Acho que estou tramado… [Risos] Ela tem. E às vezes diz que quer ser atriz. Tento disfarçar. Mas ela é igual a mim nesse aspeto: capta tudo, apanha tudo à primeira. No outro dia fez o primeiro programa [D’Improviso] todo igual, as piadas, tudo, tudo, tudo. Olhava para mim e piscava-me o olho como quem diz: “Vês, pai? Sei fazer…” É muitíssimo observadora. E depois sai sempre por cima. Lembro-me de estar em frente da televisão a apresentar e dizer: “A minha próxima convidada é assim, palmas para a Conceição Lim…” “Não é Lim, filha, é Lino.” Pai: Lino não rima com assim!”

[Sobre a filha Mariana, de oito anos] "Ela tem um 'timing' impressionante de comédia. Não lhe ensinei. Ela era pequenina, tinha quatro anos, e diz-me: 'Pai, dá-me água...'; chamo-a à atenção: 'Mariana: se...' E ela responde: '-túbal'. [Risos] Tem mesmo muita piada. Agora, se me perguntares se gostava que ela fosse atriz, respondo-te que não adorava."

A propósito de observação. Dizes que tens um “baú gigante de tiques” — porque observas muitos as pessoas. Ainda vais observar velhinhas para a Rua da Igreja?
[Risos] Toda a gente me pergunta: “Aquela tua personagem, a velha, é quem?” São todas. Eu acumulo, acumulo, acumulo. Sou uma esponja. Às vezes nem quero ser. Estou na minha vida, descansado, e apanho um tique aqui, outro tique acolá.

Mas ainda consegues observar? Ou és, agora, o observado? Antigamente era certamente mais fácil passar despercebido.
Ainda consigo. Hoje mais diretamente. Porque a velhinha fala comigo: “Ah, gosto tanto de o ver…” Estou a falar com ela e, sem querer, começo a acumular tiques. Às vezes digo alguma frase em palco e penso: “Onde é que ouvi isto?” E às vezes foi a senhora nos correios. E acumulo sem querer. É por isso que não gosto de ver humor. Não gosto de assistir, raramente assisto.

Até porque nunca te ris num espetáculo de humor…
Não me rio. Mas acho graça. Não consigo rir, rir, rir. Mas não é porque não goste; é porque tenho medo de ficar com algumas piadas e algumas frases e, inconscientemente, na improvisação, como é tão rápido, posso dizer e só depois é que penso: “Ah, isto não era meu! Caraças…” Uma coisa é usar uma frase que uma senhora velhinha disse nos correios. Outra coisa é dizer uma piada de um humorista. Mas faço um esforço para não dizer. Mesmo que esteja a trabalhar em Proença-a-Nova — e pense que ninguém viu aquele espetáculo que vi.

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