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Claudio Magris tem envelhecido a olhar atentamente o passado e o presente. E é esta a premissa do "tempo curvo" que vão viver os cinco homens que protagonizam outros tantos contos que constituem o livro do autor recentemente publicado em Portugal

Getty Images

Claudio Magris tem envelhecido a olhar atentamente o passado e o presente. E é esta a premissa do "tempo curvo" que vão viver os cinco homens que protagonizam outros tantos contos que constituem o livro do autor recentemente publicado em Portugal

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Claudio Magris: "Impressiona-me que a História ainda próxima, de que somos feitos e que nos constitui, seja ignorada"

"O Tempo Curvo em Krems" é o mais recente livro de um dos maiores pensadores da actualidade. Aos 83 anos Magris, com um olhar e uma escrita cristalina, falou em exclusivo ao Observador.

Claudio Magris, 83 anos, escritor triestino, mais centro-europeu do que italiano, criador de um dos conceitos fundamentais para pensar a História e a Cultura da Europa do século XX, a “Mittleuropa”, autor de romances, contos, ensaios e crónicas, tradutor de alemão, é uma mina tantas vezes abandonada da literatura contemporânea. É preciso ser-se, porventura, um caminhante dessa “Mittleuropa” (que é a Europa do antigo império Habesburgo, mas que vai além desse território, sendo sobretudo um certo espaço cultural, social, filosófico), para se encontrar frente a frente com essa obra prima que é Danúbio — um livro inclassificável, de uma erudição e beleza que nos deixa sem fôlego, um livro-rio, que arrasta os leitores desde a nascente deste que é o maior rio europeu, até à sua foz no mar Negro.

É provável que quem leu Danúbio saiba como a obra de Magris é uma mina de cultura literária, histórica, política, de conhecimento, sensibilidade, capacidade de fazer ligações, encontrar nós e tramas que nos contam a velha Europa de uma perspetiva completamente nova. Danúbio é um tratado fundamental para conhecer a história do velho continente, sobretudo hoje, quando a guerra na Ucrânia faz ressoar de novo todos esses fantasmas nunca extintos que Magris tão bem percebeu: as guerras constantes, a “doença do antissemitismo”, para usar uma expressão do próprio, a herança greco-romana, ou seja o desejo de conquista, de expansão, de domínio dos outros povos, que origina o fascismo e as suas variantes, os vários totalitarismos sempre na iminência de irromperem a crosta do humanismo.

Comparado com outras obras, o breve livro de contos publicado pela Quetzal e intitulado O Tempo Curvo em Krems, pode revelar menos impacto. Porém, ele vem da mesma mina de sabedoria, cultura e capacidade de escrever com leveza que é Claudio Magris. Nenhum livro vindo dele se pode dar como dispensável. Este, pequeno livro, escrito sem que o autor imaginasse que, pouco tempo depois da sua publicação, a Europa voltaria a ter uma guerra no seu solo, é mais uma vez o escritor a pensar sobre essa Europa central e a sua história, nomeadamente as suas guerras, as coletivas e as individuais e como a memória é aquele mecanismo que incessantemente transforma o nosso passado e com ele, o nosso presente. Um acontecimento, um acidente no “agora” pode obrigar-nos a rever toda a nossa vida passada e a partir daí o nosso passado passa a ser iluminado, sentido, rememorado sob uma luz totalmente nova.

A capa de “Tempo Curvo em Krems”, livro de Claudio Magris publicado entre nós pela Quetzal

Este é o livro de um homem que envelheceu a olhar atentamente o passado e o presente. É esta a premissa do “tempo curvo” que vão viver os cinco homens que protagonizam outros tantos contos que constituem este livro. São homens que já viveram muitos anos, que intuem a proximidade da morte, mas sobretudo que  perceberam que o mundo ao qual pertenciam já não existe. De um tempo que acabará quando eles próprios desaparecerem. Esta perceção atira-os para um quotidiano, numa cidade (Trieste) onde todos eles chegaram vindos de outras partes da Europa, onde todos eles triunfaram, mas na qual já só podem sobreviver alimentando-se de memórias da infância, da juventude, dos amores perdidos para sempre, de sensações, aventuras, forças que um dia os fizeram partir em direção à grande cidade do Adriático, mas onde nunca  sentiram uma pátria.

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Neste O Tempo Curvo em Krems, Magris,volta aos temas transversais à sua obra: o desenraizamento, o exílio, o homem fragmentado pelas várias formas de poder de uma Modernidade, onde apesar de tudo nunca foi capaz de abolir a necessidade de estabelecer fronteiras entre ricos e pobres, entre o Norte e o Sul, entre vencedores e vencidos. Magris sempre foi um escritor dos vencidos da vida, dos homens inadaptados ao progresso, à velocidade, a uma certa ideia capitalista de “desenvolvimento”. Estes cinco homens, numa relação discursiva com o seu passado, pertencem quase todos a povos que a Europa sempre viveram nas margens e foram alvo de todo o tipo de violências ao longo dos séculos; judeus, cossacos, camponeses eslavos e balcânicos. Povos sem terra, à procura de uma pátria. Os estudiosos da obra de Magris chamam-lhe um “fenomenologista da desaparição”, e essa ideia cabe que nem uma luva neste novo livro, onde estes cinco homens tentam, cada um à sua maneira, desaparecer no anonimato.

Esta vontade de anonimato sente-se também no escritor que hoje dá entrevistas com muita relutância e muitas exigências. Quando o Observador tentou entrevistá-lo, Magris impôs como condição que falássemos apenas do livro e que a entrevista fosse feita em italiano (apesar de Magris ser poliglota e falar até um pouco de português). A entrevista que se segue foi feita por email e, como se pode ver, o escritor foi hábil em perceber todas as nossas tentativas de o puxar para assuntos exteriores ao livro. No email onde vinham as respostas vinha também a sua habitual gentileza, a memória da sua visita a José Saramago, em Lanzarote, da sua leitura de Camões e das suas memórias de uma viagem longínqua que fez pelo rio Douro, onde se inspirou para escrever um conto intitulado “O Conde”, que está integrado no livro Ilações Sobre um Sabre, de 1985. Este curioso conto é a história de um homem que vive, como um escravo, nas margens de um rio para apanhar os cadáveres dos suicidas que atravessam a propriedade de um poderoso conde.

"Hoje tudo passa e logo desaparece. Há quase vinte anos, alguns de meus alunos de uma faculdade americana onde lecionei e que estudavam História e Literatura, nunca tinham ouvido falar de Estaline. O modelo desse esquecimento muito rápido é o mercado, cujos produtos devem ser consumidos imediatamente."

Neste seu novo livro de contos, O Tempo Curvo em Krems, encontramos cinco homens velhos, exilados na cidade de Trieste, não devido à guerra, ao antissemitismo, à pobreza, mas exilados devido a uma sociedade que empurra para as margens os homens que envelheceram. Aos 83 anos, como interpreta este tempo de obsessão pela juventude, pelos corpos altamente produtivos, pela pressão do futuro?
Estou muito grato e particularmente feliz por este livro ser traduzido para o português. Uma cultura que, embora não seja um conhecedor especialista, eu amo muito. Já lia Camões com entusiasmo no liceu, também muitos capítulos da História trágico-marítima e dos grandes autores modernos. Eu era amigo de Saramago, que conheci em sua ilha pouco antes de sua morte, e me emocionei ao ver todos os meus livros na mesinha de cabeceira ao lado de sua cama. Sou amigo de Pilar [del Rio], que também me mostrou o grande centro de Lisboa, e também de [António] Lobo Antunes, que é muito generoso comigo. É curioso que o meu primeiro livro traduzido, além daqueles em alemão, tenha sido traduzido para o português, Inferências sobre um Sabre. Tenho também um conto chamado “Il Conde” que nasceu também de uma viagem pelo Douro. Respondendo à sua pergunta, o que mais me impressiona, em muitos jovens, é considerarem que o ontem já pertence a um passado esquecido, impressiona-me que a História ainda próxima, de que somos feitos e que nos constitui, seja ignorada.

As cinco personagens deste livro encontram como único lugar seguro, como refúgio, a rememoração continua da sua infância e juventude (por pior que tenha sido). Eles viraram as costas ao mundo e ao mar de Trieste e mergulharam numa profunda nostalgia que lhes alimenta os dias. O passado, que aprendemos a desprezar é, afinal, tudo o que temos?
Marin [Biagio Marin, poeta italiano] disse que o passado não existe, porque o que é significativo sempre permanece presente. A atitude do povo de Trieste em relação  à própria Trieste foi, sobretudo no passado, uma mistura de amor e rejeição, falando mal disso, mas sempre falando sobre isso. Isso hoje é um pouco menos válido; diz respeito ao passado, aos anos da minha escola secundária, quando Trieste ofereceu muitas ideias e interesses, mas pouca possibilidade material de realizá-los e forçou muitos, até mesmo escritores, homens de cultura, a deixá-la, continuando a falar dela sempre, mas sempre mal. Especialmente homens engajados em publicações e jornalismo. Os escritores, pelo menos os grandes da geração mais velha — como Umberto Saba ou Italo Svevo — permaneceram; outros como Renzo Rosso ou Quarantotti Gambini ou Tullio Kezich, foram embora. Outros chegaram, como Fulvio Tomizza.

Os homens exilados, inadaptados, ineptos, desejando inexistir, são transversais à sua obra. Nestes contos voltamos a encontrá-los. Mas agora o que os torna exilados é a velhice. A obsessão com o tempo, que sempre foi um problema para o Humano, parece ter encontrado neste século XXI o seu paroxismo. Estamos reféns da novidade, e tudo corre aceleradamente para a obsolescência, sobretudo os corpos. Que será do futuro sem o tédio, a lentidão, o devaneio?
Hoje tudo passa e logo desaparece. Há quase vinte anos, alguns de meus alunos de uma faculdade americana onde lecionei e que estudavam História e Literatura, nunca tinham ouvido falar de Estaline. O modelo desse esquecimento muito rápido é o mercado, cujos produtos devem ser consumidos imediatamente.

Claudio Magris

"Infelizmente, a Europa, na qual tanto acreditei, pela qual esperei e continuo a esperar, existe cada vez menos como unidade", diz Claudio Magris

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Podemos pensar que este mundo dominado pela tecnologia, pela pressão de futuro, pelo apagamento do passado, nas suas várias formas (cirurgias plásticas, prática desportiva, o triunfo dos corpos atléticos) como uma variação do mito de Fausto? O progresso é uma pacto que fizemos com o diabo?
Não, eu não acho. Não é o mito de Fausto, mas o mito do pós-homem, de seres não humanos, mas vivos, que agem e pensam, o que é muito perturbador.

Embora vivam todos na cidade de Trieste, que Claudio Magris, tornou um mito literário, todos estes homens arrastam consigo a história da Europa e das suas convulsões do século XX. Essa Europa tão marcada pela ideia de “fronteira”, vê hoje renascerem, por todo o lado, da extrema-direita, à extrema-esquerda, os nacionalismos, o antissemitismo. Será algum dia possível a Europa viver em paz. Nessa paz multicultural, multi-religiosa, zona franca, que a cidade de Trieste corporizou? Ainda que de forma não explicita, o seu livro, toca em todas estas questões.
Trieste não foi de forma alguma apenas uma cidade do encontro entre diferentes culturas e nacionalidades. Certamente foi isso também, mas também foi uma cidade de confrontos nacionalistas, especialmente entre italianos e eslovenos; uma cidade fortemente marcada pela cultura judaica, mas também pelo fascismo, que no início contava também com membros da comunidade judaica, como o famoso autarca Salem. Mas Trieste foi também o lugar onde Mussolini quis proclamar as leis raciais, o lugar da perseguição contra os eslovenos e a vingança destes nos trágicos dias da ocupação de Tito logo após a guerra, a cidade da Risiera di San Sabba, mas também dos massacres, dos Partisans jugoslavos contra as minorias dos italianos de Ístria e da Dalmácia, durante a II Guerra Mundial.

Qual a sua opinião sobre esta Europa do século XXI, com as suas migrações, as suas fronteiras fechadas, o seu eterno medo do outro, do estranho, a quererem reescrever uma versão mais limpa da história, derrubando estátuas, censurando livros…
Infelizmente, a Europa, na qual tanto acreditei, pela qual esperei e continuo a esperar, existe cada vez menos como unidade. Há alguns anos, uma reportagem da televisão italiana mostrou a Praça Velha de Varsóvia, a Rynek Starego Miasta, que os nazis destruíram e que foi reconstruida em pé de igualdade, cheia de neo-nazis e nacionalistas polacos com bandeiras e suásticas nazis. Foi há poucos anos.

"Como dizia Dante, nossa pátria é o mundo como o mar é para os peixes, mas à força de beber a água do Arno, Dante começou a amar Florença e à força de mergulhar no meu amado mar aprendi a amar Trieste."

Neste livro, as mulheres são sempre fantasmáticas e impossíveis; como Nori, uma espécie de Eurídice, ou as mulheres que deixam as suas vozes no atendedor de telefone automático. Em geral, na sua obra as mulheres são quase sempre figuras inatingíveis, a viverem num mundo que não é dado ao homem conhecer, entrar (de certa forma, como a Europa).
A presença feminina é grande nos meus livros, em muitas personagens que se tornaram ou reinventaram, como Luisa de Navarrete, uma mulher extraordinária do século XVI, protagonista de outro livro meu, Non luogo a procedere. [No conto “O Tempo Curvo em Krems”] Nori é a figura, concreta e simbólica, não só da feminilidade e do amor, mas também do tempo que muda o passado. O protagonista amou-a no ensino médio sem sequer poder aproximar-se dela, mas quando a conhece anos depois, ela fala com ele como se fossem amigos e, portanto, o passado — tema da Suábia — é transformado pelo que aconteceu em seguida. Outra figura feminina deste livro é, numa outra história, a atriz que interpreta na rodagem de um filme uma figura amada por uma personagem idosa que, no set, explica à atriz como ele se comportava entre rapazes e moças na época de sua juventude; e assim o velho vive uma experiência faustiana.

Aos 83 anos, com um pensamento construído por muitos caminhos, e contra muitas barricadas, é um pensador mundialmente reconhecido. Hoje há quem rejeite a figura do “Mestre”, como se não fossem sempre os outros que nos ensinam, que nos ajudam a organizar o caos da nossa experiência individual e coletiva. Quem foram os seus mestres?
Tive muitos professores, de Marin a Leonello Vincenti, meu professor de literatura alemã na Universidade de Turim, a Giovanni Getto, meu grande professor de crítica literária, e outros professores da mesma universidade. Mesmo do ensino médio, por exemplo, um professor de alemão bizarro, Carlo Tivoli, de quem também me lembrava. Mas também meus amigos e amigas, também colegas de escola e de classe, me ensinaram muito sem querer me ensinar. No entanto, também gostaria de nomear um padre, o padre Guido Poli, mas sobretudo meu pai e minha mãe, minha esposa Marisa e minha prima Viviana.

Fernando Pessoa escreveu “A minha pátria é a língua portuguesa”. O Claudio Magris nasceu em Trieste onde se falou alemão e depois italiano. Tornou-se  tradutor de alemão, um especialista na língua e na cultura da mittleuropa. Qual é a sua pátria?
Como dizia Dante, nossa pátria é o mundo como o mar é para os peixes, mas à força de beber a água do Arno, Dante começou a amar Florença e à força de mergulhar no meu amado mar aprendi a amar Trieste. Ou, como dizia Alberto Cavallari, meu grande amigo e grande jornalista e editor do [jornal italiano] Corriere della Sera, em momentos muito difíceis, temos muitas identidades, muitas pátrias, somos como bonecas russas, as matryoshkas: sou de Trieste, inclusive a maior identidade italiana, que está incluído no europeu, que está incluído no humano…

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