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Orson Welles tinha apenas 25 anos, mas era já uma lenda da rádio e do teatro, fora capa da Time, tinha feito o mítico falso direto da “Guerra dos Mundos” e encenado “Macbeth” apenas com atores negros

Getty Images

Orson Welles tinha apenas 25 anos, mas era já uma lenda da rádio e do teatro, fora capa da Time, tinha feito o mítico falso direto da “Guerra dos Mundos” e encenado “Macbeth” apenas com atores negros

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"Citizen Kane". 80 anos depois, este ainda é o melhor filme de sempre?

Esta não é uma discussão sobre maravilhas técnicas ou sobre se “Rosebud” é só um trenó ou algo mais. Esta é uma meditação sobre o incomparável sucesso de uma incomparável meditação sobre o fracasso.

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“And still”, gostam de murmurar os lutadores que detêm o título enquanto aguardam que o speaker anuncie quem venceu o combate. “The winner and still…”. Se disser estas palavras, nem é preciso ouvir as restantes: “… champions is…” fulano tal. Fazem-no meio por sacudir o nervosismo do momento, outro tanto naquela atitude gabarola de impor medo ao adversário que vem desde a pesagem e que agora que já não importa ainda não sabem travar.

São as palavras que vêm a memória agora que “Citizen Kane” – no título português, “O Mundo a Seus Pés” – faz 80 anos. 80. As palavras que imaginamos facilmente Orson Welles dizer, olhos fixos no speaker, no seu ar de peso-pesado de muitas artes. No cartaz original, lia-se, usando os truques do marketing de então: “Everybody is talking about it!”, para concluir em maior destaque: “It’s terrific!” “And still”, acrescentamos nós. Ainda é magnífico. Ainda estão todos a falar dele. Ainda é, possivelmente, o melhor filme de sempre (se ao menos existisse tal coisa).

Há, provavelmente, milhares, talvez milhões de artigos, posts, ensaios, trabalhos académicos, vídeos, documentários, entrevistas e afins a explicar porquê. O leitor interessado pode ir facilmente em busca deles e descobrir informação mais aprofundada e muito melhor explicada do que aqui poderíamos aspirar a rabiscar com tudo o que queria saber, mas tinha medo de perguntar sobre profundidades de campo, planos-sequência e uso do chiaroscuro. Aqui, estamos só plantados diante do mito. Esmagados. Olhando-o como quem mira uma estátua, o monumento que nos fez pagar avião e hotel para determinada cidade. Admiramos o colosso, como resiste ao tempo, quem o colocou aqui em primeiro lugar e quem levianamente passa sem lhe dar a devida atenção.

Sim, “Citizen Kane” é um Coliseu, uma Torre Eiffel, uma Mona Lisa, nada menos do que isso. Felizmente, não se conseguem tirar selfies ao lado de filmes (não de uma forma interessante, pelo menos) nem penduricar cadeados às bobines – que já não existem. Pudesse-se atirar moedas ao ecrã em busca de amor e Charles Foster Kane estaria ainda mais rico, mais cínico e mais triste.

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No tempo em que o melhor filme de sempre ainda era mau

Foi sempre assim? Sim e não. “Kane” saiu em 1941 logo com hype – e o hype ainda nem sequer tinha sido inventado. Orson Welles tinha apenas 25 anos, mas era já uma lenda da rádio e do teatro, fora capa da Time, tinha feito o mítico falso direto da “Guerra dos Mundos” e encenado “Macbeth” apenas com atores negros. Tinha a garantia de liberdade total por parte da RKO para fazer o filme que quisesse. O titã dos jornais William Randolph Hearst tinha já tentado impedir a estreia do filme devido ao rumor de que seria uma parábola da sua própria vida – e, em 1941 como hoje, não havia melhor campanha de promoção do que uma boa perseguição. Uma boa aura de maldito.

A verdade é que “Citizen Kane” estreou logo rodeado de críticas encomiásticas – o New York Times, por exemplo, já arriscava que estaria “perto de ser o mais sensacional filme alguma vez feito em Hollywood”. Foi o filme do ano para o New York Film Critics Circle e para a National Board of Review. Mas sói dizer-se que nem Jesus Cristo agradou a toda a gente. Há dias, o Guardian trazia a história: pelas profundezas do Twitter, alguém notou que, depois de anos de imaculada imutabilidade, o rating de 100% de críticas positivas de “Citizen Kane” no Rotten Tomatoes tinha baixado a cotação…

A Sight & Sound faz nova lista de 10 em 10 anos e, em 1962, “Citizen Kane” já era votado como melhor filme de sempre, repetindo a proeza em 1972, 1982, 1992 e 2002. Apenas em 2012 e não sem algum escândalo, descia do altar para o segundo posto, ultrapassado por “Vertigo”, esse novato de 1958, assinado por Alfred Hitchcock.

Mistério resolvido alguma investigação depois: algures entre 25 de fevereiro e 15 de abril, tinha sido adicionada uma relíquia ao site, uma crítica de 7 de maio de 1941, do Chicago Tribune, um dia depois da estreia da película na cidade. Lia assim: “’Citizen Kane’ falha no intento de impressionar a crítica como melhor filme de sempre”. Elucidativo. E depois: “É interessante. É diferente. De facto, é suficientemente bizarro para se tornar uma peça de museu. Mas o seu sacrifício da simplicidade à excentricidade retira-lhe qualidade e capacidade global de entretenimento.”

A crítica estava assinada por uma tal de Mae Tinee, mais do que certo pseudónimo de alguém que deve ao filme que não a impressionou a solitária razão de ser recordado em 2021. “Só sei que me dá arrepios e que estava sempre a pedir que deixassem entrar um pouco de Sol no filme”. A pobre Mae.

A canonização segundo a Sight & Sound

Bom, mas o senhor Hearst tinha mesmo poder. “Citizen Kane” não estreou sequer em metade das salas onde poderia ter estreado, não fez grande receita de bilheteira e acabou largamente batido nos Óscares pelo “How Green Was My Valley” de John Ford (a tradução portuguesa “O Vale era Verde” soa a uma espécie de Magritte para principiantes). 5-1, com a solitária estatueta para Welles a distinguir o argumento e a ser dividida com Herman J. Mankiewicz, como celebrado este ano pelo “Mank”, de David Fincher.

A história da verdadeira subida de Kane aos céus veio depois, ao longo dos anos 40, à medida que foi estreando e sendo aclamado na Europa, e depois, nos 50, quando a RKO se tornou um dos primeiros estúdios a vender o catálogo à televisão e o filme rodou indefinidamente pela caixinha mágica de milhões de americanos, impressionando, entre outros, os jovens olhares dos futuros movie brats, que haveriam de revolucionar Hollywood 10, 15, 20 anos depois.

“O Mundo a seus Pés” lidera o panteão do cinema há meio século e nada mais natural do que a vontade de o derrubar

A canonização oficial, porém, aconteceu num ano muito preciso: 1962. Dez anos antes, um concílio de 100 cineastas tinha-se reunido em Bruxelas para eleger os melhores filmes de sempre – apenas David Lean, realizador de “Lawrence da Arábia”, “Doutor Jivago” ou “A Ponte sobre o Rio Kwai” votou em Kane. Só que, meses depois, a Sight & Sound, bíblia dos cinéfilos publicada pelo British Film Institute, decidia reunir um conjunto de 85 especialistas e publicar a sua própria votação. “Citizen Kane” ainda não vencia – essa honra coube aos “Ladrões de Bicicletas”, de Vittorio di Sica – mas já se quedava mesmo à entrada para o Top 10.

O resto é História. A Sight & Sound faz nova lista de 10 em 10 anos e, em 1962, “Citizen Kane” já era votado como melhor filme de sempre, repetindo a proeza em 1972, 1982, 1992 e 2002. Apenas em 2012 e não sem algum escândalo, descia do altar para o segundo posto, ultrapassado por “Vertigo”, esse novato de 1958, assinado por Alfred Hitchcock, e esse sim, um mal-amado pela crítica à época de estreia. A lista completa, já agora, elaborada por 846 críticos, académicos, distribuidores e programadores é a que se segue:

“Vertigo” (Hitchcock, 1958)
“Citizen Kane” (Welles, 1941)
“Viagem a Tóquio” (Ozu, 1953)
“A Regra do Jogo” (Renoir, 1939)
“Aurora” (Murnau, 1927)
“2001: Odisseia no Espaço” (Kubrick, 1968)
“Desaparecida” (Ford, 1956)
“O Homem da Câmara de Filmar” (Vertov, 1929)
“A Paixão de Joana d’Arc” (Dreyer, 1927)
“8 ½“ (Fellini, 1963)

Para o ano, teremos, portanto, nova lista. Será que “Citizen Kane” recupera o ouro e prova que 2012 foi um momento de fraqueza? Ou “Vertigo” consolida uma sólida subida que já vinha fazendo desde o oitavo lugar em 1982, quarto em 1992 e segundo em 2002? “Viagem a Tóquio”, “A Regra do Jogo” e “2001” há décadas que também vão, paulatinamente, subindo de lugar em lugar. E, na votação paralela que a revista faz exclusivamente entre realizadores (358, para ser mais exacto), é “Viagem a Tóquio” quem lidera, com “Kane” a ter de se contentar em dividir o segundo posto com “2001”.

É a obra-prima no sentido original do termo: a obra que o principiante apresentava com vista à sua aceitação pela classe. É o primeiro filme de Welles e mostra todos os truques que aprendera na escola, sobretudo porque não sabia fazer mais nenhum. Mas fê-los tão bem e tão apaixonadamente como mais ninguém voltaria a fazer – nem ele.

A verdade é que a liderança e a previsibilidade cansam, fatalmente. “O Mundo a seus Pés” lidera o panteão do cinema há meio século e nada mais natural do que a vontade de o derrubar. O impulso, dir-se-ia freudiano, apenas lhe confirma o estatuto à parte. “Citizen Kane” até pode ser corrido do Top 10 (na votação do IMDb, feita pelos utilizadores e que continua liderada por “Os Condenados de Shawshank”, é apenas 96.º, atrás de… Bom, atrás de “Hamilton”, por exemplo. E muito atrás de “The Green Mile – À Espera de um Milagre”. E com isto consideramos encerrado o caso acerca do prestígio da votação do IMDb.) “Citizen Kane” permanece o colosso de que fugimos ou que decidimos enfrentar. Porquê? Bom, então, lá vamos mesmo ter de encarar a questão: porquê?

80 anos depois, o que é que Kane (ainda) tem?

Nicholas Barber, num artigo para a BBC em 2015, quando a BBC Culture votou também “Kane” melhor filme de todos os tempos, lembrava uma crítica do historiador francês Georges Sadoul logo em 1946: Kane não passava de “uma enciclopédia de velhos truques”. Apenas isso.

Talvez tivesse razão. A razão pela qual tantos estudantes de cinema veneram “Citizen Kane”, diz-se, é que foi feito por um. É a obra-prima no sentido original do termo: a obra que o principiante apresentava com vista à sua aceitação pela classe. É o primeiro filme de Welles e mostra todos os truques que aprendera na escola, sobretudo porque não sabia fazer mais nenhum. Mas fê-los tão bem e tão apaixonadamente como mais ninguém voltaria a fazer – nem ele.

Gregg Toland, experiente diretor de fotografia, foi mais do que uma ajuda preciosa em todos esses aspectos de que tratam os compêndios: a profundidade de campo dada pela pouca abertura das lentes e que colocava tudo em cena, como na pintura ou no teatro, em vez do habitual fundo desfocado para dar primazia ao rosto das estrelas. Planos longos, planos-sequência, com movimentos enérgicos, ligando assuntos e levando-nos para o interior da cena. Geniais momentos de montagem contando, em segundos, passagens de tempo de meses, anos e décadas (há quem diga que “Citizen Kane” é o único filme capaz de agradar a apoiantes da escola russa – a montagem acrescentando sentido – e francesa – planos longos e sequência para captar a verdade do momento). Uso e abuso de contrapicados para agigantar as personagens. O contraste do chiaroscuro expressionista emprestando sentimentos a tudo. Planos apertados, imagens superimpostas, a mesa que é cada vez maior à medida que Kane e a mulher estão cada vez mais distantes.

O cidadão Kane não é apenas Hearst, não é apenas Murdoch nem Trump nem outro contemporâneo que queiramos nele rever – é o próprio Welles, em autoprofecia

Será isso? Claro que não. Tudo isto ajuda, mas nada faria sem uma história, uma narrativa, uma personagem. E aqui entram, por fim, o citado Mank, veterano da escrita de muitas comédias nas duas décadas anteriores, e o trágico Welles, maior do que a vida.

“Citizen Kane” tem, em 1941, a frescura narrativa com que a maior parte dos contadores de histórias contemporâneos apenas parecem sonhar. Frenético, fragmentário, conta a história de trás para a frente e saltando de género em género: começa quase como filme de terror, negro e fantasmagórico (razão dos arrepios da senhora “Mae”), anda pelo registo documental, vai ao drama dickensiano e à farsa política e acaba em melodrama, sempre atravessado pela aura de policial em busca de uma resposta para o mistério “Rosebud”.

E, dentro de tudo isto, que habita? A história da ascensão e queda de um homem que teve tudo e nada, riquezas e riquezas acumuladas em caixotes num palácio e uma infância roubada; o jovem idealista e conquistador que termina um velho cínico e amargo, sem amor. A fazer dele, um extraordinário Welles, autor e ator da sua própria vida. O cidadão Kane não é apenas Hearst, não é apenas Murdoch nem Trump nem outro contemporâneo que queiramos nele rever – é o próprio Welles, em autoprofecia. O eterno insatisfeito, megalómano incompleto, o mais bem-sucedido fracassado de sempre.

Há quem diga que um só plano de “Citizen Kane” tem mais ideias do que muitos filmes. É provável. Mas a força magnética que continua a atrair-nos a todos para dentro dele 80 anos depois é outra: é a visão de um deus em decomposição. Um deus que, às vezes, somos nós.

Alexandre Borges é escritor e argumentista

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