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Tudo acabou com um bilhetinho. Há semanas que o Presidente Lula da Silva e Simone Tebet, candidata presidencial do MDB que apoiou o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) na segunda volta das eleições, não chegavam a um entendimento sobre que ministério havia de calhar a Tebet no novo governo. A senadora desejava o Ministério do Desenvolvimento Social, mas Lula e os aliados do partido não queriam que a pasta responsável pelo icónico programa social Bolsa Família ficasse para alguém de fora do PT. O Meio Ambiente foi equacionado, mas esse ministério tinha de ser entregue a outra aliada fora do partido, Marina da Silva. A Agricultura — outra hipótese em cima da mesa — não agradava a Simone Tebet, que considerava ter mais peso político do que essa pasta implica. O impasse arrastava-se.
No dia 23 de dezembro, Lula convidou Simone para uma reunião. Os dois foram juntos de avião de Brasília até São Paulo, um trajeto de hora e meia, mas o novo Presidente nunca abordou o assunto. A jornalista do Estado de S. Paulo, Vera Rosa, contou os detalhes: Lula falou dos seus planos para o novo governo, elogiou a residência oficial de Granja do Torto… Mas ministério, nada. Até que, na altura do desembarque, o líder do PT entregou um envelope à senadora. “Não abra agora. Primeiro, comemore o Natal com a sua família”, disse-lhe.
Naturalmente, assim que se despediu de Lula, Simone apressou-se a abrir o envelope. Lá dentro estava um pequeno bilhete onde Lula tinha escrito à mão “Peço que você aceite o Ministério do Planejamento”, com um desenho do organograma que antevia para a pasta que engloba questões económicas. Foi assim, finalmente, que foi colocado um ponto final no drama.
Ou, pelo menos, é o que Lula quer acreditar. Este domingo, tomou posse como novo Presidente do Brasil, a par de 37 ministros escolhidos a dedo por si. A composição do novo executivo reflete o difícil equilíbrio de montar um governo claramente do PT, alinhado à esquerda, mas que agrada aos outros vários partidos que se juntaram à sua candidatura, incluindo o MDB de Simone Tebet. E que, perante um cenário de crise económica no horizonte, não assuste os mercados. Um equilíbrio difícil.
Haddad nas Finanças. O “aliado fiel” que quer provar que não é radical
A começar pela Fazenda. No Brasil, o cargo de ministro das Finanças vai muito para lá da gestão do Orçamento do Estado. “Nenhum presidente de empresa privada acumula tanto poder, controla tantos destinos, atrai tanta inveja. Nenhum outro posto da administração pública sofre tanta pressão, recebe tanto escrutínio, é alvo de tantos ataques”, definiu em tempos o analista brasileiro Thomas Traumann. “Nenhum emprego tem, simultaneamente, tamanha força e fragilidade. É o pior emprego do mundo.” O homem que Lula escolheu para ocupar esse cargo é Fernando Haddad.
Antigo ministro da Educação, presidente da Câmara de São Paulo e candidato presidencial do PT contra Bolsonaro quando Lula da Silva estava impedido de concorrer, Haddad não é novo nas andanças políticas e tem um mestrado em Economia debaixo do braço. Mas é precisamente o seu pensamento económico que o fez ser mal recebido por alguns. Conhecido keynesiano, a sua nomeação levou a uma descida na Bolsa brasileira, depois de um discurso perante banqueiros a 25 de novembro que não convenceu o setor financeiro mais liberal.
Se o antecessor na pasta, Paulo Guedes, era um conhecido fã de Milton Friedman, Haddad vem impor uma clara mudança de rumo: é, como lembra o site brasileiro Jota, admirador do economista John Kenneth Galbraith, conhecido pela frase “Onde o mercado funciona, eu sou a favor. Onde o governo é necessário, eu sou a favor.” Mas, perante a clara postura de maior intervencionismo na economia, os aliados de Haddad e Lula desdobraram-se nos últimos dias em declarações que tentam acalmar os mercados. “Não vai ser um governo gastador”, prometeu Geraldo Alckmin, figura de proa do centro-direita brasileiro que agora será o vice-presidente do governo Lula.
O próprio Haddad passou as últimas semanas a tentar mostrar que está longe de ser um radical. “Gastador? Eu fui o primeiro prefeito a conseguir grau de investimento no país. Se você não olhar para a trajetória da pessoa, vai cair em fake news”, disse, referindo-se ao facto de, consigo na liderança, o município de São Paulo ter conseguido obter a aprovação da agência de risco Fitch, na sequência de uma renegociação de dívida. Para além disso, prometeu trazer para o Conselho do Ministério da Fazenda economistas enquadrados mais à direita como Persio Arida e André Lara Resende. A sua jovem equipa no ministério, porém, tem uma posição política claramente à esquerda, embora com graus diferentes entre si.
Na imprensa brasileira, as fontes petistas tentam sublinhar que Haddad não é um marxista, mas um social-democrata — uma visão corroborada pela maioria dos economistas. “Ele fica no meio do caminho [entre liberais e intervencionistas]”, resumiu à BBC Brasil Nelson Marconi, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Pelo meio, foi desenterrada a própria dissertação de mestrado do novo ministro, onde havia críticas claras ao sistema soviético, que Haddad apelidava à altura de “despótico”.
Mas enquanto o Brasil discute o perfil do novo ministro da Fazenda, aquilo que fica claro é que Haddad é uma escolha direta e pessoal de Lula, o que indicia que o Presidente não tenciona delegar o controlo do governo e quer manter a sua influência. “Haddad foi escolhido para o posto-chave por ter se mostrado um aliado fiel a Lula nas horas mais difíceis”, resumiu o jornalista brasileiro Matheus Pichonelli. Um presente que se pode revelar envenenado caso Presidente e ministro da Fazenda tenham opiniões contrárias em alguns temas. Tendo em conta o historial de ambos, tal parece pouco provável; o que não significa, contudo, que não haja outras pedras no caminho de Haddad — nomeadamente uma chamada Simone Tebet. Mas já lá vamos.
Dos cargos de coordenação do PT às escolhas fora da caixa (como o homem por quem Bolsonaro é apaixonado)
Haddad é a marca de água de que este é um governo do PT. Mas não é a única. Os cargos de coordenação mais relevantes do novo governo foram atribuídos a figuras de relevo do Partido dos Trabalhadores. Só que, com habilidade, Lula optou por políticos conhecidos pela capacidade de diálogo, que podem ajudar a permitir a longevidade de um governo que terá de se entender com parlamentares de diferentes cores políticas no Congresso.
É o caso de Alexandre Padilha. Por um lado, é um veterano do PT, que coordenou duas das anteriores campanhas de Lula da Silva à presidência e foi seu ministro, bem como de Dilma Rousseff. Por outro, é elogiado por vários congressistas de outros partidos, como Isnaldo Bulhões do MDB, que o classificou como “um excelente nome”. Na pasta das Relações Institucionais, testará essa capacidade de conseguir entendimentos na articulação com representantes e senadores.
Outro exemplo é o de Rui Costa, escolhido por Lula para chefiar a Casa Civil. O governador da Bahia tem uma capacidade de diálogo tal que há quem diga na ala esquerda do PT que demonstra “excessiva abertura ao diálogo com conservadores”. Mas não só é homem de confiança de Lula, como o seu passado como sindicalista metalúrgico deixa claro onde está a sua lealdade. Apontado como “mais técnico do que político” por alguns, bem como “trabalhador” pela maioria, Costa ali estará para levar a cabo o trabalho duro em cada projeto de lei e garantir a governabilidade do novo executivo de Lula.
Nas outras pastas, porém, Lula da Silva permitiu-se escolher nomes mais fora da caixa e tentar dar sinais de que este não é um governo totalmente fechado sobre o PT. A ecologista (e ex-membro do PT que se reaproximou de Lula) Marina da Silva, por exemplo, viu o seu apoio na eleição ser recompensado com o Ministério do Meio Ambiente em vez da chefia da Autoridade Nacional Climática — cargo que inicialmente rejeitou por não querer ser “uma rainha de Inglaterra”, como resumiu um aliado próximo.
Outro nome que surpreendeu foi o de José Múcio. O político que já pertenceu a inúmeros partidos (incluindo o Arena, que apoiou a ditadura militar) define-se como “um construtor de pontes” e é querido tanto por Lula como por Jair Bolsonaro. “Zé Múcio, se me permite, eu sou apaixonado por você”, chegou a dizer o ex-Presidente. Múcio é tão versátil que o facto de ser um civil a liderar a Defesa não incomodou as chefias militares; e Lula viu assim a sua escolha heterodoxa ter o resultado pretendido de acalmar os ânimos nas casernas, mais próximas do bolsonarismo.
Com nomeações estratégicas como estas, o novo Presidente tenta gizar um governo com capacidade de sobrevivência, mas há uma constante que se nota em todos os nomes: são na maioria leais a Lula da Silva, como o amigo de longa data Alexandre Padilha. Até no caso dos ministros de outros partidos, como Marina da Silva e Simone Tebet, não há uma proximidade profunda, mas há uma tentativa de recompensar o apoio político durante a campanha. As duas ministras são, pelo menos por agora, aliadas de circunstância.
Um dos exemplos mais óbvios dessa recompensa pela lealdade é o de Mauro Vieira, o novo ministro dos Negócios Estrangeiros. Apesar de ter credenciais para o cargo (é diplomata de carreira com mais de 40 anos de experiência e passagem por postos relevantes como EUA, Argentina e ONU), foi uma escolha que desagradou a alguns setores do PT, que gostariam de ver uma mulher a liderar o Itamaraty. Mas Lula não esqueceu o homem que continuou a telefonar-lhe quando estava preso, como notou uma fonte próxima do Presidente à Globo.
Vieira terá agora em mãos uma decisão sobre o futuro político de uma outra aliada de peso de Lula: Dilma Rousseff, que a imprensa brasileira diz poder vir a ser nomeada como embaixadora em Buenos Aires ou Lisboa. Oficialmente, o novo ministro nega tal decisão. “Só vi pelos jornais”, disse ao Estadão, não excluindo porém a hipótese. Um dos detalhes de uma entrevista cheia de notícias sobre os planos do novo governo para as Relações Externas, como o apoio do Brasil ao regresso da Venezuela ao Mercosul — mas a rejeição de uma visita de Estado de Lula a Caracas para breve.
Simone Tebet, um “satélite” que tentará deixar marca
Certo é que Lula da Silva terá de ter mão de ferro para conciliar tantos interesses diferentes dentro do seu governo ao longo dos próximos anos. Os sinais de dissidência interna vão surgindo. “Pelo visto, seremos satélites no governo Lula”, queixou-se um aliado de fora do PT à Globo, destacando que os principais ministérios estão nas mãos do partido do Presidente. O MDB contará apenas com três ministérios (Transportes e Cidades para além do Planejamento, de Tebet), o PSD também com três (Minas, Agricultura e Pesca) e o União Brasil com dois (Turismo e Comunicações). Ao todo, o PT arrebata 29 pastas, incluindo todas as de coordenação política.
Mas os partidos em si têm pouca capacidade de ruído. O verdadeiro desafio está em Simone Tebet, que, ao ficar em terceiro lugar na primeira volta das presidenciais, acumulou um capital político de relevância tal que pode fazer mossa caso venha a fazer frente ao ministro da Fazenda Fernando Haddad.
Sabendo disso, Lula desenhou um organigrama para o ministério onde a senadora está altamente limitada por figuras do PT. Inicialmente, Tebet queria que os bancos públicos ficassem debaixo da asa do seu ministério, mas tal não aconteceu — em vez disso, o BNDES será liderado por Aloizio Mercadante, próximo de Dilma Rousseff, e as chefias da Caixa e do Banco do Brasil serão escolhidas por Gleisi Hoffmann, presidente do PT. Em alternativa, Tebet pediu o controlo sobre o Programa de Parcerias de Investimentos, mas até isso terá de partilhar com a Casa Civil de Rui Costa.
Com um Ministério do Planejamento blindado, Simone Tebet terá assim de se articular com o ministro da Fazenda — ou seja, com Fernando Haddad. Mas há já quem anteveja que, na tentativa de ter uma voz própria, Tebet, conhecida pelas ideias económicas mais liberais, possa vir a ser um osso duro de roer. “A Simone pode ser o inferno do Fernando. Pode disputar a linha económica todo dia”, admitiu uma fonte do próprio PT à CNN Brasil. Afinal, para Lula da Silva, talvez nem tudo tenha acabado com um bilhetinho — talvez esteja apenas a começar.