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Como é triste viver 30 anos sem os Smiths

Este é um texto sobre o fim dos Smiths, trinta anos de orfandade em que passámos a ter de ser homenzinhos e perceber as nossas próprias emoções, porque deixámos de ter quem as entendia e musicava.

Estou certo de que à conta disto vou ser acusado de pedantismo, mas também que se dane: a verdade é que não é treta que eu só tenha descoberto os Smiths graças ao amor pelas palavras. Nesse dia, recordo, uma linda moça passava de bicicleta por um rapaz aleatório e este chamou-lhe “borrachinho”, forma etimológica de desginar “tesuda” nos idos de oitenta. Ela deu meia volta, abeirou-se do sujeito e respondeu-lhe com uma palavra em alemão, entregando-lhe de seguida um dicionário e desaparecendo posteriormente, como um prémio de lotaria levado pelo vento quando estamos quase quase quase a agarrá-lo.

Recordo-me de, perante “aquilo”, o meu coração disparar, o corpo começar a suar, de sentir uma espécie de formigueiro a apoderar-se dos membros, um frémito que eu não sabia como acalmar. Compreendam: eu tinha 12 anos. Até àquele instante em que a rapariga andou para trás e para a frente na sua bicicleta nunca havia estado apaixonado.

Ou mais especificamente: até ouvir a cantilena que ressoava em fundo, um saracoteio de guitarras lânguidas encimado por uma voz lasciva e simultaneamente cómica. Sem exagero: no instante em que ouvi aquela cantiga a minha vida nunca mais foi a mesma. Não foi muito melhor, note-se (era uma longa conversa); mas nunca mais foi a mesma.

Convém explicar que o que estou a descrever, toda a cena da moça e do piropo é um anúncio a dicionários que passou pela televisão ali circa 1987 — e não fica mal realçar que não me apaixonei pela rapariga na bicicleta mas sim pela canção; e quando acabei de ver o anúncio pela primeira vez senti uma necessidade obsessiva de saber o que era. Só muitos anos depois vim a saber que se tratava de uma cantiga chamada “This Charming Man”, mas o nome da banda, esse descobri-o em poucos dias: The Smiths.

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Portanto, in a way, descobri os Smiths graças ao amor pelas palavras. Embora na realidade os tenha descoberto graças ao tédio suburbano de quem não tem absolutamente nada para fazer excepto ver TV — nem que sejam os anúncios.

Eu teria uns 12 anos e a partir daí passei a ter companhia, amigos, uma família — se é que uma banda que já se tinha separado conta como companhia, amigos ou família.

Epá, deixem-me ser completamente honesto: não sei se eles já se tinham separado já que não estou minimamente certo da data exacta desse anúncio na TV; a idade pesa e ou penso no que o meu puto tem de levar na mochila no dia seguinte ou me lembro destas ninharias. Também recordo que já conhecia os Smiths, pelo menos alguns singles, aos quais, por alguma razão, não havia prestado a devida atenção — mas foi aquela cantiga, naquele anúncio, que escancarou aos meus ouvidos tremenda beleza do quarteto de Manchester.

Os Beatles? Como assim?

Os Smiths, pessoas com menos de 40 anos, foram a maior banda pop de todos os tempos, banda que se separou no dia em que saiu Strangeways Here We Come, o seu último disco de originais — que fez 30 anos a 28 de setembro. Isto, no limite, pode significar que os descobri mesmo antes de se finarem — como se Morrissey dissesse “Ah, não, se este bacano agora quer ser um dos nossos acabo já com isto”. Peço, portanto, desculpa a todos.

Este é um texto sobre o fim dos Smiths, e por consequência trinta anos de orfandade, trinta anos em que passámos a ter de ser homenzinhos e perceber as nossas próprias emoções porque deixámos de ter os Smiths para entendê-las e musicá-las. Este é um texto que devia ter saído há uns dias, na data em que se comemoraram os ditos 30 anos — mas eu estava demasiado deprimido para acabar o texto. Parece apropriado.

Nem sei por onde começar, inclusive porque nunca hesito em hesitar (linda rima). Devo dizer que os Smiths são a maior banda pop de sempre e que, por favor, não me aborreçam com os Beatles? Isso é óbvio: mais ninguém entrou pelo mundo das pessoas que parecem viver com uma mordaça com tantas e tão extraordinária canções em tão pouco tempo. Mais ninguém pôs multidões a cantar tão despudoramente uma interioridade dorida mas nunca lamechas, mais ninguém oscilou desta forma entre o hiper-romantismo e a misantropia, mais ninguém marcou tantos músicos geração após geração.

Johny Marr era um baixote ensimesmado que tinha jeito para o futebol e chegou a ser observado pelo Manchester City (antes do City ser uma equipa poderosa); Morrissey era um outcast, um indivíduo isolado e obcecado pelos New York Dolls e por cantoras francesas.

Ainda hoje, quando definimos o que uma banda indie deve ser é para os Smiths que olhamos até porque, e apesar do tremendo sucesso, eles inventaram o indie-rock.

Tudo isto parece altamente improvável quando olhamos para a fundação da banda: Johny Marr era um baixote ensimesmado que tinha jeito para o futebol e chegou a ser observado pelo Manchester City (antes do City ser uma equipa poderosa); Morrissey era um outcast, um indivíduo isolado e obcecado pelos New York Dolls e por cantoras francesas.

Os gostos de ambos não podiam, aparentemente, estar mais longe dos requisitos pop da época: apesar de ambos terem uma certa predilecção pelo punk, a paixão era devotada a vozes femininas hiper-melódicas, como as das Crystals, um girl-group manipulado por Phil Spector, ou de Sylvie Vartan.

Ambos eram fascinados por figuras bigger-than-life, os James Dean (mais ou menos obscuros) deste mundo — um fascínio que aliás marcou visualmente as capas dos discos.

Mas, acima de tudo, ambos, apesar do seu comportamento contido, tinham uma vontade indómita de tomar o mundo, porque Manchester era demasiado pequena, não geograficamente, mas tacanhamente. E esse é o ponto fundamental para entender os Smiths: a sua música ultra-melódica, pejada de volteios, era propensa ao excesso que Morrissey não se coibia de oferecer cantiga após cantiga, ciente de que os sonhos de um adolescente não têm freios. Dito de forma mais simples: tanto um como o outro sabiam que as canções são a única forma de adolescentes ensimesmados saírem de si mesmos, reconhecerem que há outros que sentem e pensam o mesmo, a única forma de vencerem uma espécie de sensação de sufoco e menoridade comum a quem cresce em terras pequenas.

Humanos que queriam ser amados

Aos 13 anos o suburbano ensimesmado que dava pelo nome de Johny Marr já tinha um domínio absurdo da guitarra; aos 18, quando lhe falaram num vocalista chamado Steven Patrick Morrissey, já criara quatro bandas semi-profissionais. Não ia ser outra coisa senão músico. Não ia ter horários. Não ia ter patrões. Ia ser uma estrela. Mas não queria ser “A” estrela, queria ficar atrás do vocalista.

Marr bateu à porta de Morrissey, que abriu, e os dois passaram as horas seguintes a falar de singles, filmes, livros. Nascia a maior banda pop de todos os tempos.

Se por acaso estiverem a pensar que, pelas descrições que vou fazendo, os Smiths parecem um manual de auto-ajuda musicado, deixem-me dar-vos um pouco de sociologia cultural: auto-ajuda é para os iletrados; quem leu Faulkner aprecia objectos que reflectem uma sensibilidade rara.

Onde outros temeriam o ridículo, Morrissey avançava para ele sem receios. Quem mais escreveria isto:

“And if a double-decker bus
Crashes into us
To die by your side
Is such a heavenly way to die

And if a ten-ton truck
Kills the both of us
To die by your side
Well, the pleasure – the privilege is mine”

Ou então, quem mais escreveria isto:

“ I know it’s over
and it never really began
but in my heart it was so real
and you even spoke to me and said:
‘If you’re so funny
then why are you on your own tonight?’”

Pode haver quem ache isto sentimental, mas a verdade é que miúdos ensimesmados, não muito seguros, que cada vez que falam com uma catraia sentem que a aborrecem e posteriormente preferem enfiar-se no quarto a ler a voltar a passar a humilhação de terem de lhe dirigir a palavra — este tipo de putos sente este tipo de coisas e Morrissey deu-lhes voz.

Assim começa a entender-se o impacto dos Smiths. Oucam com atenção “I know it’s over”, que é tudo o que título deixa antever. Quantas bandas, meia-dúzia de anos depois do punk, quando a pop se plastificava cada vez mais, arriscaria guitarras dedilhadas numa sequência de acordes complexa, uma barreira de violinos e a voz naqueles gorjeios de complicada flor que fecha uma miríade de pétalas sobre si mesma?

Esse é um dos fascínios dos Smiths: eles não soam a mais ninguém. Sim, há laivos de Byrds nos trinados da guitarra, certo, Morrissey tem qualquer coisa de crooner (ou diva crooner). Mas eles não soam a mais ninguém. Podemos até afiançar que foram eles a definir o som indie, das guitarras jangly, dedilhadas.

Esse som estava presente no primeiro single, “Hand in glove”, cuja capa mostrava George O’Mara, nu, de costas, num assomo homoerótico muito raro para a época. Morrissey sempre foi bastante reservado em relação à sua homossexualidade, e nunca tentou rebater os insistentes rumores de que seria virgem. Mas também nunca teve medo da iconoclastia.

Os três primeiros singles dos Smiths não venderam mal — mas o primeiro LP, homónimo, de 1985, foi ao primeiro lugar do top. Há boas razões para isso — nomeadamente extraordinárias canções: “Reel around the fountain”, a estupenda “Still il”l, “What difference does it make”. Não eram canções de aprendizes, eram canções de uma banda feita, adulta — foi assim que os Smiths surgiram. Não houve aprendizagem, não houve passos em falso, não houve um caminho ascendente: uma das razões pelas quais os Smiths tiveram tamanho impacto é que quando gravaram o primeiro disco já tinham material para dois ou três álbuns soberbos. Não precisaram de crescer em público: chegaram gigantes e foi o público que teve de crescer para atingir a dimensão deles.

Esta luz não se apaga, não

The Smiths chegou ao segundo lugar das tabelas de vendas inglesas, como se os putos que não eram cool, que não eram convidados para as festas, que não sacavam a garota, que não tinham confiança tivessem de súbito tomado o poder. É que os putos inseguros também tinham mesada. E finalmente tinham onde a gastar.

O melhor disco de originais dos Smiths será The Queen Is Dead, de 1986 (eles editaram quatro álbuns de originais, ao ritmo de um por ano), uma obra-prima absoluta onde se incluem cantigas como “Bigmouth strikes again” ou “There is a light that never goes out”.

Mas no intervalo dos LPs, os Smiths continuavam a lançar canções. Quem, na completa posse das suas faculdades mentais, lançaria em single fora de qualquer álbum, um tema como “Heaven knows I’m miserabel now”? Ou “How soon is now”?, um dos mais extraordinários temas pop da história e um manifesto de como tocar bem guitarra?

Talvez por isso possamos dizer que o melhor disco dos Smiths ou é a compilação The World Won’t Listen ou então a compilação Hatful of Hollow. Porque só nessas compilações encontramos os singles — e eles sabiam o que era o poder de um single, porque ouviam música na altura em que uma banda punha a vida toda numa canção.

Compondo a uma velocidade absurda, os Smiths tomaram as tabelas de vendas do mundo ocidental, com os seus concertos emocionais em que Morrissey dançava em tronco nu, com flores enfiadas no bolso de trás das calças. Eram mais que concertos, talvez mesmo uma comunhão de almas atiradas para escanteio, que ali iam para descobrir outros iguais.

Rapidamente Morrissey transformou-se no blasfemo confessor das indizíveis verdades internas que todos sentíamos mas não tínhamos coragem de confessar. “I am the son and the heir of a shyness that is criminarly vulgar”, cantava em “How soon is now?”, e todos os tímidos do mundo entendiam exactamente o que ele estava a dizer — quando uma garota bonita nos dirigia a palavra e nós embasbacávamos, sem piar, olhos no chão, rubor na face, porque obviamente ela não poderia gostar de nós, como poderia se eu sou eu.

Todo o universo juvenil do ensimesmamento literato ficou definido naqueles quatro anos. Johny Marr encheu-se de álcool e cocaína; Morrissey tornou-se cada vez mais diva e despedia manager atrás de manager. Nessas alturas era sempre Johny Marr quem tomava conta da banda. Poucos dias antes da saída de Strangeways, Here We Come voltou a acontecer e, aos 23 anos, Marr sentiu-se cansado e farto — abandonou (talvez tivesse uma consulta).

Talvez tenha sido melhor assim: os Smiths ficaram com uma discografia sem mácula, nós temos as canções que funcionam como mapa da entrada na idade adulta, como catálogo de dores. Mas por vezes é difícil não pensar que tudo teria sido mais fácil se eles ainda andassem por aí a explicar-nos como se põe um pé à frente do outro ou se diz adeus.

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