Entre os argumentos que apresentou para se defender dos 13 crimes de violação de correspondência ou telecomunicações, devassa da vida privada e ofensa a pessoa coletiva, por ter divulgado os e-mails do Benfica no Porto Canal, o diretor de comunicação do FC Porto recorreu a um que provocou alguma estranheza ao tribunal. Francisco J. Marques alegou que, além de ter tido o cuidado de selecionar os e-mails para não devassar a vida íntima dos envolvidos, colaborou com a Polícia Judiciária — tendo entregado tudo o que lhe chegou em, pelo menos, dois encontros pessoais no Porto e em Caxias, contribuindo assim para a investigação ao alegado esquema de corrupção de árbitros pela SAD do Benfica.

No seu requerimento de abertura de instrução, Francisco J. Marques contou que entre junho e julho de 2017, dois meses depois de o Porto Canal começar a vazar informação dos e-mails do Benfica no seu programa “Universo do Porto – Da Bancada”, encontrou-se, pelo menos duas vezes, com a PJ — uma no Porto e outra perto da prisão de Caxias, para fornecer os e-mails que tinha recebido. A terceira entrega terá sido feita remotamente através de um acesso à distância da PJ ao seu computador. Ainda segundo o então responsável pelo Porto Canal, a PJ tinha-lhe dito que essa informação ficaria “fechada num cofre” dada a sua sensibilidade.

Perante esta informação, o juiz Carlos Alexandre, que dirigiu a fase de instrução do caso — e que decidiu esta semana que tanto Francisco J. Marques, como os co-arguidos Júlio Magalhães e Diogo Faria vão a julgamento —, quis perceber os contornos destas entregas e chamou ao tribunal para prestar declarações dois responsáveis da PJ, Pedro Fonseca e José Sacramento Monteiro. Carlos Alexandre queria esclarecer sobretudo porque é que a polícia esperou dois meses após o início da divulgação dos e-mails para agir, em que moldes foi combinada a entrega da informação e o que é que a polícia fez com a mesma, apurou o Observador junto de fonte judicial.

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Os dois testemunhos foram recolhidos na manhã de 9 de fevereiro. Depois de vários exercícios de memória, por terem passado já cinco anos, e somando o depoimento de ambos, percebeu-se que o processo a que Francisco J. Marques se referia teve início numa queixa anónima feita a 8 de junho no site da Procuradoria Geral da República. Nessa denúncia, chamava-se a atenção para uma notícia do jornal O Jogo, que tinha por base o programa dirigido por Francisco J. Marques no Porto Canal, na qual se revelava um conjunto de e-mails trocados entre o ex-árbitro Adão Mendes e o antigo diretor do Benfica TV, Pedro Guerra, suspeitando-se de um esquema de corrupção.

Entrega de e-mails no Estádio do Dragão

Depois de um primeiro contacto informal, Pedro Fonseca e José Sacramento Monteiro deslocaram-se ao Porto para interrogar Francisco J. Marques. Essa inquirição foi feita nas instalações da PJ do Porto e o responsável de comunicação do FC Porto mostrou-se disponível para fornecer tudo o que tivesse. No entanto, as entregas foram feitas já fora dali para serem “discretas”, como explicaram os polícias. A primeira acabaria por acontecer a 27 de junho no Estádio do Dragão, quando Francisco J. Marques entregou uma pen com uma parte dos e-mails que tinha recebido. Dois dias depois, o encontro seria mais a sul: os elementos da Unidade Contra Corrupção, de Lisboa, encontraram-se  com Francisco J. Marques já perto de Caxias, junto à Cidade de Futebol, precisaram.

A terceira entrega foi feita virtualmente para evitar deslocações. O diretor de comunicação do FC Porto disse que entraram no seu computador remotamente. Mas José Sacramento Monteiro, que teve algumas dúvidas em explicar a forma como foi feita esta entrega, falou na partilha de um link para lhe enviarem a informação.

O juiz Carlos Alexandre quis saber então o que foi feito depois disso. José Sacramento Monteiro lembrou que não podiam fazer muito com aquela informação, porque tinha sido obtida de forma ilícita, mas que o facto de a mesma ter sido depois trabalhada por vários órgãos de comunicação social lhes permitiu começar a investigação.  No entanto, quando tentaram avançar para o terreno, tal não foi possível. Corria já o mês de setembro e o juiz de instrução a quem a PJ pediu que fossem buscas às instalações do Benfica, ao gabinete e residência do então presidente do clube, Luís Filipe Vieira, e do assessor jurídico, Paulo Gonçalves, e à casa do comentador e antigo diretor de conteúdos da BTV, Pedro Guerra, não autorizou. Argumento: a investigação assentava em provas recolhidas ilicitamente.

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José Sacramento Monteiro não conseguiu explicar ao tribunal porque é que só dois meses depois de o Porto Canal estar a divulgar vários e-mails do Benfica, aparentemente conseguidos de forma ilegal, é que chegou à fala com Francisco J. Marques. No entanto, admitiu que chamou a atenção do responsável para o facto de a divulgação daquela informação poder prejudicar a investigação e de que facto esta seria selada e guardada. Ainda assim, os e-mails do Benfica continuaram a alimentar vários  programas nos meses seguintes. O que para Carlos Alexandre podia ter sido evitado, até porque os polícias tinham outras formas de obter a informação e de fazer cessar os programas televisivos sobre o tema, lembrou nesta sessão — sendo até esta uma forma de preservação da prova. Sacramento Monteiro disse que não viu nada do que estava nas pen, até porque entretanto pediu para mudar para outro serviço.

O processo que foi aberto em junho de 2017 ara investigar um alegado esquema de corrupção de árbitros pela SAD do Benfica continua em investigação e em segredo de justiça cinco anos depois.

Os e-mails triados… e descontextualizados

Um outro argumento de peso que Francisco J. Marques usou para se defender foi a pré-seleção que fez do acervo de 20 gigabytes de e-mails que recebeu, não só de acordo com o interesse público e por poderem denunciar crimes de corrupção no futebol, mas também tendo em conta a devassa da vida privada — deixando assim de fora assuntos respeitantes à vida intima, familiar e sexual das pessoas neles referidas. E deu como exemplos dados pessoais de árbitros, das suas mulheres e das suas amantes.

Em sua defesa, o advogado de J. Marques explicou que a divulgação dos emails “censurada penalmente pelo Ministério Público foi em tudo semelhante a muitos outros casos de divulgação pública, do teor de correspondência eletrónica”, dando como exemplo o Panama Papers, o Football Leaks, o Luanda Leaks, “feita muitas vezes a factos desprovidos de relevo criminal, mas em função do caráter censurável dos factos nela evidenciados”, assim como faz, exemplifica, o Consórcio Internacional de Jornalitas de Investigação que tem publicado online diversa informação”. “O que os arguidos fizeram foi dar a conhecer publicamente o conteúdo da correspondência eletrónica reveladora de factos suscetíveis de merecer censura criminal disciplinar, desportiva e ético-social”, defende.

No entanto, também este argumento acabou por ser derrubado em tribunal. O Ministério Público e assistentes não só lembraram que Francisco J. Marques tinha um interesse clubístico, por ser responsável de comunicação do FC Porto e a sua função não poder ser comparada à de um jornalista que tem que ser isento na sua análise— tese que Carlos Alexandre aceitou —, como também sublinharam que a seleção dos e-mails e a interpretação que o elemento da estrutura do FC Porto foi fazendo nos programas à medida que os divulgava deturpou a mensagem dos mesmos. Exemplo disso, dizem, foram alguns dos e-mails revelados a 6 de junho no programa que deu precisamente origem à notícia do jornal O Jogo — a tal que foi referida na denúncia feita à PGR.

A informação que foi ignorada

Francisco J Marques, segundo a acusação particular, leu apenas partes do e-mail enviado a 28 de janeiro de 2014 por Adão Mendes a Pedro Guerra.

O que Francisco J. Marques leu:

“Sobre a arbitragem não temos de ser “MAEZINHAS” mas usar a inteligência a nosso favor, criticando sempre”

O que os advogados dos assistentes dizem que omitiu:

“Criticando sempre, mas propondo soluções e não desabafos. Ex: O SLB recorreu da arbitragem do Soares Dias, considerei um erro, dado que o nosso adversário [PC] se enfureceu e tornou público o seu ódio”

O que Francisco J. Marques leu:

“Retiramos o recurso porque ganhamos o o jogo e recuperamos um inimigo”

O que os advogados dos assistentes dizem que omitiu:

Não leu a parte que referia que a via para o conseguir era promover uma via construtiva de reação a erros de arbitragem, por via do debate público, sem recurso automático a vias litigiosas, exceto quando absolutamente necessário

O que Francisco J. Marques leu:

“Dizem os grandes sábios dos painéis que algo está a mudar, o porto já não manda mas… ainda não compreendem onde está o poder”

“Hoje quem nos prejudicar sabe que é punido”

O que os advogados dos assistentes dizem que omitiu:

“O poder está no trabalho dia a dia, na busca da verdade e da seriedade e isso faz a diferença” (afirmação que originalmente estava entre as duas frases anteriores)

O que Francisco J. Marques leu:

“O Mota ganhou o processo. O 1º Ministro [Luís Filipe Vieira] é de facto um grande homem e um grande líder, sei o que digo porque sei das suas capacidades em ouvir, pensar, astúcia nas decisões e amor ao Glorioso. Não há outro como ele. Hoje, o SLB manda mesmo e outros já não mexem nada”

O que os advogados dos assistentes dizem que omitiu:

 “O poder está no trabalho dia a dia, na busca da verdade e da seriedade e isso faz a diferença”

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O juiz Carlos Alexandre, num despacho de pronúncia assinado esta segunda-feira, decidiu que tanto Francisco J. Marques, como o comentador Diogo Faria e o então diretor do Porto Canal, Júlio Magalhães (atualmente na Rádio Observador e na CNN), devem ir a julgamento e que há provas suficientes para virem a ser condenados.

Francisco J. Marques vai ser julgado por três crimes de violação de correspondência ou de telecomunicações, três crimes de violação de correspondência ou de telecomunicações agravadas, em concurso aparente com três crimes de devassa da vida privada e um crime de acesso indevido. Responderá ainda por cinco crimes de ofensa a pessoa coletiva agravados e um crime de ofensa à pessoa coletiva agravado na sequência de um acusação particular.

O comentador Diogo Faria responderá por um crime de violação de correspondência ou de telecomunicações e um crime de acesso indevido. Por acusação particular responderá por um crime de ofensa à pessoa coletiva agravado.

Já o antigo diretor do Porto Canal, Júlio Magalhães, viu confirmada a acusação pública de três crimes de violação de correspondência ou de telecomunicações agravados em concurso aparente com três crimes de devassa da vida privada e a acusação particular de cinco crimes de ofensa a pessoa coletiva agravados.