Ações nas ruas, salas e anfiteatros cheios, apelo ao voto na ponta da língua. À esquerda, Bloco de Esquerda e PCP avançam de comício em comício até à campanha eleitoral com um discurso assente em duas prioridades: impedir a maioria absoluta do PS, agitando com toda a força o papão do bloco central e dos entendimentos com o PSD; e começar já a concretizar as bandeiras em que vão apostar na campanha, com particular atenção ao voto de protesto.
Se antes da crise a esquerda já fazia questão de apontar os pontos de contacto entre PS e direita, a entrevista em que António Costa abria a porta ao PSD deu ao guião da esquerda um novo foco. Agora, como aponta um dirigente bloquista, a ideia é “deixar evidente” que o voto na esquerda “evita a direita no poder”. E Costa, assim como figuras socialistas de topo como Carlos César e Manuel Alegre que vieram defender que o PS mostre abertura à direita, terá dado um empurrão a essa narrativa eleitoral: ou se vota à esquerda ou a direita volta ao poder, mesmo que seja atrelada ao PS, garantem agora BE e PCP.
A mais de dois meses das eleições, o ambiente e a agenda já são de pré-campanha: se o PCP, ainda antes do chumbo do Orçamento do Estado, já fazia ações de rua, o Bloco começa a voltar ao “modelo de sala cheia”. Este fim de semana ambos os partidos apostaram em comícios para mobilizar os eleitores. E deram exatamente o mesmo passo no apelo ao voto, desenhando um cenário em que o PS já estaria quase de papéis assinados com o PSD para começar uma espécie de reedição do bloco central.
A esquerda ao ataque: o “namoro” de Costa com o “lamaçal” do PSD
No sábado, pelas 17 horas, Jerónimo de Sousa subia ao palco da Associação Teatro Construção, em Famalicão, para o comício da tarde. E lançava o novo mantra eleitoral, em que chegou a descrever Marcelo Rebelo de Sousa como um mero “comentador” de direita.
“Confirmou-se que o PS não fecha a porta a entendimentos de fundo com o PSD. E já vemos muitos analistas e comentadores de direita, incluindo Marcelo Rebelo de Sousa, e até da área do PS, a apontarem o caminho do bloco central.”
Jerónimo insistia: o PS quer “manter opções” que são de direita, seja através da maioria absoluta ou de “novos acordos” com o PSD. E partia para a conclusão, para eleitor de esquerda ouvir: “Ao contrário do PS, com o PCP não há qualquer risco de o apoio dado se traduzir em alianças com a direita e muito menos para aplicar uma política de direita”.
Pouco antes, pelas 16h, bem longe dali — no auditório do ISCTE, em Lisboa — arrancava, por sua vez, o comício distrital do Bloco de Esquerda. Cidade diferente, partido diferente, mesmíssima ideia: primeiro, quando Mariana Mortágua agitou o fantasma da “maioria absolutíssima” do acordo de bloco central que estaria a ser “namorado pelo primeiro-ministro”, concluindo mesmo que António Costa está a pedir votos no PS para “fazer uma aliança com a direita”. “É chegado o momento da clarificação”.
Depois, quando o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, subiu ao mesmo palco para atacar brutalmente a direita — do “marialvismo” e do jogo do “quem diz é quem é” do CDS à “política da miséria” do PSD — e concluir que é a esta direita que o PS quer “estender a mão”, “puxando o lamaçal para o centro da política”.
Tiro final: minutos depois, Catarina Martins lamentava o “jogo político”, a “confusão e o calculismo” que, garantia, podem mesmo levar o país a ficar sujeito ao “poder absolutíssimo do bloco central sorrateiro”. Em menos de um par de horas, Bloco e PCP acabavam de lançar aquela que será uma das principais narrativas para mobilizar os eleitores de esquerda: garantir que António Costa deseja mesmo entender-se com o PSD e deixar os tempos de geringonça para trás.
Bandeiras definidas a pensar no eleitor de protesto (e nos desiludidos)
No tal “momento da clarificação” sobre o rumo que a governação do país seguirá, os partidos da esquerda querem, por isso, obrigar o PS a fazer a escolha entre entendimentos à esquerda e à direita. E já deixam as suas prioridades claras, dirigindo-se aos eleitores de esquerda e focando o potencial voto de protesto — contra a esquerda que chumbou o Orçamento e contra os temas quentes que a direita do Chega pode aproveitar, da pobreza e dos baixos salários aos escândalos na área da Justiça.
No sábado, Catarina Martins fez questão de traçar quase palavra por palavra o perfil do seu potencial eleitorado. “O país das pessoas, o que se preocupa com o fracasso da conferência sobre alterações climáticas, o que se sabe dos salários baixos, o que se revolta com o caos da corrupção, o tráfico dos diamantes, o país que está farto de escândalos bancários. Esse é o país verdadeiro. É o país do povo que se indigna, que paga impostos e que detesta a fraude, que não quer ficar à espera, que quer soluções para a saúde e o trabalho”, enumerou.
Mariana Mortágua ajudaria a completar o raciocínio: “Como podemos pedir às pessoas que confiem nas mudanças necessárias se o que veem é a vida ficar mais cara enquanto sobra no défice o que o Governo poupa em investimento público?”.
E no mesmo sábado, em Famalicão, Jerónimo admitia que entre esse eleitorado agastado e alvo de “tanta mistificação” pode “haver ainda quem se interrogue” sobre se os comunistas “tomaram a decisão certa” ao chumbar o Orçamento, “deitando fora” alguns pequenos avanços — promessas que tinham ficado feitas, do lado do PS, como os avanços na gratuitidade das creches, mais trabalhadores abrangidos pela isenção de IRS ou aumentos extraordinários nas pensões.
É com essa consciência da insatisfação que precisam de sossegar e chamar a si que os partidos de esquerda começam agora a definir as suas bandeiras para a campanha. Nas palavras de um dirigente bloquista, as do partido resumem-se rapidamente: “Leis laborais, SNS, transição climática”.
Objetivos que o Bloco já deixa claros nas suas intervenções: no sábado, Mariana Mortágua pedia um “choque de investimento” para construir “em tempo recorde uma rede de transportes públicos a preços acessíveis” e apostar na “eficiência energética” das casas; exigia por três vezes aumentos nos salários; e atacava as leis laborais que mantêm “contratos manhosos”.
Depois, Catarina Martins voltava a lembrar as propostas de acabar com a caducidade da contratação coletiva e com os contratos precários; entrava nos exemplos de degradação do SNS para defender as propostas do Bloco, com a exclusividade dos profissionais à cabeça; e ainda colocava as metas climáticas na agenda, propondo “regras para os gigantes da energia”, uma “transição no sistema de transportes até 2030” e uma “mudança no padrão industrial para reduzir as emissões poluentes”. O contrário, garantia, “é a agenda do Governo e é um perigo: a direita festeja e aplaude cada uma destas manobras”.
Do lado do PCP, a lista de prioridades programáticas também está definida. O partido aponta para os resultados da última reunião do comité central, que ao mesmo tempo que anunciava o voto contra o Orçamento do Estado definia as áreas em que o PCP vai apostar: aumentar salários, incluindo o mínimo, e revogar as leis laborais da troika; creches gratuitas universais em 2022 (a par da construção de uma rede pública de creches); aumentos nas pensões e eliminação dos cortes das mais longas; aumentos e fixação de profissionais no SNS, mas também noutros serviços públicos; baixar o valor das rendas e criar 50 mil fogos de habitação pública; apostar na progressiva gratuitidade dos transportes públicos e baixar o IRS nos impostos mais baixos, assim como o IVA da eletricidade no geral.
Com o discurso contra maiorias absolutas do PS e maiorias PS-PSD definido e as prioridades programáticas lançadas, Bloco de Esquerda e PCP mostram-se prontos para se fazerem à estrada. O controlo da narrativa sobre quem quis provocar a crise política e quem tem as soluções para evitar que se repita após as eleições deverá ser a chave que marcará uma campanha quente à esquerda.