Reportagem em Madrid
Acabou agora a missa extraordinária que a paróquia marcou para conseguir receber todos os fiéis e cumprir a lotação de 30% imposta em locais de culto dos bairros madrilenos, confinados desde segunda-feira. São 10h45 e enquanto uma mulher anda de mala ao ombro a varrer, um rapaz passa com um aparelho desinfetante pelos bancos para deixar tudo limpo para a próxima missa. A igreja de Santos Justo Y Pastor, localizada no coração de Parla, que tem cerca de 20 mil habitantes, está entre dois dos locais assinalados pela Comunidade Autónoma de Madrid como os maiores focos de infeção pelo novo coronavírus. Mas o padre Jaime, responsável pela diocese, quer que ninguém sinta medo.
Antónia, na casa dos 70 anos, abandona a igreja toda aperaltada, de blazer vermelho e calça preta. Maquilhada, embora de máscara, cabelo arranjado, vai acompanhada das amigas Jesus e Erminia. “Não tenho medo, se tiver de apanhar, apanho em qualquer lado”, diz a voz de quem sofreu fechada em casa durante dois meses, em março e abril, quando a Covid-19 entrava em força na cidade e entupia os hospitais. “A minha irmã tem 89 anos e não sai de casa”, conta. “Tenho uma amiga que continua sem sair, só vai comprar o que precisa e volta logo a casa”, corrobora Jesus.
O medo ainda toma conta de muitos, sobretudo os mais idosos, mas há quem comece a tentar retomar a sua vida com todas as regras que isso implica. “Ao princípio, os idosos não vinham tanto, tinham medo. Agora já começam a vir”, constata o padre Jaime.
As três amigas abandonam o adro da igreja em passo apressado enquanto começam a chegar outras famílias para a próxima missa. À entrada há desinfetante em gel e, já nos bancos, assinalados com fita para que cada um saiba onde pode sentar-se, mantendo a distância de 1,5 metros, há um kit de desinfetante e de papel para quem queira usar antes de se sentar.
Uma missa sem coro e a primeira comunhão dividida em grupos e em dias
Hoje não há coro. As normas até o permitem, desde que a uma distância de 4 metros da assistência e do padre, mas o rapaz que normalmente toca guitarra vive num outro bairro e não pode deslocar-se ali. Nesta área só pode permanecer quem tenha residência ou quem vá trabalhar, precisando, para isso, de uma autorização escrita e assinada pela entidade patronal. A missa segue sem música, mas com os fiéis a respeitarem o que lhes é exigido. Na hora de comungar, formam-se filas ordeiras. Só diante do padre se tira a máscara e grande parte estende a mão para receber o “corpo de cristo”. Outros continuam a preferir que a hóstia lhes seja dada à boca. “No final, o padre dá-lhes, mas desinfeta as mãos a cada vez que o faz”, explica o pároco Jaime.
“Muitos tinham deixado de vir à missa e depois da quarentena voltaram a procurar-nos. Outros tinham pensado mudar, mas este período de reflexão fê-los ficar”, diz, sorridente, ao Observador, enquanto luta com a máscara, que ora põe ora tira, numa sala na sacristia onde nos conta como foram os últimos meses de pandemia.
Além de estarem a ser realizadas mais missas, um dia antes, no sábado, houve também cerimónias e uma primeira comunhão. Uma não, quatro. É que há cerca de uma centena de crianças que em maio deviam ter feito a primeira comunhão, mas que ficaram com o sacramento suspenso por causa da pandemia. Agora, a paróquia decidiu dividir as crianças em pequenos grupos para o fazer. Há uma semana foram quatro grupos de cerca de meia dúzia; esta semana foi igual e na próxima serão outros tantos.
Houve, porém, pais que preferiram esperar por outra altura. E crianças que tiveram de fazer a primeira comunhão noutros locais, porque vivem fora do bairro confinado e não podiam deslocar-se até ali, por causa das medidas de restrição. “Facilitamos tudo, não estamos aqui para criar problemas. Já bastam os problemas que as pessoas estão a atravessar”, afirma o padre Jaime, 38 anos, há nove à frente da paróquia.
A catequese só recomeçará em outubro, depois das cerimónias. Até lá, as catequistas mantêm o que fizeram na quarentena: contactam as crianças através do Zoom. “Até as mais velhas tiveram de adaptar-se e aprender a mexer com isso. Mas não exagerávamos, sabíamos que os pais já estavam fartos de Zoom por causa da escola”, explica o padre.
Outras das mudanças são as confissões. Os confessionários estão, por agora, encerrados e são usadas salas da igreja onde os párocos podem manter a distância adequada dos fiéis.
Bares podem ter 50% da lotação ocupada — e sem máscaras
Estas regras da lotação das igrejas estão em vigor desde segunda-feira, quando a Comunidade Autónoma de Madrid aplicou medidas mais restritivas a 37 bairros, cujas zonas são definidas pelos centros de saúde com uma taxa de incidência de 500 casos por 100 mil habitantes nos últimos quinze dias. E a medida foi estendia a onze outros locais na última sexta-feira. Antes, a regra era de 60% de lotação e chegou a ser de 75%, logo após a quarentena, quando os locais de culto reabriram. Agora, “a lotação permitida é menor do que nos bares, onde as pessoas podem tirar a máscara, não se percebe”, constata o padre, sem entender as razões. Nestas zonas, os bares têm uma limitação de 50% da lotação do espaço e não podem servir bebidas ao balcão.
“Aqui dependemos basicamente a cada semana das novas regras. Procuramos adaptar-nos, as pessoas podem vir sem problema e sem medo. Se tivermos de desinfetar mais vezes, desinfetamos mais vezes; se tivermos de multiplicar as missas, assim o faremos”, explica o padre, que, apesar de ter a igreja entre dois locais com maior concentração de casos de infeção, desconhece qualquer caso positivo neste momento.
No entanto, em março, quando a igreja teve que fechar portas, foi ele próprio que ficou doente. Descobriu-o precisamente uma semana antes de ter sido decretado o estado de alarme em Espanha, a 14 de março, obrigando todos os espanhóis a recolherem-se em casa, só podendo sair uma pessoa por agregado familiar para ir às compras. Só numa segunda fase as pessoas puderam começar a fazer os chamados passeios sanitários, mas por horas, consoante a idade. Até à liberdade, que agora está novamente restringida.
O padre Jaime foi um dos primeiros infetados na paróquia
Jaime começou a sentir grandes dificuldades em respirar, foi ao hospital e testou positivo. Acabou por ir para casa tratar-se. No fim de semana tinha tido muitas atividades da paróquia, tinha comunicado com muitas pessoas, “numa altura em que ainda se dizia que isto não era nada”. Ele sentiu o que era. E o facto de ter ficado doente, obrigando a fechar as portas da igreja, fez com que muitos fiéis respeitassem o que aí vinha. “Sei de algumas pessoas que se contagiaram e que provavelmente estiveram comigo, mas eu também me contagiei”, afirma.
No bairro há também uma comunidade católica chinesa, que se fechou imediatamente em casa. “Houve pessoas que abandonaram mesmo o país e não mais voltaram e muitas lojas propriedade de chineses que fecharam”. Estas duas realidades fizeram com que a esmagadora maioria dos fiéis cumprisse as regras. “É um bairro onde vivem muitas famílias de imigrantes, que partilham casas muito pequenas. Dois meses fechados foi muito duro e houve muitos problemas familiares”, afirma, sem entrar em pormenores.
O padre lembra-se do caso caricato de uma família numerosa que vivia numa habitação ínfima quando um dos familiares morreu em casa com Covid-19. “Vieram todos para a rua, porque não podiam estar em casa. E a polícia chegou e abordou-os porque não podiam estar na rua!”.
Cada vez mais famílias procuram apoio da Igreja e há funerais meses depois da morte
No lado esquerdo da igreja há um edifício, tipo armazém, fechado. É ali que funciona o serviço da Cáritas. “Houve um aumento de famílias a procurar apoio”, diz, sem saber precisar quantas, mas com a certeza de que houve famílias inteiras a ficar no desemprego. “O pai, a mãe, os filhos”, conta para mostrar o desespero de muitos. “Há mais gente com uma situação social mais grave, mas também há mais solidariedade, pessoas que dão comida para ajudar os mais desfavorecidos”
Termina mais uma missa e o padre Jaime está à porta da igreja. Uma mulher aproxima-se e pede-lhe se pode celebrar um funeral de um familiar seu. Desde que a igreja fechou que os funerais se reduziram. As normas das autoridades sanitárias limitavam o número de pessoas e, além disso, muitas pessoas acabaram por não ir aos funerais por sentirem medo, sabendo que podia também haver nos mesmos locais enterros de vítimas de Covid-19.
Ainda assim, os sacerdotes tentavam estar sempre presentes. Assim que abriram a paróquia foram celebrados muitos funerais, o próprio bispo optou por fazer um diocesano e outro para as paróquias, para assinalar as mortes aqui ocorridas. Nos meses de junho e julho houve uma redução, mas em agosto os números começaram novamente a escalar, com muitas pessoas a não conseguirem despedir-se dos seus familiares. “As pessoas querem celebrar uma missa com tranquilidade, querem virar a página. Há muita gente que não se despediu, que disse adeus de uma forma muita fria, e é preciso passar por esse processo”, justifica. Por isso, há cada vez mais fiéis a pedirem uma cerimónia fúnebre, mesmo que passados meses depois da morte. Precisam disso para conseguir tomar conta da dor da perda.
Outros morreram sozinhos. O padre Jaime estava em casa quando lhe começaram a chegar notícias de pessoas que estavam a morrer sozinhas em casa. “Ainda me ofereci para estar com eles, mas eu também estava infetado”, conta. Acabou por ser a companhia de um colega, que também acabou por morrer. “Foi um drama muito grande”.
“A grande dor deste vírus é perder aquilo que é mais humano, um abraço, o contacto, necessitamos disso. É humano, a pandemia não é o nosso modo de viver.”