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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Da doença escondida às falhas de segurança. A queda da avioneta na Caparica aos olhos do Ministério Público

Na queda da avioneta na praia de São João da Caparica morreram duas pessoas, mas na sua origem está mais do que uma falha no motor. Sete pessoas foram acusadas. Do piloto ao presidente da ANAC.

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Início de agosto. Pleno verão. A praia de São João da Caparica estava à pinha. Sónia brincava com a sua filha junto a uma poça de água. Sílvia e Maria caminhavam à beira-mar. O mesmo fazia, mais à frente, José Lima, de mão dada com a neta de quatro anos. Sofia António, de oito, também por ali andava a brincar com o pai, o tio, o irmão e os primos. Não se conheciam. Mas estes desconhecidos ficaram ligados, naquele início de tarde de 2 de agosto de 2017, quando uma avioneta “surgiu sem fazer ruído”. Ninguém deu por ela. O único som, lê-se na acusação do Ministério Público (MP) a que o Observador teve acesso, vinha das diversas tentativas de ligar o motor que o piloto Carlos Conde d’Almeida continuava a realizar — um som abafado pelo barulho de uma tarde de calor, o barulho das ondas e as brincadeiras à beira-mar.

A avioneta aproximava-se cada vez mais da zona de areia molhada da praia. O aluno que seguia ao lado do piloto decidiu acender e desligar as luzes da aeronave, numa tentativa de chamar a atenção dos banhistas para que fugissem. A aproximação à praia era demasiado evidente para que as pessoas que se encontravam ali não suspeitassem que algo estava errado. Quando se aperceberam, entre os gritos de pânico e os apelos para fugir, os banhistas “que se encontravam na areia molhada começaram a correr no sentido da areia seca ou da água”, escreve o MP.

Duas pessoas morreram na sequência da aterragem de emergência de uma avioneta, a 2 de agosto de 2017 (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Sónia “correu na direção da filha, atirou-a ao chão e deitou-se sobre ela”. A avioneta passou a pouca distância de altitude por cima delas. Sílvia fugiu para a zona de areia seca e puxou a amiga Maria “que se encontrava em pânico”. Pegou nela e atiraram-se ambas para o chão. A asa esquerda do aparelho passou a pouca distância da cabeça de Maria. Segundos depois, “sem qualquer controlo”, a aeronave tocou na areia molhada e voltou a elevar-se. Percorreu alguns metros no ar até voltar a aterrar, mas “sem que fosse utilizado o sistema de travagem da aeronave”, escreve o MP.

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Seguiu pela praia, a uma velocidade considerável, durante um total de 245 metros, até parar finalmente. Nesse percurso, José Lima, que corria para se afastar, foi atingido pela asa esquerda nas pernas. O homem de 56 anos “elevou-se e rodopiou no ar, passando por cima da aeronave e vindo cair na areia do outro lado”. Mais à frente, Sofia António que também tentava fugir, correndo em direção da areia seca, foi atingida na cabeça e projetada para a frente. Foram estas as duas mortes provocadas pelo acidente.

José Lima, que corria para se afastar da aeronave, foi atingido pela asa esquerda nas pernas. O homem de 56 anos “elevou-se e rodopiou no ar, passando por cima da aeronave e vindo cair na areia do outro lado”

Esta terça-feira, quase dois anos depois da queda da avioneta e após finalizada a investigação da Polícia Judiciária de Setúbal, sete pessoas foram acusadas no âmbito deste processo. Um delas é o piloto Carlos Conde D’Almeida que enfrenta dois crimes de homicídio por negligência e um crime de condução perigosa de meio de transporte por ar. Os restantes seis acusados dividem-se entre elementos da Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) — um deles, o próprio presidente, Luís Ribeiro — e da Escola de Aviação Aerocondor (EAA), a que pertencia a avioneta. Estes seis arguidos respondem, cada um, por um crime de atentado à segurança de transporte por ar, agravado pelo resultado morte.

Da aterragem resultou a morte de duas pessoas, mas na sua origem está mais do que um problema durante o voo. De acordo com a acusação que o Observador leu, o caso envolve irregularidades, falhas de segurança e a licença de piloto que só foi renovada porque o Carlos Conde D’Almeida omitiu uma doença que tinha e que sabia que “podia prejudicar a sua capacidade de atuação e decisão”. O MP entendeu que o piloto “violou grosseiramente as regras da aviação“.

Caparica. Piloto tinha perturbação de ansiedade e omitiu doença para renovar licença

“Mayday, Mayday, falha do motor, vai aterrar na praia”. Piloto assumiu voo tarde de mais

Rui Relvas tinha uma aula de voo por instrumentos agendada pelo seu professor, o piloto Carlos Conde d’Almdeia, para o dia 2 de agosto de 2017. O voo teria uma duração estimada de 2 horas e 45 minutos, com início no aeródromo de Cascais e destino o aeródromo de Évora. O relógio marcava 15h42 quando receberam autorização para descolar. “O aluno Rui Relvas era o piloto a voar (sentado à esquerda), e o arguido Carlos Conde d’Almerida era o piloto em comando (sentado à direita)”, lê-se na acusação do MP.

Fazia-se sentir alguma turbulência. O aluno teve até dificuldade em estabilizar a avioneta. Quando sobrevoava a vila de Oeiras, “sofreu um movimento ascendente súbito e violento“. Foi fatal: o aparelho sofreu uma “falha total de potência” que interrompeu o “fluxo de combustível ao motor”. Naquele momento, não havia alternativa senão começar a “a colocar a aeronave a voar na melhor velocidade de planeio” e “procurar um lugar para a aterragem”, lê-se na acusação que cita o Manual Operacional do Piloto relativo a esta avioneta. Mas, alerta o MP, “se tiver tempo, deve efetuar uma tentativa de colocar o motor em funcionamento”. “Caso não se mostre possível resolver a falha de motor, o piloto deve executar a aterragem de emergência”, lê-se no documento.

A avioneta — um avião monomotor de dois lugares — é um Cessna 152 que pertence ao Aeroclube de Torres Vedras (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Não foi possível. Foi este mesmo o alerta que o aluno fez ao piloto, que depois assumiu a emergência do voo, tentando ele colocar o motor em funcionamento, ao mesmo tempo que instruiu o aluno a voar em frente — “o que este fez”. Os ingredientes para a tragédia começaram a reunir-se neste momento: Carlos Conde d’Almeida terá executado uma série de operações “de forma aleatória (ao invés da ordem definida no Manual Operacional do Piloto)” e “sem definir qualquer lugar para a aterragem”. Fê-lo durante 50 segundos, de acordo com o MP. Terá sido isto que, na tese da investigação, fez com que o piloto “perdesse o controlo das referências de navegação da aeronave”. Cinco minutos após a descolagem, chegou o aviso à torre de controlo:

— Mayday, Mayday, falha do motor, vai aterrar na praia

— Em que praia vai aterrar?

— Cova do Vapor

Só aqui — tarde de mais no entender do MP— é que o arguido assumiu o voo da aeronave: “Somente abaixo dos 500 pés de altitude”, quando a falha do motor aconteceu entre os 1200 e os 1100 pés. “A decisão de procurar um lugar para aterrar apenas àquela altitude, deixou o arguido Carlos Conde d’Almeida com pouco tempo para analisar o risco, o que diminuiu as suas opções na escolha”.  A acusação defende que o piloto “podia e devia ter invertido o sentido do voo” e “procurar um local seguro para aterrar”. E dá exemplos: os terrenos da Estação Agronómica Regional em Oeiras, no rio Tejo ou nas suas margens, junto da Torre do Bugio ou, até mesmo, na praia de São João da Caparica, logo após o pontão que a separa da praia da Cova do Vapor.

Aterrar no mar ou num mar de gente? As opções do piloto da aeronave da Caparica

A aterragem viria a acontecer, contudo, na praia de São João da Caparica. Ali “encontravam-se, pelo menos, dezenas de pessoas, na sua maioria sob os chapéus de sol, outros no mar e alguns adultos com crianças, na areia molhada, que aí se havia formado”.  Um mês após o acidente, o piloto da avioneta falou ao Observador e disse que não se arrependia da aterragem que fez aos comandos da aeronave, um Cessna 152 CS-AVA: “Sou piloto desde 1980 e sou instrutor há 30 anos. Aquilo que eu fiz, foi exatamente aquilo que me ensinaram quando eu andava a aprender”.

Caparica. Piloto não se arrepende da aterragem: “Fiz o que devia ser feito”

Piloto renovou licença, mesmo tendo uma “incapacidade permanente para o exercício da profissão”

A acusação do MP baseia-se em factos que vão além do dia 2 de agosto de 2017 e que levaram à acusação de sete pessoas. Factos relacionados com o percurso profissional do piloto. De acordo com o mesmo documento, Carlos Conde d’Almeida foi admitido na TAP como comissário de bordo, em abril de 1974. Dez anos depois, obteve licença de piloto comercial de aeroplanos e, no ano seguinte, começou a exercer na mesma empresa funções de piloto comercial. “Entre 1989 e 1990, após obter certificado de instrutor, começou a exercer a atividade, tendo trabalhado para diversas escolas, entre elas a EAA”, lê-se na acusação.

Imagem aérea pouco depois da aterragem de emergência, na praia de São João da Caparica

Um síndrome depressivo obrigou-o a reformar-se por invalidez da TAP, não muito tempo depois, em 1993. No final de 2012, o núcleo de verificação de incapacidades do centro distrital de Lisboa da Segurança Social deliberou que o arguido “se mantinha numa situação de incapacidade permanente para o exercício da profissão por sofrer de perturbação de ansiedade generalizada”. Apesar disso, o piloto “procedeu à renovação, junto da ANAC, da sua licença de piloto de transporte aéreo de avião, omitindo a incapacidade que havia sido declarada, bem como, aquando da realização dos exames médicos, a perturbação de que padecia”, lê-se na acusação. Conseguiu renovar a licença até 28 de fevereiro de 2018. E, no entender do MP, sabia que “essa doença podia prejudicar a sua capacidade de atuação e decisão”.

Um síndrome depressivo obrigou o piloto a reformar-se por invalidez da TAP. No final de 2012, foi deliberado que o arguido "se mantinha numa situação de incapacidade permanente"

Antes disso, em abril de 2016, Carlos Conde d’Almeida, foi contratado para a escola de onde pertencia a avioneta, “sendo que já anteriormente, desde data não apurada, o arguido vinha prestando os mesmos serviços à EAA”. Foi contratado mesmo tendo uma licença que só obteve por ter omitido uma doença. E, aqui, entram os outros protagonistas do caso.

O MP acusa Ana Vasques, administradora da escola, de ter contratado o piloto Carlos Conde D’Almeida “sem avaliar adequadamente, como lhe cabia, as capacidades daquele” e “sem apurar as razões pelas quais o mesmo se encontrava reformado por invalidez da TAP Air Portugal”. Carlos Conde D’Almeida terá sido contratado por indicação de Ricardo Freitas, diretor de Instrução, que se limitou, no entender da acusação, a “confiar no conhecimento pessoal existente entre ambos desde há anos”. Assim, pelas mesmas razões, o diretor de Instrução não avaliou o desempenho do piloto já contratado nem o convocou “para qualquer reunião” ou “formação teórica acerca dos procedimentos e equipamentos”. Já relativamente a José Coelho, o MP entende que o diretor de Segurança não avaliou os riscos deste voo e não “sugeriu, como lhe cabia, a implementação de qualquer medida de segurança para essa rota”.

Caparica. As três questões a que falta responder e fotos aéreas minutos depois da tragédia

Em relação à ANAC, a acusação refere também que o presidente, Luís Silva Ribeiro, o diretor de Segurança Operacional, Vítor Rosa, e o chefe do departamento de Licenciamento de Pessoal e de Formação, José Queiroz, emitiram “pareceres e certificados sem analisarem se a EAA cumpria a política de segurança prevista” e “não determinaram” que o piloto “informasse por que razão se encontrava reformado da TAP”. Mais: referindo-se a Luís Ribeiro e a Vítor Rosa, o MP acusa-os de não controlar as “revalidações do certificado de instrutor e das qualificações” de Carlos Conde d’Almeida “deferidas pelo arguido José Queiroz”. O MP alerta que estes três acusados “tinham a obrigação legal de promover a segurança na aviação”.

Dois anos depois, a acusação foi conhecida. Seguem-se os próximos passos judiciais: o julgamento ou a fase de instrução, caso algumas das partes faça um requerimento. Da ANAC, à escola de aviação, sete pessoas enfrentam acusações. O aluno não é um deles. O MP entendeu que Rui Relvas não poderia ter agido de outra forma, pelo que “nem as mortes nem as lesões sofridas pelas vítimas podem ser imputadas à conduta do arguido Rui Relvas”.

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