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Chef Bruno Rocha, fotografado no Bairro Alto Hotel. Lisboa, 26 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Chef Bruno Rocha: "Assusta-me ver que há restaurantes que em dezembro têm cerejas no menu"

O chef do Bairro Alto Hotel é "cético" sobre o desperdício zero, acha que comemos "demasiado", e desconfia de cartas enormes. O seu sonho é o contrário: criar um restaurante sem menu.

Saímos do elevador no quinto piso. Do lado direito, temos a esplanada virada a sul — o céu está limpo, o sol reflete na água e o Tejo exibe a sua grandeza. Do lado oposto, observamos a cozinha aberta do BAHR, restaurante do Bairro Alto Hotel. O vaivém dos cozinheiros não se esconde entre as paredes — e é essa característica que nos permite observar que, acima das torneiras (com sensores, já agora), há sempre uma janela. Não estão ali ao acaso ou por uma questão meramente estética: estão lá para que estes colaboradores, durante o simples (e repetido) ato de lavar as mãos, possam olhar a vida lá fora. Não há de demorar muito até poderem usufruir dela. Os turnos estão bem estabelecidos e feitos para que haja espaço para a sua esfera privada, explica o chef Bruno Rocha, agora a solo na unidade hoteleira de cinco estrelas do Chiado, que contou com a direção criativa de Nuno Mendes — saiu, oficialmente, em maio para se dedicar ao seu Lisboeta recém-inaugurado em Londres.

Mantém-se a filosofia construída pela dupla: uma cozinha sem “gritarias”, sem “confusões”, que dá prioridade  à agricultura nacional e que só trabalha com o que a estação dá. Não tem vergonha em dizer “hoje não temos peixe” ou “aqui não servimos abacate”. A conversa com Bruno Rocha é longa, mas parte de uma efeméride: esta quinta-feira, 29 de setembro, celebra-se o Dia Internacional da Consciencialização sobre Perdas e Desperdício Alimentar.

Chef Bruno Rocha, fotografado no Bairro Alto Hotel. Lisboa, 26 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Chef Bruno Rocha, fotografado no Bairro Alto Hotel. Lisboa, 26 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Bruno Rocha, chef do Bairro Alto Hotel. Vamos andar um bocadinho para trás. De onde veio e como se fez o caminho até à cozinha?
É uma longa história. Eu sou lisboeta, toda a minha família materna é de Lisboa, e a do meu pai é da zona de Visão, são beirões. Dividi-me, até certa altura, entre Lisboa e as férias no norte do país. Tive sempre uma relação muito boa com estes locais. Mas a vida, entretanto, deu muitas voltas. Os meus pais separaram-se e a minha mãe acabou por ir para o Algarve e, a partir dos 16 anos, juntei-me a ela. A minha família tinha uma ligação grande com a cozinha — os meus pais trabalhavam nesta área, a minha avó também tinha um laço forte, o meu tio, que era padeiro, também. Por isso, eu cozinhava bastante. Fazia parte do meu dia-a-dia, mas nesta fase ainda não sabia que faria parte do meu futuro. Pensava em estudar jornalismo. Entretanto, acabei por entrar na Escola de Hotelaria do Algarve.

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Onde é que percebeu que, afinal, queria esta vida?
Queria conseguir rápido a minha independência — até fazia trabalhos como DJ. Contei à minha mãe que afinal ia enveredar pela hotelaria, mas disse que ia levar tudo muito a sério — disse-lhe que era até sair nas capas de revista. Tirei o curso, tive ótimas notas, apliquei-me muito. Fiz um bom estágio no Sheraton, depois no Vila Vita Parc, e foi aí que realmente percebi que queria mesmo trabalhar nisto. É um resort incrível, com uma qualidade e organização tremenda, com uma equipa enorme. Tudo isto me fascinava. Já era muito metódico e organizado, sentia-me como peixe na água. Acabei por assinar contrato aqui, ainda com um ano de curso pela frente. Estive lá oito anos até chegar à posição de sub-chef. Foi muito enriquecedor, cresci e aprendi muito. Mas, como disse à minha mãe, queria mais. Comecei a procurar um novo projeto e é ai que entro num projeto muito interessante: o primeiro hotel que o Grupo Espírito Santo, que era o Tivoli Vitória, atual Anantara. Entrei como sub-chefe executivo, passei a chef executivo. Encontrei o meu posicionamento no Emo, um projeto que, ao longo dos anos, arrecadou alguns prémios. Acho que é aí que a minha carreira dá uma volta muito grande.

Porquê?
Tive a oportunidade de trabalhar de perto com o chef Luís Baena, consultor de toda a cadeia, que tem uma paixão imensa pelo país e por pequenos produtores. A partir de 2011, começámos a andar pelo mundo, a cozinhar por todo o lado: Macau, Brasil, Espanha. Abriu-me muitas portas e mostrou-me que havia muito para explorar. Todo este tempo em que viajámos mostrou-me também que Portugal merecia que fizéssemos mais por ele, que devíamos dedicar mais tempo à nossa terra, à nossa cultura gastronómica. Nesta altura, a meu ver, ainda estávamos muito agarrados a uma cópia de Espanha e, posteriormente, nórdica. Seguíamos muito as tendências que iam acontecendo e não tínhamos o nosso próprio ADN.

Não tínhamos ADN ou não aproveitávamos?
Não aproveitávamos. Talvez não acreditássemos no valor da nossa cultura gastronómica. Mas houve chefs que ajudaram a elevá-la, a criar uma espécie de movimento — o José Avillez, Henrique Sá Pessoa, Vitor Sobral, Luís Baena, Justa Nobre. O projeto no Bairro Alto Hotel era particularmente interessante por estar no centro de Lisboa, por ter muita história e por ter espaço para trabalhar o nosso ADN gastronómico.

Já está aqui oficialmente a solo, num Bairro Alto Hotel sem Nuno Mendes. Em termos operacionais muda muito?
Não muda muito. O Nuno era o nosso diretor criativo, mas esse processo nunca foi impositivo ou imposto. Foi sempre levado com base no diálogo, numa direção em que todos concordávamos. Juntos, construímos este projeto e a sua filosofia. Foi muito enriquecedor. Revíamo-nos na forma de estar na cozinha, na forma como a cozinha tem de ser, sem gritarias, sem confusões, agarrada às pessoa, valorizando a opinião do outro. Saber respeitar, saber ouvir. Foi um período muito interessante. Dá-me muito gozo olhar para trás e ver tudo aquilo que fizemos. Agora, continuamos esse legado e essa filosofia que fomos construindo, que é baseada naquilo em que acreditamos. E temos tido muito sucesso.

Chef Bruno Rocha, fotografado no Bairro Alto Hotel. Lisboa, 26 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Mesmo com uma pandemia pelo meio e dois confinamentos. 
Sim. Fomos todos apanhados de surpresa. O hotel reabriu depois de dois anos de remodelações e, praticamente seis meses depois, levou o primeiro embate, o primeiro confinamento. O hotel não fechou enquanto não saísse o último cliente para o seu país, um último casal que tinha de apanhar o voo de volta para o Brasil — estivemos abertos dois dias só para eles. Foi muito duro. Esperámos mais de dois anos para reabrir o projeto e fomos apanhados no turbilhão. Mas acho que isso nos deu uma energia suplementar.

Energia suplementar. Podemos, apesar de todas as consequências para o setor da restauração e hotelaria, falar de um lado positivo provocado pela pandemia? 
Para nós, serviu para percebermos que estávamos no caminho certo. Sem sabermos que ia haver uma pandemia, tínhamos definido o projeto de uma forma que nos protegeu. Por exemplo: sempre desenhámos o projeto para trabalhar com pequenos produtores, para trabalharmos à carta e nunca com buffet. Rejeitámos sempre aquilo que considerávamos impessoal e que, acreditávamos, transformaria o hotel numa fábrica de comida e não num sítio com uma vertente mais pessoal, mais personalizada, com qualidade. A pandemia obrigou as pessoas a fazerem aquilo que já eram práticas comuns para nós, que eram aquelas com que sonhávamos desde 2016. Tiveram de retirar os buffets, tiveram de se virar mais para os produtos e produtores locais. A forma como estávamos a sonhar o registo hoteleiro e de restauração passava por mostrar Portugal, trazer os nossos produtores para a linha da frente, as pessoas que estão a fazer trabalho incrível em todo o país. Não nos faz sentido importar caviar, lagosta ou foie gras, quando temos tanto para mostrar. Acabámos por não ter de fazer grandes ajustes no projeto.

Serviu como um empurrão para valorizarmos o que é produzido cá dentro? 
Acho que o setor foi obrigado a isso. Sim, as pessoas foram empurradas e obrigadas a olharem para o País e a perceberem que o que estava à sua volta era o melhor. E isto aconteceu de várias formas. Basta pensar que havia regiões esquecidas, onde ninguém ia passar férias, e de repente havia pessoas a ir para o interior. De várias formas, redescobriu-se o país.

No dia da publicação deste artigo, celebra-se o Dia Internacional da Consciencialização sobre Perdas e Desperdício Alimentar. Por isso é que aqui estamos. 
Sim. Em primeiro lugar, é importante dizer que ainda é utópico falarmos em desperdício zero. O desperdício existe sempre — fico cético quando oiço alguém dizer que tem desperdício zero. O que há, ou deve haver, é uma consciência para o desperdício. E é isso que incutimos nas nossas equipas. Traz muitas vantagens: além da sustentabilidade ambiental, desperta a criatividade de quem trabalha na cozinha e valoriza o trabalho de quem dedica parte da sua vida ao campo e ao produto que nele nasce.

Como é que se vai plantar abacate numa região que vive uma extrema seca, que já está inundada de campos de golfe que são enormes sorvedores de água?

Com que ferramentas é que os projetos gastronómicos do Bairro Alto Hotel apontam para esta consciência? 
Primeiro e muito importante, o trabalho com os produtores nacionais. Trabalhamos muito, por exemplo, com o Hortelão do Oeste. O Miguel Neiva Correia, que é quem está à frente do projeto, deixou a cozinha, voltou à sua origem e hoje trabalha com a sua família em Torres Vedras. Passam dias e dias debaixo de chuva e sol para nos entregar produto. Temos de respeitar isso: há alguém a trabalhar afincadamente para nós, para nos dar o melhor que o país consegue produzir. Incutimos muito esse princípio do respeito e valorização pelo produto e produtores. Depois, o facto de só trabalharmos com o que é época faz com que tiremos o máximo partido dele, o que evita o desperdício. É a tal questão do despertar para a criatividade de quem cozinha. Se tenho tomate agora, vou explorá-lo ao máximo. Usar nas sobremesas, no prato principal, na guarnição. O tomate para nós tem uma diversidade tremenda. Aqui no Bairro Alto Hotel temos várias frentes por onde podemos distribuir estas componentes do produto  — o restaurante, o pequeno-almoço, o cocktail bar [o 18.68], a pastelaria, o refeitório do staff. Temos é de ter a capacidade de perceber que, quando terminar, terminou. Assusta-me ver que há projetos que em dezembro têm cerejas no menu.

E em termos energéticos?
Em termos energéticos também. Quando desenvolvemos o projeto, abolimos o gás. Somos 100% elétricos. Temos uma unidade de frio no topo do hotel, que produz energia — logo, todos os equipamentos que temos, do frigorífico aos congeladores, não têm motores o que também traz uma componente de conforto, porque não produzem calor e barulho nas cozinhas, o que nos permite trabalhar de forma mais calma. E essa energia ainda nos permite aquecer a água para os clientes poderem tomar banho. São alguns exemplos de como fizemos bastantes investimentos para tornar o projeto mais confortável e consciente. Também temos, por exemplo, sensores nas nossas torneiras. Criámos pontos de água no hotel e cada colaborador pode recolher água filtrada na sua própria garrafa. Incutimos a todas as nossas equipas que façam uma vida mais regrada, que comprem nas mercearias, nos mercados. Se na nossa vida pessoal formos capazes de fazer isso, vai ser muito mais fácil fazer para empresa — e vice-versa.

Este trabalho focado no sazonal e no local tem consequências diretas na relação com os hóspedes e com quem visita o Bairro Alto Hotel? 
Alguns clientes pedem-nos frutas tropicais e nós dizemos que não temos. O mais tropical que temos é o ananás dos Açores e banana da Madeira — também já começa a haver kiwis nacionais. É importante que as pessoas compreendam que há produtos que não crescem cá — e que, quando crescem, há um momento em que estão disponíveis e outro em que deixam de estar. Dou-lhe outro exemplo mais duro: nós não temos abacate nos nossos menus. A sul estão a dizimar campos para plantar o abacate, que tem um consumo de água absolutamente estapafúrdio. Como é que se anda a arrancar laranja para plantar abacate? Como é que se vai plantar abacate numa região que vive uma extrema seca, que já está inundada de campos de golf que são enormes sorvedores de água? Divido a minha vida entre Lisboa e o Algarve e sei que é assim. Não posso compactuar com isso. Isto são modas. Não compro para a minha casa, não compro para os meus clientes. Esse é um exemplo. Salmão fumado, que vem da Noruega, criado em tanques, cheio de antibióticos, também não temos.

Todos os dias abre um novo restaurante em Lisboa — e quase todos com a bandeira dos pequenos produtores. Parece uma tendência. Como é que vê isto?
É um pergunta polémica. Não quero ser duro, mas a meu ver esta também é uma moda. É um seguir de tendências. Agora, vem tudo de produtores e é tudo especial. Tenho algum receio, porque depois temos um gato por lebre. A pessoa vai a um determinado sítio e a coisa é diferente. É trendy, fica giro dizer que se trabalha com este ou com aquele. É uma moda com a qual se tem de ter cuidado.  Eu regulo-me por valores. O valor não pode ser um conceito, não pode ser uma moda.

Chef Bruno Rocha, fotografado no Bairro Alto Hotel. Lisboa, 26 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Há camadas da sociedade que não têm consciência do rasto ecológico (e de saúde) provocado pelas grandes cadeias. Como é que se contorna?
Isto é um processo educativo e tem de começar na origem, que é a escola. Uma criança com cinco ou seis anos consegue ser um embaixador destas causas, um emissor destas mensagens. O caso da reciclagem é um bom exemplo. Passei por isso: a minha filha estava na escola e chegava a casa com uma energia tremenda para separar o lixo. Portugal não é um campeão a fazer reciclagem, mas as pessoas, até os mais velhos, habituaram-se. E foram os mais novos a ensinar. O veículo mais interessante para passarmos esta mensagem também será sempre a televisão, porque chega a toda a gente. Isto de que falamos agora — toda esta consciência sobre o desperdício — tem de entrar na vida das pessoas da mesma forma que a reciclagem entrou. O sistema educativo e o Governo têm de ter um papel ativo. Não podemos é cair no ridículo de estarmos a apregoar que os miúdos devem comer maçã de Alcobaça para depois nos refeitórios se fazer de outra forma, porque têm orçamento mais curto.

Mas, por outro lado, são também camadas que não têm muitas vezes poder económico para comprar de outra forma. Comer bem é mais caro?
Ainda é. Mas há formas para contornar isso que têm que ver com ir contra alguns hábitos. Comprar na época certa já é meio caminho andando, porque economicamente é muito mais vantajoso. De alguma forma, não conheço muitos povos no mundo que tenham uma diversidade gastronómica tão grande o ano todo como nós. Comer melhor, ajuda-nos, a longo prazo, a poupar dinheiro no hospital e no médico. Além disso, temos de ser criativos. Nós temos um produtor que nos diz: “A vaca só tem um lombo e vocês são milhares de chefs.” É uma expressão engraçada, que exemplifica muito bem o ponto a que quero chegar. Uma vaca rende 600 quilos de carne e tem muitas outras componentes, mais baratas, para aproveitar. Porque não olhar para outras peças, ditas menos nobres, e servir isso?

No BAHR servem-se peças ou alimentos menos nobres?
Aqui já tivemos pescada no menu e um tamboril ótimo. Nós, enquanto cozinheiros, temos a obrigação de ensinar as pessoas a gostar de outras coisas, a comer os produtos nas alturas certas. Hoje é segunda-feira e, portanto, não vou receber peixe, nem quero. Porquê? Porque sei que se receber peixe hoje, no limite é de sexta. Estou a defender o cliente. Qual é o problema de dizermos que hoje não temos um prato? Quando não há, não significa que o restaurante seja mau. É o contrário. Uma coisa que me assusta imenso são menus enormes.

Alguma coisa tem de estar estragada. 
Sim. No meio daquilo tudo, alguma coisa está no linear de não podermos — ou devermos — consumir. Eu continuo a defender uma coisa que não estamos preparados (Londres e Paris, por exemplo, já estão): acho que os restaurantes não deviam ter menu. É um sonho meu e talvez um dia o concretize a título pessoal. Quando convidamos amigos para a nossa casa, nós comemos o que o anfitrião decidiu. E, vejo por mim e pela cultura portuguesa que gosta de receber e que é muito hospitaleira, quando recebemos pomos na mesa o melhor que temos. Se fazemos isso nos nossos lares, porque é que não fazemos nos restaurantes? Acho que é um caminho que resolve vários problemas, que fomenta aquilo de que falava há pouco: faz-nos diminuir o desperdício alimentar, faz-nos trabalhar mais perto dos produtores e estimula a criatividade dos cozinheiros. E não acho que mate os diferentes estilos. Posso fazer comida japonesa e ter esse perfil, posso comer comida italiana e é igual. Digo: hoje temos isto, isto e isto. Não é preciso olhar para o menu.

Acho que os restaurantes não deviam ter menu. É um sonho meu e talvez um dia o concretize a título pessoal.

Isso faz com que as pessoas tenham de estar mais abertas a comer o que não conhecem.
Exatamente. E isto faz parte do processo educativo de que falávamos há pouco. Ainda é utópico, mas eu sou defensor deste mundo. Se algum dia tiver um restaurante, gostava que fosse assim, que não fosse impositivo, que fosse generoso. A partir do momento em que criamos um menu, somos forçados a regras, a ter isto, a ter aquilo. É também por isso que sou muito defensor de menus curtos, mais rotativos e que deem sempre um estimulo para quem está sempre a trabalhar. As pessoas na cozinha ficam mais motivadas.

Então, também é forma de reter as pessoas num setor que está com um problema grande de recursos humanos.
Sim. Admiro um restaurante clássico que tem há 30 anos a mesma ementa. Mas todos os dias fazer o mesmo bife e o mesmo molho… Acho que as gerações que temos pela frente querem aprender mais e mais rápido. Estes menus rotativos — ou falta deles — seriam uma solução. Hoje, “sugam” um chef durante seis meses e vão para outro sítio, porque sentem que já aprenderam tudo e querem mais. É um exemplo de como se podem reter pessoas.

Disse-me que o facto de a cozinha só funcionar com um sistema elétrico também era melhor para o ambiente de trabalho na cozinha. As melhores práticas para o ambiente são as melhores práticas para as pessoas.
Sim. E só há pouco tempo é que os empresários tiveram consciência de que o bem mais precioso são as pessoas. Não é o imóvel ou a marca. Não é isso que nos permite ser mais ou menos felizes — as pessoas já não querem saber disso. As pessoas querem experiências de vida, querem qualidade de vida, tempo social, tempo para as suas famílias, querem um work-life balance perfeito. Querem tempo para si e não querem ser exploradas. E a pandemia obrigou os empresários a perceberem isso. Tratar bem não é só pagar bem. É dar condições, é haver preocupação genuína com a vida das pessoas. O massacre que está a haver na hotelaria e restauração tem que ver com isto — ou com a falta disto. Temos de dar ao colaborador condições, respeitar o tempo dele, para que ele esteja satisfeito no trabalho. É avassalador o que está a acontecer com a profissão.

Que outras ações poderiam ser implementadas naquele mundo em que os restaurantes não têm menu?
Acho que devíamos comer menos. Basta pensar no impacto que se registaria na produção animal se cada um de nós reduzisse 50 gramas na nossa alimentação — multiplicado por milhares de milhões, seria enorme. Ia permitir produzir menos em larga escala, o que equivale a menos consumo energético, menos consumo de água e uma pegada ecológica menor. Desde o início do projeto que temos as doses de proteína ligeiramente abaixo do normal. Também não promovemos de uma forma gratuita os hidratos — não temos o hidrato agarrado aos nosso pratos de proteína (exceto no arroz de carabineiro), ou seja, é opcional. Isso torna a experiência mais ligeira. Acho que comemos demasiado. Basta pensar nos almoços de família, no Natal, na Páscoa. É um exagero. Eu sei que é cultural, que é celebração, mas o que é que se faz com aquela comida toda? Sou defensor da nossa hospitalidade, mas de uma hospitalidade consciente. A nível mundial, 20 a 25% do que produzimos é desperdício imediato, é perda total, sem reaproveitamento possível. Isto assusta-me muito. Em Macau, eles têm o Ta Pao: nos restaurantes é hábito levarem os restos do que comem para casa — e comem mesmo no dia seguinte. Temos também um menu vegan à parte, uma experiência gastronómica completamente diferente, que começa a ter muita procura. E também acho que devíamos comer mais alimentos crus.

Chef Bruno Rocha, fotografado no Bairro Alto Hotel. Lisboa, 26 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Chef Bruno Rocha, fotografado no Bairro Alto Hotel. Lisboa, 26 de Setembro de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Considerando a nossa matriz gastronómica, criar um menu sem proteína animal é, em termos criativos, partir da estaca zero?
Sim. É algo em que estou a trabalhar ativamente e, em principio, este inverno vou ter de sair do país para ter uma formação profissional intensa no campo vegan, porque é muito mais difícil para um cozinheiro, habituado a extrair sabor de proteína animal, começar a extrair sabor de plantas. Acho que é a direção certa. Em Portugal, o vegetal nunca é a peça central do prato — apesar da nossa cultura agrícola riquíssima.

Sobre os alimentos crus, pode dar um exemplo?
Um exemplo típico: sardinhas. Os portugueses comem sardinhas assadas. Na minha casa gosto de comer sardinhas só marinadas, com sumo de limão, coentros, sal. Se vêm gordas, se estão frescas, se confiamos na pessoa a quem comprámos, ótimo. É bom trazermos isto para as nossas dietas.

Sobre o Ta Pao, esta tendência de levar do restaurante para casa também já se vai normalizando por cá, não acha?
Sim. Mas também há muito a cultura de desdenhar os restos. Mas qual é o problema? Em nossa casa não fazemos isso?

Quanto mais bem posicionado o restaurante, mais estranho é levar uma caixa com os restos para casa.
Ainda é verdade. Mas acho que são estas pequenas vitórias, estas mudanças de hábitos sociais, culturais, familiares, tradições — sem perder identidade — conseguimos, devagarinho, chegar lá. E começamos a injetar na sociedade uma preocupação para o fazer. Como fizemos com a reciclagem.

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