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Em 1910, com a Instauração da República, a família real foi, além de deposta, enviada para o exílio. A Lei do Banimento impedia a presença dos descendentes da Casa de Bragança em território português para sempre. Em 1834, já os descendentes de D. Miguel tinham recebido o mesmo tratamento, castigados por perder a Guerra Civil.
Hoje, o pretendente ao trono de Portugal, D. Duarte Pio, mora em Portugal. O direito foi garantido por obra, mais do que do pai — D. Duarte Nuno — de uma tia paterna: D. Filipa. Ainda com a Lei do Banimento em vigor (só seria revogada em 1950) D. Filipa viria a Portugal em visitas de meses, sempre com o acordo tácito ou explícito do regime.
Os primeiros contactos com Salazar deram-se para facilitar estas viagens. Primeiro formais, depois amigáveis, finalmente íntimas e acompanhadas de visitas e telefonemas regulares, as cartas de D. Filipa ao arquiteto do Estado Novo seriam uma das principais estratégias para aproximar a monarquia portuguesa das estruturas da ditadura. Tudo o que os Bragança faziam era do conhecimento do Salazar, através da PIDE ou por relatos da própria D. Filipa — que iam do seu gosto pela jardinagem às conversas com as primas.
Também tudo o que os Bragança queriam era pedido a Salazar: as viagens, a residência permanente em Portugal (em 1946 para D. Filipa), a agilização na educação de D. Duarte Pio e dos irmãos e o grande objetivo — a restauração da monarquia em Portugal. Após a morte do Presidente da República, Óscar Carmona, em 1951, o regime estaria mais perto de mudar do que nunca. O ditador, influenciado por D. Filipa, levou a questão aos principais conselheiros: três estavam a favor, quatro (incluindo Marcelo Caetano) contra.
Durante as décadas seguintes, a relação de António de Oliveira Salazar com os monárquicos seria um reflexo da sua relação com D. Filipa: apoio e devoção de um lado (a infanta), adiamento e cuidados do outro (o ditador). O esforço monárquico esfriou, e praticamente morreu com a subida de Marcelo Caetano ao poder. Antes, D. Filipa deixaria florescer por Salazar algo mais do que o interesse político e o apreço. Como Paulo Drumond Braga descreve no excerto da biografia “D. Filipa de Bragança — Lutar pela Restauração da Monarquia no Portugal de Salazar”, entre os dois surgiu algo muito próximo de um amor platónico.
D. Filipa e Salazar: um relacionamento equívoco
À medida que 0 tempo foi passando, D. Filipa tornou-se cada vez mais próxima de Salazar, com quem contactava pessoalmente, por carta e por telefone. Um levantamento feito com base numa obra que trabalhou exaustivamente as agendas do chefe do governo dá uma ideia dos encontros entre a infanta e o ditador entre 1947 e 1968. Essas informações podem ser completadas com dados dispersos nas próprias cartas de D. Filipa a Salazar, que ocasionalmente referem entrevistas não assinaladas nas agendas.
Na maior parte das vezes, avistaram-se a sós, mas ocasionalmente a irmã de D. Duarte Nuno fez-se acompanhar por alguns membros da sua família. Assim sendo, chegaram ao nosso conhecimento idas da infanta ao palácio de S. Bento a 22 e a 29 de junho, a 6 de julho e a 3 de agosto de 1947 (em dois casos com D. Maria Antónia). No ano seguinte, a 11 e a 18 de abril — neste caso com a referida irmã, tendo os três passeado nos jardins de S. Bento depois do chá — a 1 de agosto, a 28 de setembro — nesta visita foram ainda a duquesa de Bragança, D. Maria Francisca, e seu filho primogénito, D. Duarte Pio, então com três anos — a 11 de outubro e a 29 de novembro. Em 1949, D. Filipa foi a Santa Comba Dão, tendo tomado chá com Salazar na Quinta das Ladeiras, a 19 de janeiro. Voltaram a avistar-se, desta vez em Lisboa, a 13 de março, a 15 de agosto e a 18 de dezembro. No ano seguinte, foram três os encontros (5 de fevereiro, 26 de marco e 9 de julho) e em 1951, apenas se avistaram uma vez, a 19 de agosto. Em 1952, D. Filipa deslocou-se a S. Bento a 11 de maio e a 2 de novembro. O ano seguinte foi de três encontros, dois em Lisboa (10 de maio e 20 de dezembro) e um na Quinta das Ladeiras (4 de outubro). Em 1954, a infanta esteve com Salazar cinco vezes, a 31 de janeiro, a 21 de fevereiro, a 2 de maio, a 18 de julho e a 12 de setembro. Os encontros interromperam-se, então, temporariamente, nado havendo nas agendas do ditador nem em outras fontes consultadas registos para os anos de 1955 a 1957. Voltaram a estar juntos a 21 de dezembro de 1958, a 11 de outubro e a 20 de dezembro de 1959, a 3 de abril de 1960, a 15 de outubro de 1961, a 8 de abril de 1962, a 29 de junho e a 7 de novembro de 1965, a 27 de marco e a 4 de dezembro de 1966 (tendo, desta vez, D. Filipa levado três sobrinhos, provavelmente D. Duarte Pio, D. Miguel e D. Henrique), a 21 de maio de 1967 e a 21 de janeiro de 1968 (neste encontro, que foi o Ultimo, a infanta foi acompanhada de D. Teresa Teodora, tendo ambas ido agradecer a presença de Salazar nas cerimonias fúnebres de D. Maria Francisca).
A evolução da forma como D. Filipa foi tratando o chefe do governo Salazar nas muitas missivas que lhe enviou entre 1940 e 1968, revela uma crescente aproximação entre ambos. Se, em dezembro de 1940, se lhe dirigia como “Meu caro doutor Salazar”, a partir de junho de 1955 começou a usar “Meu caro amigo”. A maneira de se despedir também mudou. De uma formalidade inicial passou, logo desde dezembro de 1941 em diante, a assinar “sua muito afeiçoada, D. Filipa”. Tal manteve-se durante anos, com algumas variantes: em marco de 1950, “Um braçado cheio de saudades da sua muito afeiçoada, Filipa”, e, em junho de 1957, “sua velha amiga, Filipa”. De julho de 1960 em diante, passou a ser a “sua muito amiga, Filipa”. Embora tenha sido esta a forma que acabou por se instalar, houve algumas exceções: em abril de 1961, “E muitas e muitas saudades da sua sempre amiga, Filipa”, em janeiro de 1962, “afetuosas lembranças, Filipa” e em julho de 1968, “E mil saudades da sua sempre muito amiga, Filipa”.
A infanta não se esquecia do aniversario natalício de Salazar, que era a 28 de abril, nem do da entrada do mesmo para 0 governo, no dia imediatamente anterior. Em 1941, enviou um telegrama da Suíça, através de Azevedo Coutinho e dois anos depois, achando-se de visita a Portugal, solicitou ao lugar-tenente que transmitisse ao ditador os seus votos. Muitos anos depois, em julho de 1957, deu-lhe os parabéns, em seu nome e no de toda a família, pelas bodas de prata da chegada a chefia do governo. Em abril de 1961, escreveu: “De todo o coração felicito-o pelo dia dos seus anos e envio os mais calorosos e afetuoso votos de parabéns. […] Para o dia 28: os meus mais profundos e comovidos agradecimentos pelos 33 anos de duro trabalho, por todos nós portugueses. Que Deus 0 abençoe!” Em 1965, disse escrever “só uma cartinha para não deixar de estar presente no dia dos seus anos”. Mas concluiu-a assinalando que chegaria a Lisboa a tempo de lhe dar pessoalmente os parabéns quer pelo aniversario natalício quer pelos 37 anos da entrada para o governo. Em 1968, felicitou, pela derradeira vez, o ditador: “Umas linhas para lhe dizer quanto os meus pensamentos estado consigo nestes seus aniversários, hoje [dia 27] e amanha [dia 28]”.
Em momentos de tensão política, como a fracassada tentativa golpista de Júlio Botelho Moniz, em abril de 1961, ou a queda do Estado Português da Índia, em dezembro do mesmo ano, D. Filipa procurava partilhar o que considerava ser o sofrimento de Salazar. No primeiro caso, escreveu: “Fico com imensa pena ao pensar nos espinhos que abundam no seu [caminho]. E alguns bem grandes e maus!“. No segundo, foi bastante mais efusiva: “Chorei, rezei, pensei em si cujo coração estava neste momento a chorar também”.
A tia de D. Duarte Pio queixava-se frequentemente de ter saudades de Salazar
Depois de marco de 1950, a temática das saudades começou a surgir nas cartas da infanta a Salazar e não mais cessou. Sempre que não conseguia avistar-se com o ditador, multiplicava as missivas e os telefonemas. Em carta de novembro de 1954, inquiriu se o poderia visitar num domingo ou feriado próximos. E acrescentou: “Saudades há sempre e se passa muito tempo acumulam-se e acumuladas pesam e o peso doí… A ultima visita foi no dia 12 de setembro!“. Em dezembro do mesmo ano, anotou: “Já são 12 semanas que não 0 vejo”, oferecendo-se para o acompanhar em passeios diários de meia hora em Monsanto “que o tempo é tão lindo que me parecia uma ideia ótima e muito bem para a sua saúde”. E terminou a carta de forma muito reveladora: “Fiquei tão contente quando ouvi a sua voz no telefone, era baixa e bastante forte; graças a Deus que o tratamento que fez deu resultado. […] Tenho tantas saudades; se não pode neste domingo, será no próximo dia 12, creio que estarei de volta. […] Eu só gostaria vê-lo um poucachinho, não era preciso falar nada, para não cansar a sua voz”.
Em junho de 1957, escrevia: “Gostava muito de o ver antes [da partida para o Algarve]. Se não puder ser hoje, haverá uma horinha para mim no próximo domingo (dia 30)? Não tenho nada de especial a dizer, mas preciso de matar saudades. A expressão errada, pois cada vez que se espera matá-las, sofre-se o engano de as ter avivado; no fundo do coração sabemos que precisamos delas — simplesmente para viver. Sempre preferi sofrer do que viver morta como tanta gente”.
Em dezembro de 1959, redigiu as seguintes linhas: “Já lhe tenho escrito mil cartas — em espírito. Mas como sempre que começo a escrever sobre papel nada continuo, porque não posso dizer o que quero como quero, parece-me ser a única solução a de lhe tirar, mais uma vez, um pouco do seu precioso tempo. Poderá ser neste domingo que vem?”. E despediu-se de forma bastante explicita: “Acabo, com a esperança de o ver em breve”.
Em janeiro de 1960, confessou: “Estou a pensar muito em si”. Para prosseguir: “Gostaria muito de o ver. Se este domingo o meu amigo já não tiver uma hora livre, como é que seria se eu fosse ai almoçar ou jantar consigo num dos dias da semana que vem?”. E especificava: “Que a Maria não pense que tem que preparar um banquete! Cá em casa nunca tenho mais que um prato, as vezes uma sopinha antes e, como sobremesa, geralmente fruta ou salada de frutas”. A carta rematava de forma que não pode deixar de se considerar audaciosa, quase constrangendo Salazar a um encontro: “Fico a espera dum recadinho que a Maria há-de transmitir por telefone”.
Em dezembro, era mais cautelosa: “O meu amigo terá tempo de nos ver um bocadinho a noite, a mana Maria Antónia, os dois pequenos [D. Duarte Pio e D. Miguel] e a mim?”. O mesmo se passou no ano seguinte, em abril, quando inquiriu: “O 14 de maio é um domingo; será possível então vê-lo? Se gostar eu podia levar os sobrinhos”.. Em janeiro de 1962, antes de uma das frequentes idas para o Algarve, D. Filipa pediu, em missiva a Salazar: “Quando é que o poderei visitar? Ao menos vê-lo um bocadinho…. Será possível?”. E insistiu, ao fechar a carta: “Preciso de o ver e de estar um pouco consigo para retemperar as minhas forças morais“.
Como as cartas de 18 de dezembro de 1961 e de 13 de janeiro de 1962 ficaram sem resposta, D. Filipa, a 17 do mesmo mês, atreveu-se a contactar de novo o chefe do governo pela via epistolar: “O que é mais provável é que o meu amigo as recebeu ambas mas que não tem animo nem vontade nem tempo de receber visitas seja de quem for. E não seria de admirar”. A infanta nunca ousava confrontar Salazar e para tudo tinha desculpas e procurava explicações razoáveis. Assim, solicitou, se fosse de facto o caso de “absoluta falta de tempo e não falta de vontade”, que mandasse a governanta, Maria, telefonar-lhe, dizendo “qualquer coisa”. Estava mesmo disposta a adiar a ida para o Algarve para o poder encontrar. Terminava a carta pressionando Salazar: “Mando isto pela Cecília e ela fica no portão à espera até receber qualquer resposta. Se não nos pudermos ver é por razões de força maior e conformar-me-ei, continuando a rezar por si e por tudo aquilo que tanto nos preocupa a todos”. Ainda em 1962, mas em dezembro, nas boas-festas enviadas de Ferragudo, assinou a missiva: “Tem bastantes saudades a sua muito afeiçoada, Filipa”.
Até os pensamentos dos dois se encontravam espiritualmente, imaginava D. Filipa
Saltando um pouco no tempo, numa carta de fevereiro de 1965 a infanta esclareceu Salazar: “Irei a Lisboa [no dia] 22, ouvir a conferência do arquiduque Otão, quinta-feira, 24. Poderei visitá-lo no domingo, 28 de fevereiro?”. Ainda no mesmo ano, em março, escreveu: “Querido amigo, os meus pensamentos têm andado por aí e, às vezes, têm-se encontrado com os seus; assim, no domingo passado, creio que pensou bastante em mim, não é verdade? Senti-me consolada, sabe assim quentinha por dentro e um pouco triste também, é claro. Eu, quando penso eu si, não é por esta ou aquela razão, mas simplesmente penso na sua pessoa; ou não será bem pensar, mas mais propriamente meter-me em espírito junto de si. Pena é que acontece que isso doí em vez de me alegrar. Não é sempre; há ocasiões em que me sinto toda contente e feliz — será quando realmente nos encontramos em espírito? Eu gostaria imenso de poder mostrar-lhe aqui a casa e tudo a volta, para depois os pensamentos saberem melhor onde me procurar; e o meu amigo poder imaginar de que estou a falar quando lhe descrevo as minhas plantações, por exemplo”. Mais adiante, na mesma missiva, ao esclarecer que contava ter, de então em diante, de passar mais tempo em Lisboa e em S. Marcos, anotava: “É legítimo que eu queira matar saudades do meu amigo e dos meus sobrinhos, não é assim?”. Para rematar assim: “Que pena que não tenho asas para voar! Nem tenho o dom da bi ou tri-locação. Seria realmente muito útil!”.
No mês imediato, abril de 1965, D. Filipa esclarecia o seu habitual correspondente: “Como sempre quando alguma coisa de invulgar me acontece, se é bonita e de se alegrar, sinto o desejo imenso de o meu amigo estar aqui para também gozar esta presença“. Escassos dias volvidos, terminou desta forma uma outra missiva: “Custa acabar com esta carta; tenho a sensação de estar consigo enquanto escrevo. Mas tem de ser, o meu amigo não pode ter o tempo para ler tantas palavras”.
Em junho, a infanta assegurava: “Gostei muito de estar consigo ontem a noite. Na verdade já me sentia muito necessitada desta consolação. Tanto assim, que tive vontade de ficar calada para melhor gozar do bem-estar que sentia ali, naquele banco baloiço tão bem conhecido e confortável, no seu jardim ao seu lado”. Acrescentou que Salazar a ouviu “com carinhosa paciência”. Ela, por seu lado, falara “tanto”, mas, por não ter as ideias arrumadas, não disse tudo o que pretendia. Daí a carta.
Um ano depois, em marco de 1966, após novo encontro, nova missiva: “Ontem foi tão bom mas acabou tão depressa; e falamos de muita coisa, mais fiquei com tantas perguntas por fazer; e matei saudades, mas cresceram outras ainda maiores, mais penetrantes, que doem”. E prosseguiu: “Às vezes, muitas vezes, penso que, estando neste mundo só de passagem, deviamo-nos alegrar com a ideia de poderem estar juntos os amigos no outro Mundo para sempre e em paz, sem as constantes separações; mas a gente não sabe como na verdade será 0 convívio dos homens no mundo dos espíritos e, sobretudo, na presença do Amor divino que absorve tudo e todos. […] Com um suspiro de resignação e aceitação do que não posso modificar (a separação) e do que não posso saber ou prever (a vida na Eternidade) deixo este assunto”.
Em agosto do mesmo ano, confessou, em nova missiva, ter “muitas saudades”. No mês seguinte, informou Salazar — que se achava de férias no forte de S. João do Estoril — de que D. Duarte Pio, acabado de chegar de uma viagem a África, gostaria de lhe transmitir as suas impressões: “Amanha telefono para saber a resposta a pergunta do meu sobrinho”. E rematou: “Saudades do coração! Filipa”. Em novembro, despediu-se com “mil saudades da sua muito amiga, Filipa”. E, dias volvidos, 0 post scriptum de uma longa carta sobre a trasladação de D. Miguel e de D. Adelaide para Portugal continha um pedido: “Posso ir aí no domingo dia 4?”. Havia ainda um segundo post scriptum: “Se tiver tempo e esta de acordo, vou ai com os três sobrinhos; é quase escandaloso que o meu amigo ainda não os conheça! O mais velho foi aí comigo há imenso tempo, o Miguel e o Henrique ainda nunca!!!”.
Já em 1967, em abril, comentava: “Tem-me custado tanto deixar passar semanas e meses sem o ver”. E sugeria uma visita no final do mês: “Podia tomar nota na sua agenda, que vou ai naquele dia — domingo, 30 de abril — as 20 horas?”. Mas, na mesma carta, acrescentou um comentário, suscitado pela leitura de um livro intitulado Les ames généreuses, leur réle, leurs recompenses, da autoria do jesuíta Francês Louis Capelle, publicado em 1920 e que teve uma terceira edição em 1924: “As amizades desta terra continuarão as mesmas, porque nas mesmos não mudamos na essência e na característica de cada um. […] As amizades desta vida serão, na outra, vividas na sua pureza com grande intensidade. E a minha consolação quando me sinto apertada de dolorosa saudade — estado que, não sei porquê, aumenta de ano para ano em vez de suavemente diminuir, como esperaria. […] Os sintomas não são permanentes, contínuos, não; aparecem quando o pensamento — querendo ou não querendo — lhes abre a porta”.
Em dezembro lamentava-se: “Se eu soubesse que ficava afinal tanto tempo em Lisboa teria lhe mandado um recadinho antes deste domingo, pois suspiro de o ver. Já passaram muitos meses desde a minha última visita”. A concluir a longa missiva, teve ainda tempo de agradecer a oferta do volume VI dos Discursos e Notas Políticas — “e por ter escolhido mais uma vez 0 n.° 19. Como é que se lembrou do número? Muito obrigada!”.
Em marco de 1968, rematou de forma reveladora uma longuíssima missiva sobre as hipóteses de tumulização de D. Maria Francisca, sua cunhada, acabada de falecer: “Haverá um pouco de tempo para conversarmos no próximo domingo?”. Um mês volvido, lamentou não ter estado presente, por motivo de doença, na inauguração da estátua de Nuno Álvares Pereira na Batalha, não deixando, contudo, de anotar: “Mas gostava muito de o visitar: quando é que poderá ser?”.
D. Filipa preocupava-se com a saúde e a sucessão do ditador
Na derradeira carta de D. Filipa a Salazar, datada de 21 de julho desse mesmo ano, lê-se, a dado passo: “Tenho pensado tanto em si com grata admiração”, pelos dias “calmos e felizes” passados no Algarve, longe da “desordem e violência” vividas em França”e em outros países”. Referia-se obviamente ao maio de 1968, mas devia ter na mente outros acontecimentos, como a “Primavera de Praga”, prestes a ser esmagada pela Unido Soviética, e talvez também O primeiro atentado da ETA em Espanha, que ocorrera a 7 de junho. E despediu-se, sem saber que era para sempre: “Muitos e muitos votos de bem-estar, de felicidade, de bom trabalho com muitas satisfações e alegrias. E mil saudades da sua sempre muito amiga, Filipa”.
A infanta tinha por vezes consciência de que talvez importunasse Salazar com as suas missivas insistentes e por vezes demasiado longas. Em marco de 1965, anotava: “Esta carta esta a ficar inutilmente comprida — foi só uma conversa “mole”, como dizem os brasileiros”. Em abril, esclarecia: “Vou acabar esta carta que já esta longa demais e não tem interesse”. E em julho, recordava: “Gostava de lhe contar muitas coisas mas a carta tem de acabar”.
A saúde de Salazar era um tópico que interessava D. Filipa. Lê-se em missiva de novembro de 1954: “Como é que vai a sua saúde? Tem dormido menos mal? E as suas cordas vocais estão bem?”. Em junho de 1957, questionava: “E a sua saúde, o seu cansaço? Posso levar mais Becozyme de Roche e mais levedura de cerveja?”. Em janeiro de 1960, sugeria: “Não seria prudente fazer-se vacinar contra a gripe, quanto antes?”. Em setembro de 1966, alertava para os cuidados que todos deveriam ter na prevenção de gripes e constipações, esclarecendo Salazar que tivera uma pneumonia em dezembro do ano anterior. Em novembro, voltava a aconselhar um medicamento ao ditador, desta feita Redoxon, uma vitamina C solúvel, que ela própria tomava prolificamente: “E 0 que lhe recomendo para o caso que um dos seus ministros vêm a sua casa falar consigo, atacado de forte constipação, porque o Redoxon serve de preventivo e de cura, pois fortifica a resistência”.
Tudo o que de alguma forma dizia respeito a Salazar lhe interessava. Em novembro de 1959, enviou-lhe um telegrama de pêsames pela morte de uma das irmãs, Elisa. O estado de saúde da governanta do ditador, Maria de Jesus Caetano Freire, também era objeto de inquirição por parte de D. Filipa. Em setembro de 1966, desejou: “Espero que a sua Maria continue melhorando”.
Frequentemente presenteava o chefe do governo, por vezes de forma meramente simbólica, mas só aparentemente insignificante. Em carta de maio de 1943, referiu ter-lhe trazido um livro do Brasil, A Cinza do Purgatório, do austríaco Otto Maria Carpeaux, justificando: “Fiquei encantada com o livro e comprei por isso um segundo exemplar para lhe 0 trazer”. Em junho de 1955, enviou um número da revista francesa Paris Match, aparentemente só “por ter lindas fotografias do Santo Padre”’, ou seja, Pio XII. No Natal de 1960, foi a vez de D. Filipa oferecer a Salazar “um pequeno quadro feito em cera; pendura-se assim como esta numa parede, evitando a proximidade dum radiador ou fogão, e também do contacto direto com raios do sol”. Em abril de 1961, o ditador recebeu “um velho prato de estanho que tem em relevo a Nossa Senhora com 0 Menino, ambos com uma expressão muito doce; gostei do prato e espero que lhe faça prazer também. Mandei-o limpar mas o tempo encarregar-se-á de o escurecer se o preferir mais “antigo””.? Quatro anos volvidos, uma brincadeira: D. Filipa fez seguir, em anexo a carta, um “postal alegre que o fará sorrir; é refrescante olhar para aquelas duas pequenas, não é?”. Tratava-se de duas nazarenas com trajes regionais. Ainda no mesmo mês referiu ter comprado, para oferecer a Salazar, O Verdadeiro Livro de Benzeduras, que se vendia a entrada do mercado de Portimão. Achou-o “interessante e divertido” e prometeu entregar-lho pessoalmente no próximo encontro que tivessem. E, em julho de 1968, naquela que foi a derradeira missiva, D. Filipa enviou dois postais ilustrados, “um com vista do porto de Portimão donde se vê a minha casa (indicada com uma seta), no outro vê-se a sua ponte da Torre de Belém”.
Por outras fontes ficamos a saber que D. Filipa se preocupava bastante com a sucessão de Salazar. Varias vezes disse pessoalmente ao ditador que a melhor maneira de manter o Estado Novo era através da restauração da Monarquia. Por outro lado, no ocaso de 1966, depois de fazer notar que se tratava de um problema que todos deveriam encarar e até mesmo ajudar o presidente da República a resolver, o chefe do governo desabafou com alguém que lhe era próximo: “Mas ninguém se quer ocupar disso. Fora do José Nosolini e da infanta D. Filipa, ninguém trata disso. […] Só o José Nosolini e a infanta D. Filipa. Porque será?”. Não era bem assim. A sucessão do ditador achava-se há muito na ordem do dia e era abordada na imprensa estrangeira, assim como nas mais altas esferas do regime, bem entendido, a revelia do visado.
A infanta debatia com o ditador muitos outros assuntos da atualidade política. Em janeiro de 1967, em conselho de ministros, um desabafo de Salazar foi assaz revelador a esse respeito: “Deixamos invadir 0 ministério da Educação Nacional pelo progressismo, pelo internacionalismo, pela anti-nação. Era novo, era avançado, era estar em linha com as grandes teses dos novos génios. Muito bem. Mas agora não nos queixemos. […] Mas a única pessoa do meu conhecimento que está preocupada com o problema e a infanta D. Filipa. Não sei de mais ninguém”.
Poderá ter sido destruída uma série de cartas, talvez ainda mais íntima
Perante tudo 0 que acabou de se ver, será exagero descortinar algo mais do que uma forte amizade entre a dinâmica princesa de Bragança e Salazar? Estaria a primeira apaixonada pelo segundo? Teria consciência dos reais contornos dos seus sentimentos? E o alegado destinatário dos afetos? Está hoje completamente posta de lado a ideia de um Salazar ascético e assexuado, casado somente com a nação. Sabe-se que, desde muito jovem, manteve diversas relações amorosas, emergindo, ao longo dos anos, nomes como Felismina Oliveira, Maria Laura Campos, Maria Emília Vieira, Mercedes de Castro Feijó, Carolina Correia de Sá, filha do 9.° visconde de Asseca — com quem esteve, ao que parece, muito próximo de contrair matrimónio — e várias outras. O ditador também suscitou, ao longo das décadas, diversas paixões que provavelmente nunca foram além do platonismo. Daí a Salazar ter tido algum tipo de interesse por D. Filipa vai alguma distância, tanto mais que se sabe como era hábil no relacionamento com o sexo feminino. Nas palavras de Marcelo Caetano, “tinha prazer na convivência feminina e a sua roda giravam sempre varias mulheres em quem sabia despertar adoração sem limites, a quem recebia, com quem conversava, cujas vidas acompanhava com desvelado interesse, as quais enchia de pequenas atenções e enviava flores… sempre com requintes de sensibilidade”.
Não causa espanto que, após a morte de Salazar, ocorrida em julho de 1970, D. Filipa tenha procurado reaver as missivas endereçadas ao ditador. Em carta a Marcelo Caetano, de 15 de agosto, esclareceu: “A meu pedido, o Joao Lumbrales procurou estas cartas e telefonou-me antes de ontem, da residência do Salazar, a dizer que as achara no andar superior, num maço separado da restante correspondência, fez um embrulho, lacrou-o e escreveu por cima que continha cartas minhas que eu considerava particulares e confidenciais e desejava reavê-las”. Assim sendo, a infanta solicitava ao chefe do governo que lhe fosse entregue o referido conjunto epistolar. A 25 de setembro, agradeceu ao sucessor de Salazar: “Ao receber o pacote das mãos do Diretor Geral da Presidência do Conselho senti um grande alivio e fiquei reconhecidíssima ao caro Marcelo Caetano”.
Atendendo a que o espolio de Salazar, que hoje se conserva na Torre do Tombo, guarda as muitas cartas ao ditador enviadas por D. Filipa entre 1940 e 1968, cabe perguntar: haveria outro núcleo de missivas que em 1970 foi, de facto, entregue a infanta? Se houve, que destino levaram essas cartas? D. Filipa conservou-as? Destruiu-as? Uma outra hipótese é a de que, afinal, nado tenham sido entregues a irmã de D. Duarte Nuno as cartas que endereçou ao criador do Estado Novo ou que as suas mãos tenham chegado somente cópias delas. O facto de a epistola de 25 de setembro a Marcelo Caetano, em que a infanta se mostra reconhecida pelo envio, ter sido a ultima endereçada ao sucessor de Salazar, poderá indiciar que foi de alguma forma ludibriada. E, se foi esse 0 caso, por que razão não se queixou ao chefe do governo? Ou fê-lo e por qualquer motivo esse documento não consta do espolio do político? As interrogações ficam sem resposta.
D. Filipa morreria solteira, sem filhos e sem ver um Portugal monárquico a 6 de julho de 1990, um mês antes de chegar aos 85 anos. Desde o final da década de 60, estava afastada da política, desapontada com Marcelo Caetano, que entretanto suceder a António de Oliveira Salazar. A Infanta, aliás, mal se correspondeu com Marcelo Caetano, demasiado liberal para a visão conservadora de D. Filipa para Portugal.
Quando morreu já era o sobrinho, D. Duarte Pio, o pretendente ao trono Português (D. Duarte Nuno morrera a 24 de dezembro de 1976). Uma das principais preocupações dos anos finais D. Filipa foi precisamente a manutenção da casa real. D. Duarte Pio e os irmãos, D. Miguel Xavier e D. Henrique Nuno João, continuavam solteiros, logo sem descendência. O Duque de Bragança casaria com D. Isabel de Herédia em 1995, com quem teria três filhos: D. Afonso (1996), D. Maria Francisca (1997) e D. Dinis (1999). D. Miguel Henrique morreria solteiro em 2017, aos 67 anos. D. Miguel, agora com 73, nunca casou.