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“Groundhog Day” é, provavelmente, um dos filmes mais despretensiosos mais marcantes de sempre. “O Feitiço do Tempo”, na tradução portuguesa, estreou-se em 1993 com um cabeça-de-cartaz que garantia só por si algum público (Bill Murray), é certo, mas sem que jamais previsse faturar 70 milhões de dólares e, muito menos, constar, décadas depois, na Biblioteca do Congresso ou em tantas listas dos melhores filmes de sempre.
Coescrita e dirigida por Harold Ramis (também coargumentista e, nesse caso, ator ao lado de Murray em “Caça-fantasmas”), esta comédia romântica de inesperado substrato filosófico tem atravessado as décadas em cassete, DVD, streaming ou sessão televisiva, ironicamente incólume à passagem do tempo. Porquê ironicamente? Bom, para aqueles que ainda não conheçam este clássico imprevisto, porque trata a história de um dia que se repete uma e outra, e outra, e outra, e outra, e outra vez (alguns cálculos, incluindo os do próprio realizador, estimam em cerca de 34 anos o tempo que Phil Connors teria passado encarcerado no mesmo dia).
Uma prisão temporal inesperada, que começou de um dia para o outro e de que o protagonista não faz ideia como sair. Soa familiar? Bom, é isso que nos traz aqui. E como pode “Groundhog Day” ajudar-nos a lidar com o nosso próprio Dia da Marmota, a.k.a., quarentena na Era da Covid?
[o trailer de “O Feitiço do Tempo”:]
Primeiro capítulo: a estranheza
No filme, o Dia da Marmota era 2 de Fevereiro. Para nós, desde 11, 12, 13 de Março, por aí, apenas falta que o despertador dispare o “I Got You Babe”, da dupla Sonny & Cher, prontamente, ao virar das seis da manhã. Há oito semanas que vivemos um só longo dia, onde a nossa casa se tornou Punxsutawney, ocasionalmente prolongada até ao supermercado da esquina. Sem alarmes nem surpresas, encontros inesperados ou highlights. A princípio, ainda pensamos mesmo que é segunda-feira, corremos para o duche, começamos a pensar no que vestir, apontamos eventos no calendário, fazemos planos (Ah! Ah! Ah! Planos…).
Pensamos que isto vai acabar para a semana, que vão ser 15 dias, um mês no máximo, isto do fim de abril não passa, ou de junho, ou no fim do verão, ou até daqui a um ano – se tudo correr bem. Quem sabe? E começamos a entender que não, não é segunda-feira, nem terça, nem quinta, nem domingo, nem março, nem abril, nem Páscoa – que importa? É hoje, o longo dia da marmota-covid. Vivemos entre pijamas e fatos de treino, ocasionais camisas para as reuniões em teleconferência, as portadas e os armários da cozinha, o dia a nascer e a cair na janela, o menu da plataforma de streaming.
Segundo capítulo: o aproveitamento
Após alguns dias de loucura, o nosso corpo começa a aceitar o facto. Não sabe como isto começou nem quanto vai durar, mas decide começar a tirar partido da situação. O cínico Phil Connors, chamado pelo quarto ano consecutivo a cobrir um evento que despreza, em que uma marmota (irritantemente homónima) sai ou não da toca para ver a sombra e, com isso, anunciar se o inverno acabou ou ainda está para durar, envereda pela linha dura… Se o que faz não tem consequências, já que, no dia seguinte, volta sempre tudo à estaca zero e o bom do Sonny e a boa da Cher ao rádio-despertador, então pode roubar, bater, insultar, destruir, fazer o que quiser, porque nunca pagará o preço.
Danny Rubin, o homem que prendeu Bill Murray no Dia da Marmota
Deste lado, ficámo-nos pela versão suave… Já que, pelos vistos, tínhamos de ficar por aqui uns tempos, sem encontros com outros indivíduos da espécie, então podíamos ficar acordados até às tantas, pôr em dia os sonos dos últimos 15 anos, comer tudo o que quiséssemos já que ninguém nos vai pôr tão cedo a vista em cima em fato de banho ou similar, encetar a tão adiada experimentação laboratorial de todas as bebidas do bar da sala, dias completos em pijama e de sofá sem remorsos, fazendo binge watch das temporadas completas das séries da HBO e das novelas portuguesas da última década… Enfim, tudo o que faríamos no longo sábado de chuva que nunca tivemos.
Terceiro capítulo: o desespero
Até que chega o dia em que, mais uma vez, nada acontece. O dia igual ao outro e ao outro e ao outro. O dia em que se olha para a frente e não vê mais nada. Não temos marmota; temos a doutora Graça Freitas a sair todos os dias da toca para nos dizer exatamente o que já sabíamos, isto é, que não se sabe. As notícias falam em confinamentos, desconfinamentos, reconfinamentos, novas linhagens e mutações, descidas e subidas de curvas e “érres”, segundas vagas e importações, que o vírus já cá estava antes, que o vírus pode resistir ainda muito depois, que o vírus pode provocar mais isto e aquilo, que o vírus afinal também ataca ali, acolá e mais não sei onde.
Phil Connors suicida-se repetidamente e de todas as formas possíveis; a nós, custa-nos levar a torradeira para a banheira. Ficamos mortiços, irritadiços, prontos para desistir de mudar de roupa e de tomar banho se já não o tivéssemos feito na semana passada. Começamos a temer ficar aqui, assim, para sempre. Quando ainda tínhamos tantos planos para a nossa vida sexual.
Quarto capítulo: o aperfeiçoamento
Quando Phil desiste até de se tentar matar, inventa a única coisa que ainda pode fazer com aquele dia sempre igual: um objetivo. Até ao final do dia, ele vai tentar conquistar a produtora Rita (the one and only, um dos amores cinematográficos da nossa vida, Andie MacDowell). Com isto em mente, vai aperfeiçoar-se de todas as formas para a tentar impressionar: aprende a tocar piano, a fazer esculturas no gelo, cultiva-se, é gentil, encantador.
Rita não é rapariga de se deixar conquistar num só dia e, por isso, todos os esforços de aproximação também resultam sempre no mesmo: no regresso ao ponto de partida na manhã seguinte, mas, no processo, Phil aperfeiçoa-se efetivamente enquanto ser humano, ajudando o pobre nas ruas e a criança que cai da árvore, passando a preocupar-se com os outros, com o que acontece naquela realidade que, por mais limitada que seja, tem de aceitar agora como sua. Uma realidade onde pouco ou nada importam os vícios antigos, os projetos estritamente pessoais, o materialismo, a indiferença.
Não vamos conquistar nenhuma Rita – a menos que se democratizem depressa os testes rápidos e fiáveis de Covid – mas também podemos, devemos e já estamos, muito provavelmente, nesta fase. Quantas coisas já não teremos aperfeiçoado em nós mesmos neste dia da marmota que já leva mais de 1300 horas? Muitos aprenderam a fazer o seu próprio pão, apuraram os dotes culinários em geral e devem fazer já belas esculturas em rolo de papel higiénico. Ganhámos muito mais destreza na arte da limpeza da casa, de cortar o próprio cabelo e na compra online. Quão mais versados estaremos na feitura de podcasts, playlists, babysitting, multitasking e tantos outros anglicismos?
Talvez tenhamos começado a aprender a tocar um novo instrumento musical, recuperado hábitos de leitura, meditação, posto em dia filmes e séries, melhorado aquela prancha abdominal ou retomado o sonho tantas vezes adiado da escrita. Para muitos, este é também, em grande medida, o serviço militar que não cumprimos e o curso intensivo de Estudo do Meio e Português B que já não contávamos frequentar. E, com um pouco de sorte e juízo, estamos todos menos ansiosos e fúteis, percebemos que a nossa felicidade não depende de uma foto no Instagram provando que estivemos no evento e no sítio da moda, e até falamos mais vezes com a nossa família por telefone ou videochamada do que fizemos em anos em pessoa.
Quinto capítulo: o fim do feitiço
Até que algo acontece… Em “Groundhog Day”, Phil consegue finalmente passar a noite com Rita e, na manhã seguinte, é, por fim e de facto, outro dia. Harold Ramis e o coargumentista Danny Rubin nunca quiseram dar grandes explicações sobre o assunto. Não sabemos se foi por Phil ter conquistado Rita que se quebrou o feitiço, se é Rita quem quebra o feitiço como uma inversão do velho beijo do príncipe nos contos de fadas, ou se é porque Phil mudou que tudo o mais acontece: o fim do feitiço e a conquista de Rita.
[todas as vezes que Phil Connors acorda ao som de “I Got You Babe”:]
Representantes de diferentes religiões reconheceram ao longo dos anos “Groundhog Day” como um dos filmes mais espirituais do nosso tempo. Os budistas em particular parecem encontrar nele uma representação clara do ciclo do Samsara, em que reencarnamos sucessivamente até nos libertarmos da ilusão do eu e, consequentemente, do sofrimento. Também os cristãos não veem longe daqui uma ideia do aperfeiçoamento pela ressurreição.
Phil, efetivamente, ascendeu de descrente frustrado e fanfarrão a altruísta sensível e apaixonado. E essa é, indiscutivelmente, a lição que podemos tirar do velho “Feitiço do Tempo” para o(s) nosso(s) dia(s). Não estamos a dizer, como algumas pessoas, que há um sentido maior nesta pandemia; o vírus não é nenhum justiceiro nem enviado divino ou da natureza. Mas, já que estamos aqui presos, já que os grandes castelos de cartas em que vivemos e planeámos o nosso futuro ruíram com esta facilidade, talvez fizéssemos bem em aproveitar para aprender alguma coisa com isso.
Alexandre Borges é escritor e argumentista