Vânia Freitas preparava-se para abrir o café ‘A Ponte’. Por volta das 7h30, cumpria a rotina diária e colocava as mesas e cadeiras na esplanada, para receber os primeiros clientes. Até aqui, havia apenas silêncio e o início de um dia de calor. Mas a calma da Avenida Belo Horizonte, no Bairro da Bela Vista, em Setúbal, rapidamente desapareceu. “Primeiro, comecei por ouvir um tiro, mas nem liguei, porque pensei que eram eles a afugentar alguma coisa. Entretanto, ouvi o segundo, depois o terceiro. E as vizinhas começaram a gritar por mim”, contou a mulher de 36 anos ao Observador.
As vizinhas pediram então para chamar a polícia e Vânia assim fez. De acordo com a PSP, o alerta foi dado já por volta das 8h. Entre o pânico dos vizinhos e a chamada para as autoridades, Vânia olhou para o outro lado da estrada, onde existe sobretudo vegetação, barracas e terrenos cultivados, e viu o que estava a acontecer: “Vi o senhor Cesário de um lado para o outro, depois cheguei-me mais perto do olival e vi o senhor Mário deitado no chão, cheio de sangue, ainda com vida. Ele não falava”.
O “senhor Cesário“, de quem Vânia Freitas fala, é o homem que este domingo matou outros três a tiro de caçadeira, acabando depois por se suicidar quando os agentes da PSP chegaram ao local, poucos minutos depois do pedido de ajuda. O “senhor Mário” é uma das três vítimas. Depois de perceber que, pelo menos, este homem ainda estava vivo, Vânia ainda tentou, com a ajuda de uma vizinha, travar a hemorragia. “É uma visão que quero esquecer”, conta ao Observador, enquanto vai servindo cafés, cervejas e gelados — nem faz uma pausa para evitar lembrar-se daquilo que aconteceu.
A proprietária do café conhecia as vítimas e o homem que disparou — todos eram presença habitual no seu estabelecimento. “Paravam aqui no caminho, quando iam tratar dos terrenos. Era aquela coisa de ‘bom dia e boa tarde’”, explica, enquanto conta que sempre achou Cesário, o autor dos disparos, “um homem calado”: “Guardava-se para ele, mas eu não sabia de qualquer ameaça nem discussões. Isso era lá entre eles”.
Na zona de mato que existe do lado contrário da estrada, estavam estendidos quatro cadáveres quando a PSP chegou. Um deles era o de Cesário, 60 anos, que depois de matar três pessoas com tiros de caçadeira, disparou sobre si. Nos últimos tempos, dormia numa barraca, num terreno próximo do local do crime, com os seus cães. Tinha-se mudado para ali desde que fora despedido da escola onde fazia segurança, mas mantinha o apartamento em que sempre vivera — propriedade do irmão — e que agora já nem eletricidade tinha.
No prédio, alguns vizinhos queixavam-se recorrentemente do cheiro que vinha de dentro da casa, dizendo que era comum encontrar carraças nas escadas. Sobre o autor do crime deste domingo, os vizinhos não escondem as queixas, bem como as memórias de não ser recetivo e nem sequer cumprimentar quem com ele se cruzava.
Na Avenida Belo Horizonte, eram muitos os curiosos que, ao longo de toda a manhã , quiseram juntar-se para saber o que se passara. Era o caso de Vera Moço, Isabel Tristão e Ana Viegas, que vivem junto à Avenida Belo Horizonte. Com olhares curiosos, comentavam entre si, num misto de espanto e choque, o aparato policial e a presença das câmaras de televisão.
Quem são as vítimas e por que razão estavam perto do sítio onde dormia Cesário?
Mário Andorinha, Alberto Almeida e Rui Duarte são os três homens que morreram esta manhã. Estariam ali, no Bairro da Bela Vista, porque era ali que tinham pombais e tratavam dos pombos-correio que iriam participar numa competição — dois deles, Mário e Alberto, eram praticantes de columbofilia; e Rui Duarte, que trabalhava na construção civil, tinha também ali uma horta e costumava fazer companhia, já que não tinha pombos, nem participava nas competições. Aliás, a presença destes homens junto da zona onde Cesário dormia era habitual, já que, além dos pombos, cultivavam também os terrenos próximos. E os domingos eram sempre iguais: acordavam cedo, iam até à horta, tratavam dos pombos e, às vezes, almoçavam por ali.
Para já, a Polícia Judiciária acredita que já teria havido desentendimentos por conta da criação daqueles pombos para competição e da presença dos cães de Cesário junto aos pombais, mas ainda investiga se terá sido mesmo essa a motivação do crime ou se existiam conflitos mais antigos.
São precisamente esses conflitos, que começaram há mais de um ano, que os vizinhos e as pessoas mais próximas apontam como o início da história trágica que terminou este domingo. Um deles é Tomé Viegas, de 75 anos, que é também criador de pombos e presidente da Associação Columbófila de Setúbal e que garante ao Observador não ter dúvidas de que o problema entre o homicida e as vítimas foi precisamente o facto de Cesário ter cães e não ter condições para os animais. “Ele tinha três cães ao pé de onde se criava os pombos e os cães passavam fome, porque ele não lhes dava de comer”, começou por contar, adiantando que, por isso, os animais “atacavam galinhas”, que também eram criadas ali.
Mas as dúvidas sobre as motivações que levaram a este crime são ainda muitas. Entre outros vizinhos, há quem defenda que o barulho provocado pelos cães de Cesário incomodava os praticantes de columbofilia, mas Tomé Viegas não concorda. “Os cães também faziam barulho, mas ninguém se queixava do barulho. Como não dorme ali ninguém, só dormia lá ele…”
Cesário escolheu as vítimas ou disparou sem critério?
O crime ainda está em investigação, como avançou fonte da PJ ao Observador, mas as pessoas mais próximas já começaram a montar as peças desta história. Algumas garantem que Cesário já sabia que pelo menos Mário Andorinha e Alberto Almeida estariam naquele sítio na manhã deste domingo. E Arménio Catarino, reformado e antigo militar da Marinha, que foi ao local já depois do crime, acrescentou: “Ele começou a ameaçar-me que um dia ia ali fazer uma tragédia”.
As ameaças a Arménio terão começado há mais de um ano, depois de uma desavença por causa da utilização dos terrenos: “Eu tenho ali um bocadinho de terra, tal como o senhor dos pombos tem ali um bocado de terra e outro senhor também. E eu pedi-lhe se podia semear um bocadinho de terra, atrás da barraca dele. Ele autorizou. Mas como ele viu que eu tinha uma boa produção de batatas e ervilhas e favas, entendeu que no inverno a seguir eu já não semeava”. A partir desse momento, Arménio e as restantes pessoas que tinham ali os pombais e as terras que cultivavam começaram “a desprezá-lo, a pô-lo de parte, mas nunca ninguém o tratou mal”.
Arménio Catarino diz acreditar que poderia ser um dos alvos de Cesário: “Vou sempre à horta de manhã deitar água nas alfaces, que isto nem tem poço, somos nós que trazemos a água nos nossos carrinhos. Mas hoje dava-me mais jeito ficar mais um pouco na cama. E quando cheguei aqui vejo este aparato. Ele sabe que aos domingos vinham sempre para aqui os amigos que fazem corridas de pombos”. Na vizinhança, ia explicando às pessoas o que tinha acontecido, dizendo ao mesmo tempo acreditar que escapara por pouco: “Se tivesse saído mais cedo…”
Mas os conflitos não ficavam por aqui. Também João, de 27 anos, que não quis revelar o seu apelido, relatou ao Observador um clima de tensão com Cesário ao longo do último mês, altura em que começou a tratar de um terreno no Bairro da Bela Vista, antes explorado pelo seu sogro. João diz que eram vários os problemas com Cesário — desde o barulho à destruição de terrenos pelos cães, que também matavam os animais dos vizinhos para comer.
“Os ânimos no bairro estão calmos”
Poucas horas depois de chegarem os agentes da PSP e os inspetores da PJ à Avenida Belo Horizonte, a comissária da PSP Andreia Gonçalves explicou aos jornalistas que o alerta inicial apontava para disparos de arma de fogo e que, ao chegarem ao local, os agentes encontraram os cadáveres das vítimas e do alegado agressor, todos homens, com idades compreendidas entre os 30 e os 60 anos.
Ao Observador, uma fonte da Polícia Judiciária acrescentou que uma das linhas de investigação passará por confirmar se problemas relacionados com os terrenos — onde além de hortas havia pombais para criação de pombos-correio para competição — poderão ter sido a motivação para o crime.
A PSP continuou durante várias horas com um forte dispositivo policial no local, apoiando o órgão de polícia criminal competente pela investigação, que é a Judiciária por se tratarem de crimes de homicídio. Mas as medidas de segurança prendem-se apenas com a prevenção, uma vez que, segundo Andreia Gonçalves, “os ânimos no bairro estão calmos e as pessoas estão colaborantes”.
Cuatro personas han fallecido en un tiroteo en la localidad portuguesa de Setúbal. Se desconocen por el momento las causas del suceso y una de las víctimas podría ser el autor de los disparos, que acabaría suicidándose antes de la llegada de la Policía https://t.co/62XCcPTAHR
— EL PAÍS (@el_pais) April 30, 2023
O crime, que chegou até a ser notícia em Espanha, no diário El País, foi testemunhado por algumas pessoas, adiantou ainda a mesma fonte, não havendo registo de “referência de situações anteriores” relacionadas com o alegado agressor.