O Banco de Portugal projeta um regresso das contas públicas ao “vermelho” – a única entidade a prever um défice em 2025 – e admite “algum risco” de Portugal falhar as regras que Bruxelas definiu para a evolução da despesa pública. Mas Mário Centeno garante, depois de o supervisor financeiro também colocar em causa os méritos de se descer o IRC, que não está a fazer oposição ao Governo nem, como supõem alguns dos seus críticos, a marcar posição para uma eventual candidatura a Belém. Cabe ao Banco de Portugal “aconselhar” as autoridades políticas, assevera Centeno, e é só isso que o supervisor está a fazer, “da melhor forma que sabe”.
Questionado pelo Observador, na conferência de imprensa desta sexta-feira, sobre se são justas algumas das críticas que se fazem, de que estará a instrumentalizar o Banco de Portugal para fazer oposição ao Governo da Aliança Democrática, Mário Centeno respondeu que esse é um tema de debate mais associado a programas televisivos “noctívagos”.
“No papel que tenho, como governador, e que tem o Banco de Portugal perante a República Portuguesa, aquilo que podemos fazer é aconselhar, que é exatamente a expressão que é usada na lei orgânica” do supervisor financeiro português. “E eu posso garantir-lhe”, disse Mário Centeno, dirigindo-se ao Observador e aos outros meios de comunicação na conferência de imprensa, “que, com todos os ministros das Finanças e todos os primeiros-ministros com quem me relacionei, não há qualquer número que vocês vejam aqui que eles não tenham visto antes”.
Mário Centeno frisou que partilha tudo o que o banco faz, com todas as instituições e entidades, antes de divulgar esses estudos e análises junto da imprensa. “Esse é o meu papel”, continuou o governador do Banco de Portugal, acrescentando que “os técnicos do Banco de Portugal que assinaram o texto sobre o IRC são… técnicos do Banco de Portugal“.
Em causa está um trabalho do Departamento de Estudos Económicos do Banco de Portugal que admite um impacto positivo muito escasso da descida do IRC na atividade económica – embora o próprio estudo admita que não tem em consideração possíveis ganhos de competitividade e atração de investimento externo que essa medida pode trazer (como o Governo acredita que acontecerá).
Descida do IRC só ajuda economia se empresas reinvestirem poupança fiscal, avisa o Banco de Portugal
“Aquele texto é, talvez, o texto mais sério que vi feito nos últimos anos sobre a descida do IRC“, asseverou o governador do Banco de Portugal. O supervisor “não faz rigorosamente nada que não esteja imbuído da função que o Banco de Portugal tem, que é de aconselhar”. Depois, “a tomada de decisão é responsabilidade de quem tem de tomar decisões”, acrescentou Centeno, rematando: “É esse o único objetivo: cumprir o mandato do Banco de Portugal da melhor forma que sabemos“.
Contas voltam ao “vermelho” em 2025 e pioram nos anos seguintes. Metas europeias em risco
No Boletim Económico de dezembro, que foi apresentado nesta sexta-feira, o Banco de Portugal prevê que as contas públicas voltem a uma execução deficitária que, em 2025, será de -0,1% do PIB, contrastando com as previsões de um excedente de 0,3% do PIB que estão no Orçamento do Estado recentemente aprovado. Mário Centeno está menos confiante – não só sobre 2025 como, também, em relação aos anos seguintes – e avisa que os riscos para a economia são “descendentes“, o que “reforça a necessidade de haver uma reorientação da política orçamental” para se ter mais cautela com a evolução da despesa pública.
O Banco de Portugal estima que “nos anos seguintes continuam a projetar-se défices, em resultado das medidas permanentes já adotadas — com impacto na despesa pública e na receita fiscal —, dos empréstimos do PRR previstos para 2026 e, a partir de 2027, do aumento de despesa para assegurar a continuidade dos projetos financiados pelo PRR”. Segundo o Banco de Portugal, o superávite será de 0,6% em 2024 (maior do que o Governo estima) mas, depois, passa a sinal negativo: -0,1% em 2025, -1% em 2026 e -0,9% em 2027.
Economia deve crescer 1,7% em 2024 e 2,2% tanto em 2025 como em 2026
↓ Mostrar
↑ Esconder
Relativamente à atividade económica, o Banco de Portugal fez pequenas revisões em alta das expectativas de crescimento, em comparação com aquilo que havia sido calculado. Prevê-se, agora, que a economia cresça 1,7% em 2024 (em outubro estimou-se 1,6%) e 2,2% tanto em 2025 como em 2026.
Porém, o Banco de Portugal sublinha que a “projeção para a evolução da economia enfrenta riscos descendentes“, o que significa que o risco de crescimento se revelar menos forte que o previsto é maior do que a probabilidade de surpreender pela negativa. Isto “reforça a necessidade de uma reorientação da política orçamental que assegure o espaço adequado de resposta”, avisa o Banco de Portugal.
As tensões geopolíticas continuam a ser um risco adverso significativo, em especial se perturbarem os mercados globais de matérias-primas. A incerteza política na Europa pode agravar o cenário de fraco crescimento. Um maior protecionismo envolvendo as maiores economias mundiais poderá reduzir o comércio internacional. Na dimensão interna, salientam-se as dificuldades na execução dos fundos europeus, que poderão implicar um menor dinamismo do investimento”, afirma o Banco de Portugal.
No Boletim Económico, o Banco de Portugal explica que “o maior crescimento da atividade está sustentado sobretudo na procura interna”, já que “o crescimento em 2024 é sustentado sobretudo pelo consumo privado”. Depois, em 2025 e 2026 destaca-se “a melhoria das condições financeiras e a aceleração da procura externa, mas também a orientação expansionista e pró-cíclica da política orçamental”. Mas a partir de 2027, “a desaceleração do PIB decorre, sobretudo, do impacto do fim da execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)”.
O mercado de trabalho continua robusto, com aumentos do emprego e dos salários reais, a par da manutenção de um desemprego historicamente baixo (6,4% no horizonte de projeção). Em 2024, o rendimento disponível real regista um aumento historicamente elevado (7,1%), que se traduz na aceleração do consumo privado e num aumento marcado da poupança, abrandando em 2025–27, em resultado do menor crescimento dos salários e do emprego, com reflexos no consumo”, pode ler-se no Boletim Económico.
O Banco de Portugal diz, ainda, que “a taxa de poupança, de 11,5% este ano, estabiliza ligeiramente acima de 11% até 2027”. “O investimento recupera em 2025–26 devido à melhoria das condições financeiras e das perspetivas globais e o estímulo dos fundos europeus, mas trava em 2027 com o fim do PRR. As exportações devem crescer 3,9% em 2024 e 3,2%, em média, em 2025–27, num contexto de aceleração da procura externa, menor dinamismo do turismo e ganhos de quota progressivamente menores”, termina o supervisor.
O Governo calcula um superávite de 0,4% nas contas públicas deste ano, baixando para 0,3% do PIB em 2025 mas mantendo-se acima da “linha de água” não só no próximo ano como nos anos seguintes. O Conselho das Finanças Públicas (CFP) projeta, por seu lado, que o excedente, em 2025, possa ficar nos 0,4% — aliás, nenhuma das entidades aponta, nas projeções em vigor, para um regresso aos défices.
Como é que se explica esta divergência, em que o Banco de Portugal apresenta projeções tão mais pessimistas? “Há um conjunto de hipóteses que condiciona a avaliação que o Banco [de Portugal] faz, quer através de modelos quer através de uma avaliação direta, a verosimilhança de determinadas evoluções”, explicou o governador do Banco de Portugal, acrescentando que a projeção incorpora o cenário macroeconómico que é traçado pelo supervisor financeiro.
Assim, a projeção de défice orçamental nasce de uma visão do andamento da economia – em variáveis e indicadores como “deflatores, [projeções de] atividade económica, composição dessa atividade económica – que é distinta da do Governo, que é distinta do Conselho das Finanças Públicas e que é distinta da da Comissão Europeia”. “Há algumas dimensões que são, potencialmente, mais fáceis de dirimir e que têm a ver com operações concretas que não têm impacto macroeconómico e que não beneficiam de nenhuma evolução macroeconómica”. Mas “o resultado é distinto pela avaliação que fazemos – e ela é judiciosa e sempre muito conservadora e cautelosa – daquilo que achamos que irá ser a evolução dos agregados orçamentais com base no cenário macroeconómico”.
Porém, “qualquer orçamento precisa de ser executado, implementado, há inúmeras decisões que são tomadas ao longo do ano para implementar um orçamento do Estado – que fazem diferir, obviamente, a estimativa que é apresentada (quer seja pelo Governo seja por outra entidade qualquer) daquilo que é o resultado final”. “Ou seja, se me perguntarem se é uma fatalidade [que no próximo ano haja um défice], eu respondo que não é uma fatalidade, mas com os dados que temos, aquele é o resultado que estimamos“.
Repetindo os alertas que fez em outubro, mas dando um passo em frente, Mário Centeno sublinhou que “a despesa corrente sobe [mais de] 10% em 2024, um valor que é dos mais elevados que víamos há muitos anos – é um máximo desde os anos 90”. “Esta dinâmica da despesa pública compromete a evolução das contas públicas na futuro e é algo que temos vindo a sublinhar ao longo do tempo com preocupação”, afirmou Mário Centeno, salientando que esta “preocupação” com a despesa pública leva o Banco de Portugal a ver “algum risco” de incumprimento das regras europeias por parte do Estado português.
De acordo com as projeções do Banco de Portugal apresentadas neste Boletim, a despesa líquida regista um elevado crescimento em 2024, estimado em 10,8%, muito acima do crescimento do PIB potencial nominal, de 7,4%. Entre 2025 e 2027, o crescimento médio da despesa líquida atinge 5,3%, excedendo a trajetória de referência e a prevista no plano de médio prazo em 1,6 pp, o que resulta em desvios médios anuais de 0,7 pp do PIB. Após a execução orçamental de cada ano, os desvios face ao plano aprovado serão registados na conta de controlo do estado-membro, não podendo exceder 0,3 pp do PIB por ano ou 0,6 pp do PIB cumulativamente”, escreveu o supervisor.
O que o Banco de Portugal passou a identificar, deste modo, é “algum risco de incumprimento das regras europeias, tanto em termos anuais como acumulados”. “Este desvio [médio anual previsto de 0,7 pontos percentuais] não é sustentável e tem de ser corrigido“, afirmou Mário Centeno, em viva voz, na conferência de imprensa.
Bónus nas pensões? Centeno avisa que “copo” da despesa pública pode estar a “transbordar”
À luz daquilo que está nas regras orçamentais, Mário Centeno apresentou na conferência de imprensa um exercício onde contrasta a margem disponível e os encargos (previstos) em 2024 e, também, em 2025, para ilustrar como, na sua opinião, as contas públicas estão numa situação em que falar de “folgas” é usar um “conceito estranho“.
O primeiro exercício é o seguinte: partindo do ano de 2024, o Banco de Portugal calculou a chamada “variação do PIB potencial nominal” que, como explicou Centeno, “é um referencial genérico sobre o crescimento da despesa pública. “No ano de 2024, estimamos que esse valor seja de 7.602 milhões de euros”, indicou o governador do Banco de Portugal.
“Mas nesta margem devem caber as decisões e a evolução normal das despesas com pessoal (2.586 milhões), das pensões e outras prestações sociais (5.128 milhões), os consumos intermédios (961 milhões), o investimento público financiado por orçamento do Estado (198 milhões), a outra despesa corrente e de capital (393 milhões) e a despesa que é financiada com empréstimos do PRR (265 milhões)”.
Mário Centeno diz que “se somarmos todas estas parcelas e adicionarmos as decisões discricionárias da redução da receita, que no ano de 2024 estimamos em 1.558 milhões de euros, concluímos que a variação da despesa líquida fica extraordinariamente acima daquilo que seria o referencial da variação da despesa”, no valor de 11.089 milhões de euros (que supera largamente os 7.602 milhões da “margem”).
Para 2025, faz-se um outro exercício, na mesma linha. “Por virtude do crescimento mais reduzido do referencial para o PIB potencial nominal”, que só cresce 4.576 milhões segundo o Banco de Portugal. “Se somarmos a evolução esperada da despesa com pessoal (2.119 milhões) e despesa com pensões e prestações sociais (2.339 milhões) praticamente esgotamos a margem de crescimento que a despesa pública tinha em 2025″, afirmou o governador do Banco de Portugal.
E ainda faltam as outras componentes: com o aumento do consumo intermédio (865 milhões) previsto pelo supervisor, “já estamos acima da linha”. O exercício em 2025, explicou Centeno, “é ajudado um bocadinho pelo facto de, nesse ano, o investimento financiado pelo Orçamento do Estado ser menor e o mesmo acontece na variação, negativa, das ‘outras despesas correntes e de capital'”. “Mas, depois, temos a despesa que é financiada por empréstimos do PRR e, em cima disto, ainda temos mais medidas discricionárias do lado da receita que, em termos líquidos, na nossa estimativa, tem um impacto de 930 milhões de euros”, ou seja, tudo somado a “conta” ascende a 6.669 milhões de euros, superando a “margem” prevista.
Faz sentido, neste contexto, falar em “folgas orçamentais” e admitir “bónus” nas pensões? À questão, Mário Centeno diz que, neste tipo de análises, é “muito difícil dizer que foi esta medida ou aquela que fez transbordar o copo”. “Se alguém for pondo gotas dentro de um copo, depois não sabem qual é que foi a gota responsável [por fazer transbordar o copo]”. “Mas a verdade é que, se o copo transbordar, é porque alguma coisa se passou que não se devia ter passado”, atirou o governador do Banco de Portugal.
Neste contexto de aperto orçamental, Centeno rematou a conferência de imprensa repetindo que, na sua opinião, “o conceito de ‘folga’, num Orçamento do Estado, é um conceito estranho“. E, sem se referir especificamente às pensões, que foi a questão do Observador, Mário Centeno respondeu com uma crítica: “Parece-me estranho que as decisões orçamentais não sejam todas tomadas na lei do Orçamento do Estado, como me parece estranho que o Orçamento do Estado trate de coisas que não são orçamentais”.
IRS Jovem da AD beneficia mais os jovens que ganham mais
↓ Mostrar
↑ Esconder
O Boletim Económico do Banco de Portugal inclui uma análise onde se estima que o modelo de IRS Jovem que foi aprovado pelo Governo (que foi modificado, após negociação com o PS, em relação à versão originalmente apresentada) irá beneficiar mais os jovens que têm salários mais elevados.
O IRS jovem implica um aumento de 0,8% do rendimento disponível para a população, em média. Mas quando se divide os salários em cinco quintis, dos 20% mais baixos aos 20% mais elevados, é “no último quintil da distribuição de rendimento onde se verifica o impacto mais elevado”, indica o Banco de Portugal, na linha do que já foi apurado na apresentação do Orçamento do Estado e nas simulações feitas por várias consultoras.
Simulações. Após avanços e recuos, quanto vão afinal os jovens poupar no IRS em 2025?