Era março de 2018 quando o arquiteto Souto de Moura foi recebido na Câmara do Porto para mostrar o projeto do Mercado Time Out — um mercado com mini-restaurantes, idêntico ao da Ribeira, em Lisboa, previsto para a ala sul da estação, junto à rua do Loureiro, num espaço que hoje é um amplo parque de estacionamento. Por essa altura, estimava-se que o mercado ficaria concluído ainda em 2018. Mais de um ano depois, atrasado pela polémica, ainda falta a aprovação do projeto final e o início das obras.
O projeto inclui uma torre que, “se não é um miradouro, é pelo menos um Mira-Clérigos”, afirmava o arquiteto à altura, perante Rui Moreira e o seu executivo, “inteiramente favorável” à construção. A mesma torre acabaria por ser um dos maiores problemas. Projetada para ter 20 metros, foi o ponto central da discussão que gerou discordância entre várias entidades nacionais e internacionais, por ser disruptivo em relação a uma zona da cidade do Porto que é Património da Humanidade. A UNESCO opôs-se à ideia, a Câmara do Porto decidiu avançar na mesma. A aprovação definitiva deve chegar ainda este ano.
A polémica com a construção
A dimensão da torre projetada pelo arquiteto Souto Moura foi sempre o grande problema da construção do Mercado Time Out, por ser considerada alta demais, em comparação com os outros edifícios daquela zona da cidade.
Por se tratar de uma zona Património da Humanidade desde 1996, a Direção Geral do Património Cultural — organismo português responsável pelo património cultural imóvel —, antes de aprovar o projeto, viu-se obrigada a pedir um parecer ao órgão consultivo da UNESCO para as questões do Património, o ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios).
O organismo sempre se mostrou desfavorável à construção. Em abril de 2018, o ICOMOS pediu mesmo para o projeto não ser aprovado, por não ter em conta “as recomendações internacionais em matéria de intervenção sobre património construído”.
Em março de 2019, uma segunda avaliação do mesmo órgão consultivo da UNESCO, a que a Lusa teve acesso, focava as atenções na torre de 20 metros, que “parece bastante grande, em comparação com o espaço comprimido disponível, numa parte da cidade já densamente construída”, lia-se.
Pelo facto de a recomendação do ICOMOS não ter um caráter vinculativo para a Direção Geral do Património Cultural, o organismo português decidiu não a seguir e, em maio deste ano, contrariando-a, emitiu um parecer positivo ao avanço da obra. O projeto não chegou a sofrer alterações depois das recomendações do ICOMOS.
A decisão estava, por essa altura, com a Câmara do Porto, inclinada desde o início a seguir a decisão da Direção Geral do Património Cultural. A autarquia acabou, então, por dar um parecer positivo ao Pedido de Informação Prévia (PIP) e, depois, ao avanço da obra.
Perante a polémica, o Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, chegou mesmo a afirmar que o ICOMOS tem uma “visão arqueológica” sobre o Porto e acrescentou que “gostava que o arquiteto Souto Moura pudesse fazer uma obra na sua cidade”.
A Estação de S. Bento também foi construída à revelia de Património da Humanidade
Não há hora nenhuma em que o átrio da estação de São Bento não tenha guias turísticos a competir no tom de voz pela atenção do grupo que os ouve. Falam quase sempre em inglês; às vezes, lá se ouve francês. E quando um sobe o tom, o grupo do outro olha de esguelha, como que a censurar, com o olhar, a distração que a outra voz provoca.
São Bento é um dos locais mais emblemáticos da cidade do Porto. Construída no final de século XIX pelo arquiteto José Marques da Silva para ser a estação central da cidade, já depois de Campanhã estar de pé, tem uma fachada em pedra, vítima da falta de abertura, na época, para o ferro e o vidro enquanto materiais de construção “dignos” de monumentos. José Marques da Silva defendeu estes materiais nos primeiros projetos que desenhou para a estação.
A zona da estação passou a ser Património da Humanidade em 1996 e há apenas menos um ano é Imóvel de Interesse Público. Mas, quando foi construída, também não foi consensual.
Numa altura em que o centro da cidade era “um formigueiro”, conta o historiador Helder Pacheco, a burguesia pedia uma estação mais próxima para não ter de deslocar a Campanhã. Abriram-se “uma data de túneis para trazer o comboio de Campanhã”, fazendo-o andar para trás. Um trajeto que o historiador considera “um pouco anedótico”, fruto da “mania portuense e portuguesa de querer o automóvel debaixo da cama”.
“Se calhar, essa sociedade burguesa da altura era menos conservadora do que a sociedade burguesa de hoje”, acrescenta o arquiteto especialista em urbanismo Nuno Grande, admitindo, ainda assim, que a estação, “quando foi construída, foi escandalosa”. Antes existia lá o antigo mosteiro de S. Bento Avé Maria que, apesar de estar já desabitado à época, continha uma igreja que o mantinha Património da Humanidade.
“Houve uma grande oposição de grandes setores da sociedade quanto à demolição do mosteiro”, explica o historiador, mas “a estação de S. Bento foi construída à revelia do Património da Humanidade”.
“A estação pertence-me a mim, pertence-lhe a si. Não é um objeto da câmara”
Dez dias depois de a Câmara do Porto ter recebido o parecer positivo da Direção Geral do Património Cultural, um grupo internacional de especialistas em História condenou veementemente o projeto e lamentou a sua falta de transparência, em carta enviada a vários organismos.
O porta-voz do International History Students & Historians Group, João Viegas, diz ao Observador que considera “de muito mau tom simplesmente ignorar o que a UNESCO tem para dizer, quando todos aplaudimos o momento em que a entidade atribuiu o título de Património Mundial àquela zona”.
O grupo criado em julho, e já constituído por mais de 900 historiadores e estudantes de História, não tinha “a pretensão” de pensar que a carta iria “mudar um projeto inteiro ou causar um impacto muito grande”, mas defende a “autenticidade dos edifícios em causa, neste caso, da Estação”, como forma de “proteger o património”.
“A estação pertence-me a mim, pertence-lhe a si. É história e pertence a todos. Sendo Património Mundial, pertence ao mundo. Não é um objeto da câmara”, reforçou João Viegas, numa opinião que não é consensual entre historiadores.
“Há, no Porto, uma mania anti-torres”
O mercado da Time Out terá 12 a 13 minirrestaurantes, dois bares e alguns quiosques de marcas locais, numa estrutura que terá apenas um piso, à cota alta, para onde se sobe através de escadas ou elevador – passando por uma plataforma ao ar livre, que pode funcionar como palco amovível para a realização de concertos ou de outras iniciativas.
A torre pensada por Souto de Moura está prevista para o fundo do beco sem saída da rua do Loureiro, onde hoje se encontra um parque de estacionamento, e também terá uma área de restauração no topo e vistas para os Clérigos.
A Helder Pacheco, historiador dedicado à cidade do Porto, não lhe “repugna nada aceitar ali a torre” porque “quanto muito, vai tapar uma fábrica em ruínas — que era uma fábrica de guarda-sóis”. Reage mal aos fundamentalismos, conta ao Observador. “A primeira medida a observar é se o projeto vai demolir o edifício antigo. Os edifícios classificados não devem ser demolidos. Segundo: se vai intervir fortemente sobre o interior”.
Há, na ruas que ladeiam a estação, dois níveis: um nível que acompanha a estação e um nível que sobe e, portanto, desagua noutra rua mais acima. O nível que acompanha a estação vai dar a um beco sem saída. No caso da Rua do Loureiro, o espaço está a ser ocupado por um parque de estacionamento.
Helder Pacheco considera essa zona “descaracterizada e sem categoria arquitetónica”. Defende, portanto, a construção “com arquitetura contemporânea” desde que “se integre com o espírito da estação”.
“Nem sequer estamos a introduzir um material que vai diferir ali”, acrescenta Nuno Grande, autor de um projeto para um hotel mesmo ao lado da estação e também muito contestado. “O arquiteto Souto de Moura propõe uma torre em aço ao lado de uma estação cuja cobertura é toda ela feita em aço e o desenho que ele nos traz remete-nos também para o imaginário das infraestruturas ferroviárias”, defende o arquiteto, que tem acompanhado o caso “através das notícias” e para quem a torre “poderá até ser um bom ponto de exclamação para uma rua que não tem saída”.
Nuno Grande diz ter reservas quanto àquilo a que chama “construção desenfreada” nos centros históricos, pelo “erro do turismo”, mas nega a ideia de que “a torre vai romper com a escala da cidade”, porque, “na verdade, essa escala já foi rompida há muito tempo, pela presença da escarpa e dos edifícios que ficam na zona da Batalha”
Helder Pacheco aproveita o momento para discordar de “algum conservadorismo” quanto à construção de torres. “Há, no Porto, uma mania anti-torres que, na minha opinião, não se justifica. É óbvio que eu não defendo a construção de uma torre na Ribeira…”
No olhar para o passado, mas também na visão para o futuro, as opiniões do arquiteto e do historiador alinham. Nuno Grande defende que, mesmo estando perante uma zona protegida, “não podemos congelar o tempo e dizer que, a partir de agora, não é mais possível construir”, até porque, defende, o património contemporâneo de hoje será património histórico no futuro.
E ao recalcar a ideia, lembra a “síndrome Arca de Noé”, estabelecida pela historiadora francesa Françoise Choay: “Queremos guardar tudo do passado na arca do presente, com medo de um futuro que vem aí. Às vezes, ao guardar tudo, esquecemo-nos que também temos de acrescentar algo do nosso tempo”.
Exemplo disso, para Helder Pacheco, é o que se passa na Ribeira — “a menina dos olhos da cidade” — onde só encontramos construções do século XIII até ao século XIX. “E os séculos XX e XXI não podem ter lá lugar? Acho que há um preconceito. Da construção moderna só acho uma coisa: é preciso que tenha qualidade.”